Open-access “A falta de informação nos afasta do remédio, do bem-estar, da harmonia...”: estudo de método misto com demandantes de medicamentos pela via administrativa

Resumo

A necessidade de recorrer ao gestor público de saúde para efetivar o direito ao acesso a medicamentos caracteriza a via administrativa. O estudo analisou as percepções dos usuários que acionaram a via administrativa sobre as barreiras para o acesso a medicamentos no setor público de saúde de uma capital brasileira. Foi realizado estudo de método misto com grupo focal, questionário com demandantes e descrição dos medicamentos demandados pela via administrativa. Os resultados apontam a interdependência da assistência farmacêutica com as áreas de interfaceamento para a garantia do acesso. As barreiras relativas aos indivíduos refletem o comprometimento do desenvolvimento da cidadania, justificando o custo do medicamento motivar a demanda. As barreiras à prestação dos serviços contemplam disponibilidade irregular dos medicamentos, insuficiência de recursos e qualidade insatisfatória dos serviços. A dificuldade para conseguir consultas médicas e a exigência da prescrição originada no setor público são barreiras ao setor saúde. As barreiras acima do setor saúde são cumprimento dos procedimentos administrativos, corrupção e clientelismo. A via administrativa intensifica as iniquidades no acesso à saúde no Brasil.

Palavras-chave: Assistência farmacêutica; Acesso aos serviços de saúde; Disparidades nos níveis de saúde; Brasil

Abstract

The need to request public health managers to ensure the right of access to medicines characterizes an administrative case and the method to do so is called the administrative route. This mixed method study aimed to analyze the perceptions of plaintiffs requesting medications by the administrative route about barriers to access medicines in the Brazilian public health sector. Data were gathered through focus groups and questionnaires. The results point to the interdependence of pharmaceutical services with the interfacing areas to ensure access. The barriers related to individuals reflect the commitment to develop citizenship, justifying the cost of the medicine to motivate the demand. Barriers to service provision include irregular availability of medicines, insufficient resources, and unsatisfactory quality of services. The difficulty in obtaining medical consultations and prescriptions originating in the public sector are barriers to the health sector. The barriers above the health sector are compliance with administrative procedures, corruption, and clientelism. The administrative route intensifies inequities in access to healthcare in Brazil.

Key words: Pharmaceutical services; Health services accessibility; Health status disparities; Brazil

Introdução

A insuficiência na disponibilidade e na equidade do acesso aos medicamentos essenciais1 tem contribuído para elevar os gastos com medicamentos e impedir o progresso dos sistemas de saúde com cobertura universal2. É nesse contexto que o Brasil está inserido3, tendo instituído um sistema (Sistema Único de Saúde - SUS) que garante à população acesso universal, equitativo e integral às ações e serviços de saúde4.

Em que pese o país ter instituído e revisado periodicamente a lista de medicamentos essenciais, o princípio da integralidade é peremptório para o direito de acesso a medicamentos, ainda que estes estejam fora dessa lista. Buscando efetivar esse direito, muitos cidadãos recorrem diretamente ao gestor do serviço público de saúde, caracterizando o acesso a medicamento pela via administrativa5. Essa prática se tornou comum no Brasil, muitas vezes vista como uma maneira de amenizar as externalidades relacionadas à judicialização5-7.

Um olhar da literatura acerca da via administrativa frente aos princípios do SUS permitem uma melhor compreensão sobre o tema. Essa via confere ao poder executivo melhor gestão e controle do que está sendo solicitado, oportunizando a implementação da política pública de acesso universal. Ao restringir essas demandas aos usuários com prescrição emitida pelo setor público de saúde5, infringe-se o princípio da universalidade, visto que é legítimo que os cidadãos possam reclamar ao Estado por medicamentos, independente da natureza jurídica do prestador do cuidado à saúde4.

A via administrativa tem sido considerada equânime por atender demandas de indivíduos de renda mais baixa5,8. Entretanto, o acesso só ocorre para a minoria que reclama por esse direito. Além disso, algumas situações apontam para a falta de equidade dessa via, tais como o favorecimento pessoal no deferimento dessas solicitações9 e a fluidez dos demandantes entre a assistência pública e a privada de maneira complementar5,10.

Ao confrontar os medicamentos fornecidos pela via administrativa com as listas de medicamentos essenciais, estudos têm demonstrado maior racionalidade no deferimento dessas demandas e promoção do princípio da integralidade. Assim, tem sido reportada a redução no deferimento de medicamentos com alternativas terapêuticas e o aumento daqueles que não constam nessas listas. Além disso, observa-se o fornecimento de medicamentos presentes nessas listas, retratando as falhas na implementação da política pública de saúde5,8,9,11.

A literatura descreve relevantemente as características dos demandantes e o conteúdo das demandas de medicamentos pela via administrativa5-11. Porém, ela ainda é escassa e insuficiente para compreender a percepção dos cidadãos acerca dessa via: O que motiva um indivíduo a demandar medicamento pela via administrativa? A via administrativa é capaz de romper as barreiras de acesso a medicamentos existentes no setor público de saúde?

A maioria dos estudos sobre acesso a medicamentos se dedicam a avaliar a disponibilidade dos medicamentos nos serviços de saúde, ignorando não somente as demais dimensões do acesso, mas principalmente, a interdependência das ações da assistência farmacêutica com os componentes dos diversos níveis do sistema de saúde. Observa-se, ainda, uma carência na adoção de um referencial teórico que norteie de forma sustentável os estudos qualitativos sobre o acesso a medicamentos. Assim, esse estudo teve como objetivo analisar as percepções dos usuários que acionaram a via administrativa sobre as barreiras para o acesso a medicamentos no setor público de saúde brasileiro.

Referencial teórico-metodológico

Desenho e local do estudo

Esse é um estudo de método misto envolvendo grupo focal para explorar a percepção dos demandantes de medicamentos pela via administrativa acerca das barreiras de acesso aos mesmos, questionário para traçar o perfil dos participantes do grupo focal e descrição dos medicamentos demandados.

O estudo foi desenvolvido em uma capital da região Centro-Oeste do Brasil. De acordo com a Pesquisa Nacional de Acesso, Utilização e Promoção do Uso Racional de Medicamentos (PNAUM), realizada nos serviços de saúde em 2014, a região Centro-Oeste teve o pior desempenho em nível nacional tanto para a satisfação dos usuários com os serviços de assistência farmacêutica na atenção primária12, quanto para a percepção dos usuários sobre o acesso total aos medicamentos no SUS (46,3%)13. Na PNAUM de base populacional, somente 44,8% dos adultos e idosos da região centro-oeste referiram acesso gratuito total ao tratamento das doenças crônicas14.

O município estudado, com aproximadamente 1,4 milhão de habitantes, contava com 79 serviços de distribuição de medicamentos entre as 119 unidades básicas de saúde. Desses, apenas um era destinado ao atendimento das demandas administrativas, em crescimento desde 2010 após um acordo de cooperação técnica firmado entre o Ministério Público Estadual e a Secretaria Municipal de Saúde para priorizar as demandas de medicamentos pela via administrativa em detrimento da judicial15. Assim, aproveitando-se a janela de oportunidade criada por esse evento, o estudo foi realizado após a consolidação da via administrativa no município.

Seleção dos participantes

A seleção dos participantes partiu de um levantamento de todos os processos administrativos protocolados na Secretaria de Municipal de Saúde no período de outubro de 2012 a março de 2013, totalizando 713 processos. Foram selecionados aqueles deferidos para o fornecimento de medicamentos e disponíveis no acervo físico da Farmácia destinada ao atendimento dessas demandas.

Os usuários dos 119 processos selecionados foram contatados por telefone e convidados a participar do estudo. Para os usuários menores de 18 anos de idade, identificou-se o acompanhante com idade igual ou superior a 18 anos com conhecimento do itinerário terapêutico.

Os representantes de 105 processos foram efetivamente abordados para a finalidade da pesquisa, dos quais 36 aceitaram o convite, totalizando 41 participantes entre usuários e acompanhantes. Foram excluídos os representantes de 69 processos que recusaram o convite alegando falta de tempo e/ou interesse, impedimento em decorrência da doença ou mudança de residência do município. Além disso, foram excluídos os representantes de 14 processos não contatados após seis tentativas em dias e horários distintos.

Coleta de dados

Todos os dados foram coletados em abril de 2013 na Farmácia destinada ao atendimento das demandas administrativas. A escolha e a preparação do ambiente pautaram-se na garantia da privacidade dos participantes e na acomodação daqueles com dificuldades de locomoção, utilizando-se uma sala com acesso restrito aos participantes e pesquisadores e sem qualquer tipo de contato com os colaboradores e/ou usuários da Farmácia antes ou durante a coleta de dados.

Foram constituídos dois grupos como unidades de análise: G-Público, constituído pelos representantes dos processos abertos com prescrições originadas no setor público de saúde; G-Privado, constituído pelos representantes dos processos abertos com prescrições originadas no setor privado.

A coleta de dados se deu em cinco sessões de grupo focal, sendo três destinadas ao G-Público - com 14 usuários e 12 acompanhantes, demandantes de 22 processos - e duas sessões ao G-Privado - com 8 usuários e 7 acompanhantes, demandantes de 14 processos.

As sessões foram norteadas pelas seguintes questões: Como foi para vocês a experiência para conseguir o medicamento? Quais foram os fatores que os levaram a buscar esse medicamento no setor público? Como vocês avaliam o acesso a medicamento no setor público? Além dos serviços públicos, quais são os outros fatores que podem interferir no acesso a medicamento? As sessões de aproximadamente 90 minutos foram conduzidas pelo mesmo pesquisador moderador e dois observadores tomando notas, os quais não tiveram contato prévio com os participantes. Todas as sessões foram gravadas digitalmente e armazenadas em um arquivo com acesso restrito aos pesquisadores, sendo posteriormente transcritas pelos observadores. Uma síntese de cada sessão foi feita pelo moderador, oportunizando aos participantes acrescentar, esclarecer ou mudar alguma informação. Ao término, os pesquisadores fizeram os registros relevantes no diário de campo para subsidiar a análise.

O questionário para traçar o perfil dos participantes foi fornecido no início e recolhido ao término da sessão de grupo focal, o que contemplou: idade, sexo, estado civil, escolaridade, ocupação e renda familiar.

Os dados dos medicamentos demandados nos 36 processos dos participantes do grupo focal contemplaram: origem da prescrição e presença do medicamento nas listas de medicamentos essenciais16,17.

Análise dos dados

A análise do grupo focal foi realizada em uma planilha eletrônica e fundamentada nas perspectivas teóricas do quadro conceitual proposto por Bigdeli e colaboradores18, que classifica as barreiras de acesso a medicamentos em cinco níveis: indivíduos, famílias e comunidade; prestação de serviços de saúde; setor saúde; acima do setor saúde/contexto nacional; acima do setor saúde/contexto internacional.

A análise interpretativa foi conduzida pelos pesquisadores da equipe em um processo contínuo e simultâneo à coleta de dados, seguindo as etapas propostas por Braun & Clarke19: familiarização com os dados, identificação dos códigos, agrupamento dos códigos em núcleos temáticos, revisão, definição e nomeação final dos núcleos, e elaboração da descrição e interpretação dos significados expressos pelos participantes em cada núcleo. A definição e nomeação dos núcleos temáticos considerou os aspectos que emergiram das falas dos participantes dentro dos cinco níveis do sistema de saúde descritos no quadro conceitual adotado18.

Os dados do perfil dos participantes e dos medicamentos demandados foram analisados por estatística descritiva e apresentados em números absoluto e relativo.

Aspectos éticos

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição sede da pesquisa com protocolo número 021/12. Todos os participantes consentiram formalmente a participação no estudo a partir do Termo de consentimento livre e esclarecido.

Resultados

Os depoimentos apresentados ao longo do texto demonstram a heterogeneidade das experiências dos participantes para romper as barreiras de acesso aos medicamentos demandados pela via administrativa, assim como a complexidade e a interdependência desse acesso entre os diferentes níveis do sistema de saúde.

Os resultados estão apresentados em quatro núcleos temáticos: barreiras relacionadas ao indivíduo, à família e à comunidade; barreiras relacionadas à prestação de serviços de saúde; barreiras relacionadas ao setor saúde; barreiras que estão acima do setor saúde/contextos nacional e internacional. A Figura 1 ilustra as barreiras de acesso a medicamento pela via administrativa percebidas pelos demandantes, utilizando a estrutura proposta pelo quadro conceitual adotado18.

Figura 1
Barreiras de acesso a medicamentos percebidas pelos demandantes da via administrativa.

Barreiras relacionadas ao indivíduo, à família e à comunidade

Observou-se que, por mais que alguns itinerários terapêuticos sejam mais frequentes entre os demandantes de medicamentos pela via administrativa, as barreiras a esse acesso não são percebidas da mesma forma e magnitude pelos participantes. Esse fato é atribuído aos capitais físico, natural, humano e social de cada participante, influenciando diretamente no contexto de vulnerabilidade a que um indivíduo está inserido e nas suas interações com os prestadores de serviços no momento da busca pelo medicamento (Quadro 1).

Quadro 1
Narrativas referentes às barreiras de acesso a medicamentos no nível do sistema de saúde “Indivíduos, famílias e comunidade”, Brasil, 2013.

O perfil dos usuários e acompanhantes contribuem para a compreensão dessa vulnerabilidade. Observou-se que há diferença entre os grupos analisados, com predominância entre os usuários do G-Público de idosos com 60 anos ou mais (12; 54,5%), sexo feminino (14; 63,6%), 8 a 11 anos de estudo (11; 57,8%), aposentado/pensionista (10; 52,6%), vivendo com companheiro (12; 54,5%) e renda familiar média de U$ 1.030,26 ± 547,62. No G-Privado predominaram crianças e adolescentes de 0 a 19 anos (7; 50,0%), sexo masculino (9; 64,3%), 12 ou mais anos de estudo (5; 41,7%), sem atividade remunerada (6; 54,5%), vivendo sem companheiro (12; 85,7%) e renda familiar média de U$ 1.921,46 ± 1.813,96. Entre os acompanhantes predominaram no G-Público adultos de 20 a 59 anos (8; 80,0%), sexo feminino (7; 58,3%), 4 a 7 anos de estudo (6; 54,5%), exercendo atividade remunerada (6; 50,0%) e renda familiar média de U$ 1.005,50 ± 514,56. Entre os acompanhantes do G-Privado predominaram adultos de 20 a 59 anos (6; 85,7%), sexo feminino (5; 71,4%), 12 ou mais anos de estudo (5; 71,4%), exercendo atividade remunerada (4; 57,1%) e renda familiar média de U$ 2.907,33 ± 3.043,81.

A análise do capital físico demonstrou que, apesar da renda média entre os participantes do grupo G-Privado ser mais elevada, o custo dos medicamentos foi a principal barreira de acesso do lado da demanda para ambos os grupos. Para minimizar o comprometimento da renda familiar com a aquisição de medicamentos até conseguir obtê-los pelo SUS, as principais medidas adotadas pelos participantes foram: recebimento de doação da família e/ou da comunidade, substituição do medicamento de escolha por alternativa mais barata, redução da dose e/ou interrupção do tratamento.

Os elevados gastos com medicamentos podem interferir no capital natural dos demandantes, em especial no que ser refere ao comprometimento do acesso às necessidades básicas, tais como alimentação.

Quanto aos capitais humano e social, destaca-se a heterogeneidade entre as percepções dos participantes sobre o reconhecimento do direito à saúde, não obstante viverem em um país que adota um sistema de saúde fundamentado nos princípios da universalidade, integralidade e igualdade no acesso. A dificuldade do acesso pode levar o cidadão a desconsiderar os princípios do sistema e a defender a focalização.

Os médicos configuraram os principais informantes da via administrativa aos participantes desse estudo. O desconhecimento dessa via como alternativa para a obtenção do medicamento é uma importante barreira que, ao ser superada, torna os demandantes agentes ativos na propagação de informações a profissionais de saúde e à comunidade em geral.

Barreiras relacionadas à prestação de serviços de saúde

As barreiras de acesso a medicamentos relacionadas à prestação de serviços de saúde representam um dos níveis do lado da oferta. Em relação ao medicamento propriamente dito, os participantes apontaram a disponibilidade irregular, a inacessibilidade geográfica e a baixa qualidade dos medicamentos genéricos (Quadro 2).

Quadro 2
Narrativas referentes às barreiras de acesso a medicamentos no nível do sistema de saúde “Prestação de serviços de saúde”, Brasil, 2013.

A disponibilidade irregular dos medicamentos foi percebida em pontos assistenciais distintos entre os dois grupos analisados, sendo predominantemente referente aos medicamentos das unidades básicas de saúde pelos participantes do G-Público e aos medicamentos deferidos pela via administrativa pelos participantes do G-Privado. O elevado número de medicamentos presentes nas listas de medicamentos essenciais demandados administrativamente nesse estudo [G-Privado: 18(72,0%); G-Público: 17(47,2%)] corrobora essa disponibilidade percebida.

Além dos medicamentos, foram apontadas também barreiras relacionadas aos recursos necessários para a prestação do serviço de saúde, retratando a interdependência entre eles para que a qualidade do serviço prestado seja alcançada. As percepções compreenderam a má gestão do financiamento da saúde, a precária estrutura física das unidades de saúde, a insuficiência quali e quantitativa dos profissionais para o atendimento da demanda e a deficiência da comunicação por parte dos profissionais de saúde. Além disso, os participantes apontaram a falta de conhecimento e de interesse da equipe em orientar os usuários sobre o acesso a medicamentos. Assim, as falhas relacionadas à informação foram unânimes entre os grupos analisados, compreendendo tanto a ausência quanto erros no conteúdo sobre a via administrativa e demais serviços.

Ao perceber o acesso a medicamentos como uma medida da qualidade da prestação do serviço de saúde, o itinerário dos participantes até efetivar esse acesso foi considerado não somente complexo e moroso, mas também uma experiência que feriu os princípios de dignidade dos mesmos.

Barreiras relacionadas ao setor saúde

Ainda do lado da oferta, as barreiras de acesso a medicamentos relacionadas ao setor saúde compreenderam aquelas relacionadas à governança tanto da assistência farmacêutica quanto do setor saúde de uma forma geral (Quadro 3).

Quadro 3
Narrativas referentes às barreiras de acesso a medicamentos no nível do sistema de saúde “Setor saúde”, Brasil, 2013.

A principal barreira relacionada à governança da assistência farmacêutica percebida pelos participantes foi a exigência da prescrição originada no setor público para garantir o acesso a medicamentos. Esse achado demonstra a falta de coerência e de esclarecimento ao cidadão das normativas específicas para as diferentes vias de acesso a medicamentos, visto que a origem da prescrição utilizada para a abertura do processo administrativo foi o critério adotado para a formação dos grupos analisados no presente estudo. Vale ressaltar, porém, que embora a maioria dos usuários desse estudo tenha aberto processo administrativo com prescrição originada no setor público, muitas dessas demandas surgiram originalmente no setor privado, sendo posteriormente formalizadas em receituário do SUS para cumprir a exigência do setor.

Outra incoerência percebida pelos participantes foi a exigência da adoção da denominação comum brasileira na prescrição apresentada para a abertura do processo administrativo, visto que essa regra não se aplicou a todos os casos.

Para a efetivação do acesso ao medicamento deferido pela via administrativa, foi percebida a necessidade de melhorar o planejamento para garantir a disponibilidade na data prevista para o fornecimento. Além disso, observou-se que muitos demandantes fazem uso também de medicamentos essenciais que são fornecidos nas unidades básicas de saúde. Assim, para racionalizar o acesso a medicamentos, foi abordada a necessidade de que todos eles fossem fornecidos em um único local e de forma descentralizada, reduzindo o deslocamento dos usuários.

No que refere à governança do setor saúde, a barreira de maior impacto no acesso a medicamentos foi a dificuldade de conseguir consulta médica pelo SUS em tempo hábil, principalmente especializada.

Foram percebidas também barreiras relacionadas à impossibilidade de o usuário escolher a unidade de saúde e/ou profissional para a prestação da assistência, à precária gestão dos recursos necessários para a prestação dos serviços de saúde e à necessidade de um financiamento da saúde que atenda à demanda crescente de medicamentos pela via administrativa. Além disso, foram apontadas a baixa qualidade do atendimento médico no SUS, a falta de padronização dos serviços prestados e de intervenções após queixas formais dos usuários sobre a qualidade do serviço.

Na tentativa de driblar essas barreiras, os participantes relataram utilizar o setor público e o privado de saúde de acordo com a conveniência e as condições financeiras de cada um. Nesse mix público-privado, os participantes deram preferência por realizar as consultas médicas no setor privado e obter os medicamentos no público.

Barreiras que estão acima do setor saúde

As barreiras de acesso a medicamentos que estão acima do setor saúde foram percebidas nesse estudo somente no contexto nacional, contemplando as forças de mercado da saúde e a transparência das ações (Quadro 4).

Quadro 4
Narrativas referentes às barreiras de acesso a medicamentos no nível do sistema de saúde “acima do setor saúde - contexto nacional”, Brasil, 2013.

No que diz respeito às forças de mercado da saúde, os participantes abordaram a possibilidade de o SUS realizar parcerias para utilizar os recursos do setor privado para atingir as metas de saúde pública. Nesse contexto, foram exemplificados serviços de educação em saúde realizado em drogarias e do fornecimento de medicamentos via Programa Aqui Tem Farmácia Popular. Apesar da percepção dos benefícios dessa parceria, os participantes reconhecem falhas na prestação de serviço e desconfiam da transparência das ações do setor privado.

Outra preocupação apontada foi em relação à qualidade dos medicamentos genéricos, sendo adquiridos predominantemente em virtude do preço mais acessível dos mesmos.

Esse estudo apontou ainda uma percepção de que o Estado atribui ao setor saúde baixa importância ao aplicar os recursos públicos, deixando de atender às reais necessidades em saúde dos cidadãos. Apesar disso, a importância dos princípios do SUS foi reconhecida frente aos interesses comerciais do setor privado, que deixa de valorizar as necessidades dos indivíduos em detrimento do poder de pagamento de cada indivíduo.

As barreiras relativas à transparência das ações foram percebidas como irracionalidade dos procedimentos administrativos e da corrupção, demonstrando que os participantes conhecem o caminho do impedimento do seu direito. Nesse contexto, os participantes apontaram claros sinais de que existem relações clientelistas, de apadrinhamento e de burla ao fluxo normal de atendimento, favorecendo uns e postergando o direito de outros. Mais do que isso, a saúde se constitui um grande “cabo eleitoral” dos políticos profissionais que se aproveitam da precariedade de vida, de saúde e das deficiências do sistema para se perpetuar no poder.

Discussão

O presente estudo demonstrou que a garantia do acesso seguro e racional a medicamentos, embora esteja diretamente relacionada às ações e serviços da assistência farmacêutica, deve ser tratada como desafio a ser superado pelo sistema de saúde, sendo incluída na agenda das diferentes áreas do SUS e essas, por sua vez, promovendo a discussão e as pactuações com as áreas de interfaceamento.

Uma vez que o conceito de saúde não está relacionado unicamente à ausência da doença, o acesso a medicamentos, por si só, é incapaz de garantir saúde à população. Porém, dada a sua complexidade, ele se tornou um indicador de qualidade e de resolutividade do sistema de saúde, reconhecido pela Organização das Nações Unidas como um dos cinco indicadores de avanço na garantia do direito à saúde20. Assim, o presente estudo demonstrou de forma original que embora o itinerário terapêutico e as barreiras de acesso a medicamentos pela via administrativa tenham as suas particularidades, essas têm características muito semelhantes àquelas já reportadas em estudos da via judicial10, dos medicamentos de alto custo21 e das redes de atenção à saúde22.

No contexto das políticas sociais, a relação direta das barreiras de acesso a medicamentos com os capitais físico, natural, humano e social observada no presente estudo reflete o comprometimento do desenvolvimento da cidadania brasileira. Isso ocorre porque o acesso a medicamentos, como parte do direito à saúde, está associado aos demais direitos sociais: educação, alimentação, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados23. As falhas históricas da entrega desses bens e serviços por parte do Estado fizeram com que o cidadão assumisse a provisão das suas próprias necessidades. Esse cenário justifica o custo dos medicamentos ser o principal motivador das demandas pela via administrativa, evidenciando o posicionamento arraigado na sociedade de acionar o Estado como o último recurso, deixando de buscar os seus direitos como práxis da cidadania brasileira.

O desejo legítimo de obter o medicamento de qualidade, disponível próximo de casa, em um ambiente com design atraente e funcionários empáticos, gera no cidadão uma expectativa de experiência com o serviço. Ao perceber as barreiras relacionadas à prestação de serviços de saúde, o cidadão tende a utilizar exclusivamente os serviços imprescindíveis para acionar a via administrativa, especialmente para aqueles com seguro de saúde privado. Como consequência, a experiência no SUS fica superficial, e tira a oportunidade de o cidadão criar vínculo com os serviços, de reconhecer a importância desse sistema para a sociedade e de reivindicar a integralidade dos seus direitos.

A cobertura por seguro de saúde privado, junto ao sistema financeiro, mostrou-se uma alternativa para os usuários superarem as barreiras relacionadas ao setor saúde, agilizando as prescrições para manter o fornecimento regular de medicamentos no setor público. Esse tipo de arranjo provoca uma distorção do SUS, quando utilizado de maneira complementar aos serviços privados, infringindo o princípio da integralidade da atenção e trazendo implicações éticas e de equidade. Ao privilegiar o usuário do setor privado por uma dupla porta de entrada ao sistema, muitas vezes furando uma fila de espera a qual os usuários exclusivos do SUS estão submetidos, esse mix público-privado intensifica as desigualdades no acesso a medicamentos. A utilização do SUS de forma complementar ao setor privado foi abordado por Vargas-Pelaez (2019)24 para as demandas judiciais no Brasil e na Argentina. Ainda no Brasil, Chagas e colaboradores5 observaram que o mix público-privado é mais comum entre as demandas judiciais que administrativas. Porém, nesse mesmo estudo as autoras deixam claro que a abertura de processo administrativo com prescrição do SUS é uma exigência, o que não impede que a demanda tenha sido originalmente gerada no setor privado, como observado no presente estudo.

A percepção das barreiras que estão acima do setor saúde foi um diferencial do presente estudo, demonstrando a existência de um frágil sistema de saúde permeado de problemas históricos, estruturais e endêmicos de um país em desenvolvimento. Tal situação contribui para a manutenção de um setor público que padece com uma imagem distorcida e negativa, desacreditando o SUS e o que é público no Brasil. Em um estudo para identificar o motivo da classe média se recusar a utilizar os serviços públicos da atenção primária, Reigada e Romano25 apontaram o estigma da população associado ao uso do SUS e a falta de apropriação do mesmo como direito. Essa percepção também foi identificada no presente estudo, apesar do reconhecimento dos participantes de que o setor público se constitui a única alternativa de acesso à assistência à saúde para a maioria dos cidadãos. É, portanto, paradoxalmente defendido e atacado, embora em todos os depoimentos fica nítida a importância do SUS para os seus usuários.

Nesse contexto, fica claro que a via administrativa é acionada para atender as necessidades não atendidas por outras vias, e não pela reivindicação do direito à saúde, como já demonstrado para a via judicial por Leite e colaboradores10. Há de se considerar que a via administrativa possa ser mais empoderante que a judicial pelo fato dos usuários assumirem um papel mais ativo nessa trajetória, que na via judicial fica a cargo dos advogados e promotores10. Porém, tal situação não é efetiva o suficiente para o cidadão usar e reivindicar uma assistência integral de qualidade, abstendo-se desse direito e perpetuando o financiamento e a ascensão do setor privado de saúde no Brasil.

O descompasso entre o que se espera do SUS e como o cidadão utiliza o sistema foi evidenciado nas críticas e julgamentos de políticos e gestores públicos como corruptos, ao mesmo tempo que são narradas burlas aos fluxos preconizados com o intuito de favorecimento pessoal.

A percepção de um sistema de saúde inchado, ineficiente e burocrático apontada nesse estudo fomenta as propostas de privatização dos serviços públicos de saúde propondo um acesso facilitado a partir da desburocratização do sistema. Essa é a mesma justificativa utilizada na década de 1990 para subsidiar a criação das organizações sociais, empresas privadas supostamente capazes de gerir com maior eficiência o financiamento do Estado26. Porém, esse programa tem sido responsável pela desregulamentação de normativas sanitárias e de processos democráticos imprescindíveis à manutenção das políticas públicas, tirando o protagonismo do Estado na fiscalização e na garantia da sua segurança. As evidências27-30 demonstraram que a publicização da saúde é um processo de privatização disfarçada e questionam a natureza não lucrativa dessas organizações, a eficiência na aplicação de recursos públicos e a promoção dos princípios e diretrizes do SUS.

A interdependência entre os diferentes níveis do sistema de saúde foi claramente demonstrada nesse estudo a partir dos denominados software do sistema18. No nível individual e comunitário, pode-se destacar o empoderamento dos participantes acerca dos trâmites da via administrativa e o desempenho do seu papel social na divulgação de informações à comunidade. No nível da prestação de serviços de saúde, pode-se citar a importância da informação acerca das diferentes vias de acesso a medicamentos e da clareza das normas para evitar retrabalho e morosidade no processo administrativo. No nível do setor saúde fica evidente que a exigência a cada 90 dias de uma prescrição originada no SUS ignora a incapacidade do setor público em atender as demandas por consultas médicas, especialmente especializadas, assim como já demonstrado por Rover e colaboradores21. No contexto nacional, acima do setor saúde, a necessidade de cumprir procedimentos administrativos e os casos de corrupção geram uma imagem negativa do setor público, diminuem a eficiência do SUS e marginalizam os grupos mais vulneráveis da população.

A legitimidade das falhas no software do sistema pode ser constatada com a ampliação do número de profissionais médicos na atenção primária31 e a flexibilização da escolha do profissional prestador da assistência na atenção básica32. Porém, ainda há muitos caminhos a percorrer: as dificuldades de utilização dos serviços de saúde entre os seguimentos mais vulneráveis da população (33); a baixa priorização do orçamento e da logística de suprimentos para evitar o desabastecimento de medicamentos essenciais34; o déficit de consultas médicas especializadas (35); e a expansão da medicina da família e comunidade36.

A abordagem rotineira pela equipe de saúde com os pacientes é imprescindível para romper as barreiras de acesso a medicamentos e integrar os diferentes níveis do sistema de saúde, compreendendo, minimamente: a viabilidade de utilizar alternativas terapêuticas mais acessíveis (e ocasionalmente menos eficientes); a disponibilidade em pagar pelos medicamentos prescritos com recursos próprios (considerando o comprometimento da renda familiar e não somente o custo do medicamento); e o conhecimento e interesse em acionar vias alternativas de acesso a medicamentos, tais como a administrativa. A ineficiência desse diálogo, especialmente por parte do médico, impacta negativamente na condição de saúde do paciente, uma vez que mesmo que a via administrativa seja acionada, o acesso ao medicamento não é imediato.

As perspectivas de superação das barreiras de acesso a medicamentos no Brasil tornam-se cada dia mais intangíveis com o congelamento do orçamento federal pelo período de 20 anos. A tendência é sobrecarregar o sistema em virtude da conjuntura nacional de escassez, intensificando as barreiras de acesso aos serviços de saúde37,38 e aumentando as demandas de medicamentos pela via judicial39 e administrativa, por ser essa uma alternativa. Assim, para que essas demandas individuais sejam cumpridas, o comprometimento das demandas coletivas será devastador, colocando à prova a sustentabilidade da política pública de saúde brasileira.

Conclui-se, portanto, que a via administrativa é percebida pelos demandantes como um mecanismo para o cidadão acessar os medicamentos que comprometem consideravelmente a renda familiar e que estão indisponíveis nos serviços públicos de saúde. Porém, essa via não só é incapaz de romper as barreiras sistêmicas de acesso a medicamentos, como fomenta o atendimento das demandas de uma minoria que, muitas vezes, utiliza o setor público de forma complementar ao privado, como um mero provedor de medicamentos. Assim, diante do atual cenário brasileiro, com o descrédito do SUS e supervalorização da iniciativa privada, o novo regime fiscal e o congelamento do financiamento da saúde, a via administrativa tende a intensificar ainda mais as iniquidades no acesso à saúde no Brasil.

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Editado por

  • Editores-chefes:
    Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    Mar 2022

Histórico

  • Recebido
    06 Jul 2020
  • Aceito
    22 Mar 2021
  • Publicado
    24 Mar 2021
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