Open-access Lesão biliovascular maior associada à colecistectomia com necessidade de revascularização arterial percutânea e hepatectomia direita estagiada: relato de caso

DESCRITORES: Colecistectomia; Hepatectomia; Lesão do sistema vascular

INTRODUÇÃO

A colecistectomia é atualmente uma das operações mais frequentemente realizadas. A incidência de lesão do ducto biliar secundário ocorre entre 0,2-0,3% na técnica aberta, enquanto na laparoscópica é de 0,5-0,8%7,9. Em relação às lesões vasculares iatrogênicas associadas às do ducto biliar, há relatos entre 12-39%1,4,5. Tais lesões agravam o prognóstico do paciente e complicam seu manejo. A melhor resolução para estes ainda não foi definida.

Entre as lesões vasculares associadas à colecistectomia, quase 90% estão na artéria hepática direita. Existem lesões vasculares raras associadas à lesão do ducto biliar que incluem a artéria hepática própria, a artéria hepática comum, o tronco principal da veia porta, o ramo direito da veia porta ou uma lesão venosa importante associada à lesão da artéria hepática direita. A literatura contém poucos relatos desses casos de lesão biliovascular grave.

A isquemia hepática com infarto do parênquima hepático ocorre com frequência e pode exigir ressecção ou transplante de fígado. A morte associada a esse tipo de lesão é próxima de 50% 2,8.

RELATO DE CASO

Homem de 56 anos com histórico de hipertensão arterial, refluxo gastroesofágico, depressão e hipotireoidismo, consultado para dor abdominal no quadrante superior direito de 20 dias de duração que se intensificou nos dois dias anteriores, acrescentando náusea e vômito. Foi admitido hemodinamicamente estável, afebril, com diagnóstico de colecistite aguda litíase leve. Foi operado por laparoscopia, onde colecistectomia complexa foi descrita com laceração da veia porta direita; portanto, a operação foi convertida em laparotomia, com sangramento de até três litros. Foi indicada transfusão de sangue. O sangramento foi controlado e a filtração biliar foi observada, motivo pelo qual o ducto biliar foi explorado e uma lesão do ducto biliar Strasberg E4 foi descrita7, que foi gerenciada com duas sondas de nelaton no duodeno. O paciente foi transferido para a unidade crítica do paciente após a operação, onde se recuperou e, posteriormente, encaminhado à equipe de cirurgia hepática, pancreática e biliar do Hospital Hernán Henríquez Aravena, Chile. Ele foi internado hemodinamicamente estável.

Tomografia computadorizada de abdome e pelve (Figura 1A) sugeriu isquemia hepática direita. Foi proposto um estudo vascular e a angiografia mostrou trombose parcial da veia porta direita (Figura 1B) e estenose completa da artéria hepática adequada (Figura 1C). Foi descrita isquemia do lobo hepático direito e hemi-fígado esquerdo com irrigação originária da artéria gástrica esquerda e da artéria gastroduodenal. A reperfusão endovascular da artéria hepática propriamente dita foi realizada com balão, obtendo a re-permeabilização da artéria hepática esquerda (Figura 1D). O paciente evoluiu com sepse e insuficiência hepática; foi realizada ressonância nuclear magnética do abdome com imagens sugestivas de infarto e coleta infectada no hemi-fígado direito, que foi tratada com drenagem percutânea. Devido à persistência da sepse, apesar de drenar a coleção, optou-se pela realização de hepatectomia direita, encontrando necrose completa do hemi-fígado direito e massa inflamatória que envolvia o retroperitônio, dificultando a dissecção da veia cava inferior. A hepaticostomia foi deixada no coto do ducto hepático esquerdo e as anastomoses foram adiadas devido às condições locais e à condição do paciente. Evoluiu com persistência de colestase, verificando mau funcionamento da hepaticostomia. Portanto, foi tomada a decisão de realizar uma hepaticojejunostomia terminolateral. O paciente evoluiu com fístula biliar de baixo débito, sem dilatação do ducto biliar e foi realizada drenagem percutânea. Ele se tornou hemodinamicamente estável, com persistência de disfunção hepática. Ultrassonografia duplex e a tomografia computadorizada do abdome mostraram remanescente hepático com perfusão arterial e venosa adequada, sem obstrução biliar (Figura 1E). A colestase diminuiu gradualmente e a paciente recebeu alta em boas condições no 38º dia de pós-operatório.

FIGURA 1
A) Isquemia do lobo hepático direito; B) trombose parcial da veia hepática direita; C) secção da artéria hepática própria; D) recanalização da artéria hepática esquerda; E) perfusão arterial eficaz do remanescente hepático

DISCUSSÃO

Apesar da colecistectomia ser comum em nosso ambiente, a lesão do ducto biliar com lesão vascular associada continua presente, e este foi um caso extremo que exigiu tratamento multidisciplinar.

A literatura contém poucos relatos de grandes lesões biliovasculares; na maioria dos casos, estão associados a isquemia hepática ou disfunção hepática, o que pode exigir ressecção ou transplante hepático. A taxa de mortalidade associada a essas lesões é próxima de 50%8.

Em alguns casos desse tipo de lesão, a ressecção hepática com reconstrução do ducto biliar tem sido preferida ao transplante de fígado3,10. Há relato de uma lesão da veia porta descoberta no intra-operatório, onde foram propostas hepatectomia e derivação portossistêmica, com subsequente transplante de fígado de um cadáver doador11.

Nesse caso, enfrentamos o desafio de uma lesão na veia porta direita com isquemia hemi-hepática e lesão da artéria hepática propria, com envolvimento da artéria hepática esquerda. A revascularização endovascular da artéria hepática adequada foi muito importante para garantir o fluxo para a artéria hepática esquerda.

Outro desafio foi definir o ponto de realização da ressecção hepática em um paciente com isquemia e necrose hepática, com risco de desenvolver infecção e sepse.

Com os poucos casos existentes na literatura, é impossível determinar a superioridade da hepatectomia precoce sobre a hepatectomia diferida. Nesse caso, a reperfusão da artéria hepática esquerda foi muito importante para obter perfusão adequada do remanescente pós-hepatectomia.

Durante a evolução e programação da ressecção hepática, o paciente desenvolveu infecção no hemi-fígado direito com necrose. O tratamento inicial foi drenagem da coleção e antibioticoterapia, sem melhora; portanto, decidiu-se realizar ressecção hepática de emergência. A hepaticostomia apresentou mau funcionamento, produzindo colestase, apesar da melhora na disfunção orgânica do paciente; então, a decisão foi realizar uma anastomose por hepaticojejunostomia em Y-de-Roux. Nesse caso, como em todos os casos de reconstrução do ducto biliar, consideramos fundamental o uso da ampliação e da técnica microcirúrgica6.

Após a reconstrução biliar e a persistência da colestase, a imagem é muito importante para garantir perfusão adequada para o fígado remanescente e descartar complicações biliares.

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  • Fonte de financiamento:
    não há

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Maio 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    22 Maio 2019
  • Aceito
    10 Dez 2019
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