Open-access Cem Anos do Prêmio Nobel na Eletrocardiografia: Uma Tecnologia Ainda Essencial e Preparada para o Próximo Século

Palavras-chave Cardiologia; Eletrocardiografia; Síndrome Coronariana Aguda

Willem Einthoven – breve revisão biográfica

Em 1924, o Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina foi atribuído a Willem Einthoven pela "descoberta do mecanismo do eletrocardiograma" (ECG), evidenciando a relevância da investigação de Einthoven, que forneceu dados importantes sobre a fisiopatologia cardiovascular, e que viria a formar um dos pilares da Cardiologia moderna.1 Willem Einthoven nasceu em 1860 em Semarang, na ilha de Java, então parte das Índias Orientais Holandesas (na atual Indonésia), filho de um médico militar.2,3 Após a morte do pai, mudou-se com a família para os Países Baixos, onde deu continuidade a seus estudos, formando-se em medicina pela Universidade de Utrecht.1-3 Nesta fase de formação, ele foi profundamente influenciado pelo renomado fisiologista holandês Donders, que mais tarde o ajudou na obtenção de um cargo na Universidade de Leiden, onde permaneceu como professor de Fisiologia pelo resto de sua carreira (Figura 1).2,4 Descrito como modesto, cortês e dedicado ao seu trabalho, além de suas pesquisas contínuas em ECG, Einthoven também era fluente em diversos idiomas e um defensor da importância da prática de exercícios físicos, tendo praticado remo e sendo conhecido por ir de bicicleta para o trabalho.1,2,4,5 Casou-se com uma de suas primas e teve quatro filhos, morrendo em 1927, aos 67 anos, por decorrência de um câncer.3-5 Apesar da árdua construção de uma base de pesquisa diversificada ao longo de décadas, incluindo desde os relatórios de Galvani e mais tarde de Matteucci, von Kolliker e Muller sobre correntes elétricas até o eletrômetro capilar de Lippman e a representação de Waller do "eletrograma" humano, a aplicação da tecnologia por Einthoven, juntamente com seus insights sobre sua possível utilidade futura, provou ser fundamental no aproveitamento de seu potencial.1-5

Figura 1
Retrato de Willem Einthoven. Reproduzido das Bibliotecas da Universidade de Leiden.17 Esta reprodução fotográfica é de domínio público.

O eletrocardiograma – desenvolvimento e primeiras aplicações

Em 1887, Augustus Desiré Waller (nascido em Paris em 1856, filho do cientista inglês Augustus Volney Waller, famoso por suas pesquisas sobre a degeneração nervosa, conhecida como degeneração Walleriana), trabalhando em Londres, foi creditado pela realização do primeiro ECG, chamado de "eletrograma" à época.1,4-6 Esse marco (curiosamente também realizado na época no buldogue de Waller, "Jimmy") abriu o caminho para um novo campo de aplicação, embora a técnica e a qualidade resultante do traçado limitassem sua aplicabilidade.1,2,5,6 Os refinamentos de Einthoven com a introdução do galvanômetro de corda, melhorando muito a sensibilidade de seus antecessores, permitiram uma representação detalhada da atividade elétrica do coração no início do século XX.3,5,7 Isto possibilitou a análise de diferentes formas de onda, como onda P, complexo QRS e onda T, representando diversos fenômenos fisiológicos (despolarização auricular, despolarização ventricular e repolarização, respetivamente), semelhante à avaliação realizada nos registos atuais.5,7,8 Embora fosse uma grande melhoria, o aparelho completo necessário para produzir um ECG precoce pesava cerca de 270 kg, demandando o uso de duas salas e cinco pessoas para sua operação.1,4 Além disso, um sistema de resfriamento de água era necessário para prevenir o superaquecimento.1,5 Demonstrando uma visão impressionante, Einthoven, seguindo a sugestão de Johannes Bosscha (também professor da Universidade de Leiden), posteriormente ligou o laboratório em que a máquina estava instalada a um hospital a cerca de 1,5 quilômetros de distância por meio de um cabo telefônico, produzindo assim o primeiro "telecardiograma", conforme publicado em um artigo seminal em 1906.4,5,9,10 Essa inovação mostra duas facetas que ressoam profundamente nos cenários contemporâneos: a relevância da telemedicina, mesmo no início daquilo que, posteriormente, evoluiria para o campo da medicina cardiovascular, e os benefícios de uma interação positiva entre o ambiente acadêmico e a prática clínica.10

Einthoven esteve, desde cedo, profundamente interessado nas possíveis aplicações clínicas do ECG, especialmente devido ao seu proeminente papel acadêmico.1-3,6,9,10 Diferentes padrões eletrocardiográficos foram rapidamente relatados, alguns associados a processos patológicos, como angina e arritmias.4,9-11 Embora esteja além do escopo deste artigo, é importante lembrar que muitos indivíduos contribuíram grandemente para o uso clínico do ECG.11 Entre eles, entretanto, Sir Thomas Lewis, da University College London teve um papel fundamental nesta fase, conforme reconhecido por Einthoven.4,5,11 Por outro lado, embora tenha apresentado uma primeira iteração desta técnica, Waller (pelo menos em um primeiro momento) não compartilhava do mesmo entusiasmo com as suas aplicações clínicas.1,6,9 Ainda assim, mais tarde também forneceria novos dados sobre a sua utilização, nomeadamente sob a forma de uma série de ECGs.1,6

Da bancada ao leito – uso atual e perspectivas futuras para o eletrocardiograma

Ao longo da sua história ilustre, o ECG acompanhou diversos avanços importantes na medicina cardiovascular, incluindo modalidades de diagnóstico invasivas e não invasivas, bem como intervenções cada vez mais complexas.4,7,12-14 De forma notável, e considerando as melhorias tecnológicas desde o seu início – principalmente aquelas que compreendem a aquisição de sinais, a análise digital e o armazenamento, mas também o gigantesco salto em sua portabilidade quando comparado aos designs originais –, o ECG resistiu ao teste do tempo em uma infinidade de ambientes clínicos. Desde a sua utilização como exame de primeira linha, na avaliação de indivíduos com suspeita de síndromes coronarianas agudas, seu papel no estudo de arritmias e na seleção de indivíduos para intervenções como a terapia de ressincronização cardíaca, até sua combinação com outras metodologias (como o teste de esforço ou monitoramento contínuo), o ECG permanece onipresente na cardiologia contemporânea.12-16 Além disso, à medida que novas estruturas, como o advento e a rápida expansão da inteligência artificial, continuam transformando paradigmas anteriores, o uso do ECG como um modelo para novas avaliações enfatiza ainda mais sua relevância duradoura.7 Dada a visão de Einthoven do ECG como uma ferramenta clínica útil, é interessante formular hipóteses sobre qual seria sua reação ao testemunhar suas inúmeras aplicações nos dias de hoje. Além disso, ao recordarmos sua forte defesa do exercício físico, é interessante notar que a combinação destas duas facetas distintas, tão estimadas por Einthoven (o ECG e o exercício), tornou-se um dos testes mais extensivamente estudados e generalizados em toda a medicina cardiovascular: o teste ergométrico.15,16 Estes fatores constituem mais um elo entre os paradigmas atuais e uma das figuras mais eminentes da Cardiologia. Conforme aprimoramos nossa compreensão sobre a fisiologia cardiovascular, ao mesmo tempo em que desenvolvemos novas estratégias para otimizar o cuidado global ao paciente, é importante que haja uma reflexão sobre a sabedoria de nossos antepassados. Parafraseando a elegante expressão usada por Sir Isaac Newton, se conseguimos ver mais longe, é porque estamos sobre os ombros de gigantes.

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    » https://digitalcollections.universiteitleiden.nl/view/item/1581805

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    16 Jul 2024
  • Revisado
    24 Jul 2024
  • Aceito
    24 Jul 2024
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