Open-access Uso de Terapia Anticoagulante em Obesos: Qual a Evidência da Dose Ideal?

Palavras-chave Anticoagulantes; Enoxaparina; Fondaparinux; Obesidade; Síndrome Coronariana Aguda

Dados da Organização Mundial de Saúde apontam para mais de 1 bilhão de pessoas no mundo, uma a cada oito, com obesidade.1 No Brasil, segundo pesquisa da Vigilância de Fatores de Risco de Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (VIGITEC), uma a cada quatro pessoas da população adulta é obesa.2 Obesidade é definida por índice de massa corporal (IMC) maior ou igual a 30 kg/m2, enquanto obesidade mórbida é considerada para aqueles com IMC acima de 40 kg/m2. Dados epidemiológicos também pontuam alta prevalência de doença coronariana na população brasileira estimada em 5 a 8%.3

Embora as taxas de obesidade atinjam proporções epidêmicas em todo o mundo, a literatura médica carece de dados precisos sobre alterações na farmacocinética e farmacodinâmica das diversas medicações em pacientes com obesidade. As possíveis diferenças fisiológicas entre obesos e não obesos podem resultar em diferenças na distribuição e eliminação de fármacos, fatores importantes a serem considerados na determinação da posologia adequada para o tratamento farmacológico. A dose ideal da maioria dos anticoagulantes para os obesos não foi estabelecida, incluindo heparina de baixo peso molecular e pentassacarídeos. Dessa forma, o manejo terapêutico dos pacientes com síndrome coronariana aguda (SCA) e obesidade é desafiador e, consequentemente, pode influenciar a eficácia e a segurança dos anticoagulantes.

A dose ideal de enoxaparina é calculada com base no peso do paciente; entretanto, como não há distribuição da droga na gordura, existe a possibilidade de exposição excessiva ao efeito anticoagulante em obesos, o que contribui para a preocupação de concentrações supra terapêuticas quando utilizamos dose baseada no peso corporal.4 Já o fondaparinux é um pentassacarídeo sintético que atua como um inibidor seletivo do fator Xa tendo como vantagem a dose fixa, independente do peso corpóreo. Até o momento, poucos estudos foram realizados em pacientes obesos com a finalidade de testar o ajuste posológico, nenhum deles na população com SCA.

Nesta edição dos Arquivos Brasileiros de Cardiologia, em estudo de coorte retrospectivo, Darzé et al., compararam uso de enoxaparina e fondaparinux em 367 pacientes obesos internados com SCA, no período de 2010 a 2020. Foi definido como desfecho primário a combinação de mortalidade por todas as causas, reinfarto, acidente vascular cerebral e sangramento maior durante a hospitalização. Os autores não encontraram diferença no desfecho composto destacando a possibilidade de uso de fondaparinux ser tão efetiva quanto enoxaparina sem a necessidade de ajuste de dose.5

Alguns especialistas recomendam medir o fator anti-Xa em obesos, no entanto, o nível mínimo de atividade necessário para que o tratamento seja eficaz não foi bem definido. Os níveis alvo máximos de anti-Xa para dosagem duas vezes ao dia são normalmente 0,5 ou 0,6-1,0 UI/mL e podem ser utilizados como marcador substituto de eficácia e segurança terapêutica.4 O primeiro estudo a definir uma dose ideal foi uma série de casos descritos por Deal et al.6 que determinaram que a dose inicial para atingir o nível ideal de anti-Xa seria de 0,74 mg/kg em pacientes com IMC médio de 49,5 kg/m2. Estudos subsequentes definiram doses ótimas variando de 0,70 a 0,81 mg/kg por dose.7 Essa variabilidade provavelmente se deve a vários fatores: primeiro, parece que mesmo dentro de uma população de pacientes obesos, aqueles com IMC mais elevados necessitam de menor dose total para atingir níveis ideais de anti-Xa, particularmente em pacientes com IMC superior a 50 kg/m2; em segundo lugar, a variabilidade pode ser resultante do momento da mensuração do nível de anti-Xa.8

Para responder as questões anteriores Chilbert et al.,9 em revisão sistemática, avaliaram os níveis de anti-Xa em pacientes obesos recebendo terapia com enoxaparina na dose padrão (≥ 0,95 mg/kg) versus dosagens reduzidas que foram agrupadas em <0,75 mg/kg (muito baixa) e 0,75–0,85 mg/kg (baixa). Os pacientes que receberam 0,75–0,85 mg/kg apresentaram mais resultados na faixa terapêutica sem aumento aparente no risco trombótico, enquanto os pacientes que receberam ≥0,95 mg/kg tiveram aumento de eventos hemorrágico. Se for indicada a monitorização do anti-fator Xa, o nível de atividade deve ser determinado três a cinco horas após a dose e apenas depois do paciente ter recebido pelo menos duas doses. Recomenda-se monitorização clínica rigorosa de sinais e sintomas de complicações, como hemorragia ou trombose, particularmente naqueles com peso >150 kg ou IMC >40 kg/m2.10,11

Frente à escassez de dados, mais estudos são necessários, como o realizado por Darzé et al.,5 para fornecer diretrizes sobre a melhor abordagem para o uso adequado de anticoagulantes em pacientes obesos com SCA, garantindo assim a otimização dos resultados clínicos e a segurança dos pacientes. A enoxaparina oferece a vantagem de dosagem ajustada ao peso, o que pode ser crucial em alguns casos, mas requer uma vigilância mais rigorosa para evitar complicações hemorrágicas. O fondaparinux, com sua dosagem fixa e menor risco de sangramento, apresenta uma opção atraente, especialmente para pacientes com maior risco de eventos hemorrágicos. Sendo assim, a decisão terapêutica para o uso de anticoagulante em obesos, deve ser respaldada em uma abordagem holística, considerando as particularidades com atenção especial à função renal, histórico de sangramento e risco trombótico, visando maximizar os benefícios terapêuticos e minimizar os riscos.

  • Minieditorial referente ao artigo: Fondaparinux versus Enoxaparina no Tratamento de Pacientes Obesos com Síndrome Coronariana Aguda

Referências

  • 1 NCD Risk Factor Collaboration (NCD-RisC). Worldwide Trends in Underweight and Obesity from 1990 to 2022: A Pooled Analysis of 3663 Population-representative Studies with 222 Million Children, Adolescents, and Adults. Lancet. 2024;403(10431):1027-50. doi: 10.1016/S0140-6736(23)02750-2.
    » https://doi.org/10.1016/S0140-6736(23)02750-2
  • 2 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente. Departamento de Análise Epidemiológica e Vigilância de Doenças Não Transmissíveis. Vigitel Brasil 2023: Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico: Estimativas sobre Frequência e Distribuição Sociodemográfica de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas nas Capitais dos 26 Estados Brasileiros e no Distrito Federal em 2023. Brasília: Ministério da Saúde; 2023.
  • 3 Piegas LS, Avezum A, Guimarães HP, Muniz AJ, Reis HJ, Santos ES, et al. Acute Coronary Syndrome Behavior: Results of a Brazilian Registry. Arq Bras Cardiol. 2013;100(6):502-10. doi: 10.5935/abc.20130101.
    » https://doi.org/10.5935/abc.20130101
  • 4 Sebaaly J, Covert K. Enoxaparin Dosing at Extremes of Weight: Literature Review and Dosing Recommendations. Ann Pharmacother. 2018;52(9):898-909. doi: 10.1177/1060028018768449.
    » https://doi.org/10.1177/1060028018768449
  • 5 Darzé BR, Souza CCS, Borges QO, Ramos JVSP, Viana MS, Darzé ES, et al. Fondaparinux versus Enoxaparina no Tratamento de Pacientes Obesos com Síndrome Coronariana Aguda. Arq Bras Cardiol. 2024; 121(8):e20230793. DOI: https://doi.org/10.36660/abc.20230793
    » https://doi.org/10.36660/abc.20230793
  • 6 Deal EN, Hollands JM, Riney JN, Skrupky LP, Smith JR, Reichley RM. Evaluation of Therapeutic Anticoagulation with Enoxaparin and Associated Anti-Xa Monitoring in Patients with Morbid Obesity: A Case Series. J Thromb Thrombolysis. 2011;32(2):188-94. doi: 10.1007/s11239-011-0584-7.
    » https://doi.org/10.1007/s11239-011-0584-7
  • 7 Lee YR, Palmere PJ, Burton CE, Benavides TM. Stratifying Therapeutic Enoxaparin Dose in Morbidly Obese Patients by BMI Class: A Retrospective Cohort Study. Clin Drug Investig. 2020;40(1):33-40. doi: 10.1007/s40261-019-00855-9.
    » https://doi.org/10.1007/s40261-019-00855-9
  • 8 Lee YR, Vega JA, Duong HN, Ballew A. Monitoring Enoxaparin with Antifactor Xa Levels in Obese Patients. Pharmacotherapy. 2015;35(11):1007-15. doi: 10.1002/phar.1658.
    » https://doi.org/10.1002/phar.1658
  • 9 Chilbert MR, Zammit K, Ahmed U, Devlin A, Radparvar S, Schuler A, et al. A Systematic Review of Therapeutic Enoxaparin Dosing in Obesity. J Thromb Thrombolysis. 2024;57(4):587-97. doi: 10.1007/s11239-024-02951-w.
    » https://doi.org/10.1007/s11239-024-02951-w
  • 10 Czupryn MJ, Exline C. Dosing of Enoxaparin in Morbidly Obese Patients: A Retrospective Cohort. Hosp Pharm. 2018;53(5):331-7. doi: 10.1177/0018578718757518.
    » https://doi.org/10.1177/0018578718757518
  • 11 Abildgaard A, Madsen SA, Hvas AM. Dosage of Anticoagulants in Obesity: Recommendations Based on a Systematic Review. Semin Thromb Hemost. 2020;46(8):932-69. doi: 10.1055/s-0040-1718405.
    » https://doi.org/10.1055/s-0040-1718405

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    17 Jul 2024
  • Revisado
    07 Ago 2024
  • Aceito
    07 Ago 2024
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