Open-access COMPLICAÇÃO POSSÍVEL APÓS TRANSPLANTE HEPÁTICO EM PACIENTE COM BYPASS GÁSTRICO PRÉVIO: NÃO ESQUECER O ESTÔMAGO EXCLUSO! RELATO DE CASO E REVISÃO DA LITERATURA.

DESCRITORES: Transplante de órgãos; Obesidade; Cirurgia bariátrica; Úlcera péptica perfurada; Coto gástrico

INTRODUÇÃO

A obesidade é uma epidemia global8, para a qual o tratamento cirúrgico provou ser o mais eficaz para a obesidade mórbida8. A prevalência estimada de doença hepática gordurosa não alcoólica em obesos é três vezes maior que na população em geral8. Pode ocorrer evolução para esteato-hepatite não alcoólica em até 42% dos casos, que vem se tornando uma indicação cada vez mais frequente para o transplante de fígado (TF)8. Como consequência, é provável que o número de pacientes na lista de espera por LT e que foram submetidos à cirurgia bariátrica se eleve, com aumento potencial na taxa de complicações. A perfuração da úlcera péptica (UP) é uma delas. Após o bypass gástrico em Y-de-Roux (BGYR), a anatomia e a fisiologia modificadas são um fator de risco para ulceração péptica de estômago excluso. Além disso, o TF possui fatores de risco específicos para UP. O diagnóstico no estômago excluso pode ser desafiador devido à ausência de acesso endoscópico.

O objetivo deste estudo é relatar o caso de um receptor de TF que apresentou PU perfurada no estômago excluso após BGYR. Para o melhor do nosso conhecimento, este é o primeiro caso relatado na literatura médica em um paciente transplantado de fígado.

RELATO DE CASO

Mulher de 45 anos com operação prévia de BGYR segundo técnica de Fobi-Capella foi diagnosticada com cirrose biliar primária e listada para TF. A cirurgia bariátrica foi realizada sete anos antes, seguida de uma reintervenção de emergência por obstrução da anastomose jejunojejunal. A paciente apresentava anticorpos IgG positivos para citomegalovírus e detecção negativa de DNA viral por PCR (reação em cadeia da polimerase) quantitativo. A paciente não apresentava outras comorbidades relevantes.

Enquanto se encontrava na lista de espera, ela foi internada no departamento de emergência com melena e hematochezia. O exame físico revelou hipotensão, palidez, icterícia e abdome indolor e sem ascite. O escore de MELD (Model for End-Stage Liver Disease) alcançou 33. A paciente não apresentava histórico de tabagismo, etilismo ou fazia uso de anti-inflamatórios não esteróides, ácido acetilsalicílico ou inibidores da bomba de prótons (IBP). O status de Helicobacter pylori (HP) era desconhecido. A paciente foi tratada clinicamente com cristaloides intravenosos, transfusão de hemoderivados, IBP em dose plena e ciprofloxacino. A endoscopia digestiva alta foi negativa para sangramento agudo e o ultrassom Doppler abdominal mostrou sinais de hipertensão portal com veia porta patente. Ela apresentou evolução clínica satisfatória e, seis dias após a admissão, ela foi submetida a TF doador falecido sem complicações perioperatórias.

O regime de imunossupressão pós-operatório consistiu em prednisona, tacrolimus e micofenolato de sódio. A antibioticoterapia profilática consistiu em amicacina e ampicilina até o 2º dia pós-operatório (PO), ivermectina no 2º e 3º PO e sulfametoxazol a partir do 8º PO. Ácido acetilsalicílico e heparina profilática de baixo peso molecular (HBPM) foram suspensos do 3º PO para o 6º PO por causa da queda do nível de hemoglobina sem sinais de sangramento; no entanto, a HBPM foi subsequentemente reintroduzida em dose terapêutica devido à trombose de um ramo da veia porta direita. No 7º PO, a biópsia hepática foi realizada devido à elevação das enzimas hepáticas. Rejeição celular aguda moderada foi diagnosticada e tratada com pulsoterapia com metilprednisolona. IBPs foram administrados durante toda a hospitalização.

No 14º PO, a paciente apresentou dor abdominal aguda. Tomografia computadorizada de abdome com contraste intravenoso mostrou pequenos focos de pneumopertônio e líquido livre em pequena quantidade próximo ao estômago (Figura 1).

Realizou-se laparotomia de emergência e uma úlcera perfurada do corpo do estômago excluído foi encontrada e reparada por fechamento simples. No 16º PO, o PCR quantitativo para DNA do citomegalovírus, realizado de rotina, foi positivo (41UI/ml 1,62 log (UI/ml)), mas não foi necessária terapia antiviral nem redução no regime imunossupressor. A HBPM profilática foi reintroduzida no 16º PO. A cultura do líquido abdominal coletado no intraoperatório mostrou-se positiva para Enterococus faecium e Klebsiella pneumoniae produtora de beta-lactamase de espectro estendido (ESBL). Antibioticoterapia consistiu em vancomicina, meropenem e fluconazol. A paciente recebeu alta no 26º PO com imunossupressores, sulfametoxazol, IBP e HBPM profilática, sendo este último interrompido dez dias depois.

FIGURA 1
Tomografia computadorizada de abdome com contraste intravenoso na fase arterial, mostrando ar livre anterior ao estômago, edema periportal do fígado transplantado e esplenomegalia.

Durante o seguimento ambulatorial, o PCR quantitativo para o DNA do citomegalovírus se tornou negativo seis semanas após a alta e continuou-se IBP em dose dobrada. Sete meses após a alta, a paciente foi submetida à enteroscopia com balão duplo com o objetivo de se atingir o estômago excluso, o segundo deste tipo de exame relatado após perfuração de UP no remanescente gástrico13. Devido às enteroanatomoses confeccionadas após o BGYR e a reoperação, não foi possível atingir o estômago excluso. O exame patológico das biópsias da bolsa gástrica e da alça alimentar foi negativo para alterações inflamatórias, citomegalovírus ou HP. Três anos após o transplante, a paciente permanece bem sob avaliação rotineira ambulatorial.

DISCUSSÃO

Relatos de perfuração de UP no estômago excluso após BGYR são raros. Revisão da literatura na base de dados Pubmed, limitada a artigos em inglês, encontrou apenas 29 casos relatados (Tabela 1). A incidência de UP perfurada após BGYR por via aberta na série de Macgregor et al. é de 0,25%10. Com base nesta revisão, a proporção de homens para mulheres é de 1:1,9. A idade no momento da perfuração da UP variou de 24 a 63 anos (média 42,6). O intervalo entre o BGYR e a apresentação da UP perfurada variou de cinco dias a 13 anos. Vinte e um pacientes apresentavam perfuração de úlcera duodenal (72,4%), sete apresentavam perfuração de úlcera gástrica (24,1%) e um apresentava ambos (3,4%, Tabela 1)10. Relatos de UP após TF não foram encontrados na literatura.

TABELA 1
Resumo dos casos de perfuração de estômago excluso

As modificações anatômicas e fisiológicas após o BGYR podem contribuir para a patogênese da UP no estômago excluso. Maior produção de ácido pode ser promovida por estímulos hormonais e vagais (que não podem ser tamponados pelos alimentos ingeridos ou por secreção fisiológica pancreática de bicarbonato) e por pequenas bolsas gástricas (que aumentam a massa de células parietais no remanescente distal)3,10. A mucosa gástrica do estômago excluso também é exposta a lesão crônica e possivelmente carcinogênica pelo refluxo biliar duodenogástrico, como demonstrado pela enteroscopia com balão duplo15. Essa técnica detectou HP em 20% dos estômagos excluídos e a gravidade da gastrite foi associada ao status positivo da HP15. Como todos os pacientes com detecção de HP positiva no estômago excluso também apresentaram detecção positiva na bolsa gástrica, a pesquisa de HP no estômago excluso pode assim ser desnecessária15. A doença de UP no estômago excluso compartilha os mesmos fatores de risco de UP geral ou úlceras marginais, mas o transplante de órgãos sólidos também apresenta fatores de risco próprios, principalmente em relação à terapia de imunossupressão. Após o transplante renal, corticosteroides em altas doses para rejeição estão associados à maior incidência de ulcera gástrica9. Além disso, o micofenolato de mofetil também retarda o ciclo de regeneração das células gástricas9. Entre as infecções, o citomegalovírus é o patógeno mais comum que complica o transplante de órgãos sólidos7.

O diagnóstico de UP perfurada no estômago excluso é frequentemente tardio. O pneumoperitônio em exame de imagem é raro, provavelmente porque o ar no estômago excluso é absorvido progressivamente. A tomografia computadorizada é o exame diagnóstico mais preciso. A enteroscopia com balão duplo pode ser útil no sangramento gastrointestinal de origem desconhecida após o BGYR, pois o sangramento pode preceder a perfuração, como em no nosso caso e em dois outros relatados3,14. No caso de complicações gastrointestinais após TF, doença invasiva por citomegalovírus deve ser descartada através da combinação de testes para doença ativa, como PCR quantitativa sérica e biópsias seriadas do trato gastrointestinal com imunoistoquímica para maximizar a sensibilidade diagnóstica7. O diagnóstico diferencial inclui perfuração secundária a hérnia interna ou malignidade gástrica.

Vários tratamentos cirúrgicos ou endoscópicos estão disponíveis para UP perfurada. O controle da sepse é a prioridade no cuidado pós-operatório18. A administração precoce de antibióticos intravenosos de amplo espectro é importante, embora o efeito da terapia antifúngica não seja claro18. Além disso, a erradicação da HP reduz a incidência de recorrência da UP18. No cenário de uma UP perfurada no estômago excluso, o tratamento de emergência mais comumente relatado é cirúrgico e consiste em rafia simples (Tabela 1). Dados sobre IBP no pós-operatório, antibióticos, erradicação do HP e anticoagulação profilática no contexto do estômago excluso são precários. Alguns autores propõem a gastrectomia do remanescente gástrico como tratamento definitivo em caso de perfuração, outros sugerem ressecção primária concomitante ao BGYR5,10,17. Argumentos a favor da gastrectomia do estômago excluso incluem a eliminação da necessidade de acompanhamento do remanescente gástrico -que é quase inacessível aos exames endoscópicos - a ausência de fístulas gastrogástricas e a possível redução de úlceras gastroduodenais por ressecção da parte do estômago responsável pela liberação de gastrina6. No entanto, as desvantagens incluem o sangramento dos vasos omentais, necrose gordurosa omental com formação de abscesso, fístula de coto duodenal, prolongamento do tempo cirúrgico, crescimento bacteriano na alça biliopancreática e deficiência de vitamina B125,6. Portanto, o tratamento prolongado com IBP pode ser uma alternativa para pacientes de alto risco6. Não se encontram relatos de gastrectomia do estômago excluso durante o TF. Finalmente, a prevenção e o tratamento da infecção por citomegalovírus devem ser rigorosos em pacientes transplantados com BGYR para evitar, entre outras complicações, perfuração gastrointestinal.

Referências bibliográficas

  • 1 Andersen OS, Paine GT, Morse EK. An unusual complication of gastric bypass: perforated antral ulcer. Am J Gastroenterol. 1982;77:93-4.
  • 2 Arshava EV, Mitchell C, Thomsen T, Wilkinson NW. Delayed perforation of the defunctionalized stomach after Roux-en-Y gastric bypass surgery. Surg Obes Relat Dis. 2006;2:472-6.
  • 3 Bjorkman DJ, Alexander JR, Simons MA. Perforated duodenal ulcer after gastric bypass surgery. Am J Gastroenterol. 1989;84:170-2.
  • 4 Charuzi I, Ovrat A, Peiser J, Avinoah E, Lichtman J. Perforation of duodenal ulcer following gastric exclusion operation for morbid obesity. J Clin Gastroenterol. 1986;8:605-6.
  • 5 Gypen BJ, Hubens GJ, Hartman V, Balliu L, Chapelle TC, Vaneerdeweg W. Perforated duodenal ulcer after laparoscopic gastric bypass. Obes Surg. 2008;18:1644-6.
  • 6 Iskandar ME, Chory FM, Goodman ER, Surick BG. Diagnosis and management of perforated duodenal ulcers following Roux-En-Y gastric bypass: a report of two cases and a review of the literature. Case Rep Surg. 2015;2015:353468.
  • 7 Kotton CN. CMV: Prevention, Diagnosis and Therapy. Am J Transplant. 2013;13 Suppl 3:24-40;
  • 8 Lazzati A, Iannelli A, Schneck AS, Nelson AC, Katsahian S, Gugenheim J, et al. Bariatric surgery and liver transplantation: a systematic review a new frontier for bariatric surgery. Obes Surg. 2015;25:134-42.
  • 9 Lucan VC, Berardinelli L. Gastrointestinal side effects of post-transplant therapy. J Gastrointestin Liver Dis. 2016;25:367-73.
  • 10 Macgregor AM, Pickens NE, Thoburn EK. Perforated peptic ulcer following gastric bypass for obesity. Am Surg. 1999;65:222-5.
  • 11 Mittermair R, Renz O. An unusual complication of gastric bypass: perforated duodenal ulcer. Obes Surg. 2007;17:701-3.
  • 12 Moore EE, Buerk C, Moore G. Gastric bypass operation for the treatment of morbid obesity. Surg Gynecol Obstet. 1979;148:764-5.
  • 13 Ovaere S, Tse WH, Schipper EE, Spanjersberg WR. Perforation of the gastric remnant in a patient post-Roux-en-Y gastric bypass. BMJ Case Rep. 2016;2016.
  • 14 Papasavas PK, Yeaney WW, Caushaj PF, Keenan RJ, Landreneau RJ, Gagné DJ. Perforation in the bypassed stomach following laparoscopic Roux-en-Y gastric bypass. Obes Surg. 2003;13:797-9.
  • 15 Safatle-Ribeiro AV, Kuga R, Iriya K, Ribeiro U Jr, Faintuch J, Ishida RK, et al. What to expect in the excluded stomach mucosa after vertical banded Roux-en-Y gastric bypass for morbid obesity. J Gastrointest Surg. 2007;11:133-7.
  • 16 Sasse KC, Ganser J, Kozar M, Watson RW, McGinley L, Lim D, et al. Seven cases of gastric perforation in Roux-en-Y gastric bypass patients: what lessons can we learn? Obes Surg. 2008;18:530-4.
  • 17 Snyder JM. Peptic ulcer following gastric bypass. Obes Surg. 2007;17:1419.
  • 18 Søreide K, Thorsen K, Harrison EM, Bingener J, Møller MH, Ohene-Yeboah M, et al. Perforated peptic ulcer. Lancet. 2015;386:1288-98.
  • Fonte de financiamento:
    não há

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    04 Dez 2019
  • Aceito
    18 Fev 2020
location_on
Colégio Brasileiro de Cirurgia Digestiva Av. Brigadeiro Luiz Antonio, 278 - 6° - Salas 10 e 11, 01318-901 São Paulo/SP Brasil, Tel.: (11) 3288-8174/3289-0741 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revistaabcd@gmail.com
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Acessibilidade / Reportar erro