Open-access O Sistema CEP-Conep em 2020: enfrentamento da COVID-19, desafios e lições aprendidas

Resumo

O artigo apresenta dimensões estruturantes do Sistema CEP-Conep para compreender as ações promovidas pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa nas respostas às demandas de tramitação e análise ética de protocolos de pesquisa relativos à COVID-19 no ano de 2020. Foi elaborado estudo de caso a partir de documentos públicos do Sistema CEP-Conep, para evidenciar seu marco regulatório, de 1988 a 2020, e sua extensão em termos de quantidade de comitês, usuários e protocolos, de 2012 a 2020. Foram examinadas as atas das reuniões ordinárias (RO) da comissão, de 2020, de caráter sigiloso, para caracterizar as adaptações à pandemia. No final de 2020, o sistema contabilizava 844 comitês, 854.741 usuários, e 701.791 protocolos analisados. A comissão centralizou a análise de protocolos de COVID-19, em janeiro de 2020, e promoveu três descentralizações, à medida que mais conhecimento era gerado, permanecendo centralizados os protocolos de vacinas para COVID-19. O histórico do Sistema CEP-Conep proveu lastro para a adoção de medidas de gestão, educativas e de comunicação que aceleraram a apreciação de protocolos e deram transparência ao processo. A ausência de indicadores não permitiu avaliar a performance em 2020, aparentemente satisfatória.

Palavras-chave: Ética em pesquisa; Comitês de ética em pesquisa; Pesquisa; COVID-19

Abstract

This paper presents the structuring dimensions of the CEP-Conep System in order to understand the actions promoted by the National Research Ethics Commission in response to demands for the processing and ethical analysis of research protocols related to COVID-19 in 2020. Based on CEP-Conep System public documents, an assessment of legislation, from 1988 to 2020, and its extension in terms of the number of Committees, users, and protocols, from 2012 to 2020 was presented. The minutes of Conep’s Ordinary Meetings (RO), for 2020, of a confidential nature, were analyzed, to verify adaptations to the pandemic. At the end of 2020, the System had 844 Committees, 854,741 users, and 701,791 analyzed protocols. The Commission centralized the analysis of COVID-19 protocols, in January 2020, and promoted three decentralizations, as more knowledge was generated, with vaccine protocols for COVID-19 remaining centralized. The history of the CEP-Conep System provided ballast for the adoption of management, educational and communication measures that accelerated the approval of protocols and made the process transparent. The absence of indicators made it impossible to evaluate the performance in 2020, which was apparently satisfactory.

Key words: Research ethics; Research ethics committees; COVID-19

Introdução

A proteção das pessoas que participam de pesquisas é a missão precípua dos Comitês de Ética em Pesquisa (CEP). A regulação da ética em pesquisa envolvendo seres humanos no Brasil passa a ser feita pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS) a partir de 1988, composta por diversas normas, espinhas dorsais do atual Sistema CEP-Conep1-3.

Segundo determinação da Resolução CNS/MS nº 466/2012, a coleta de dados em uma pesquisa com seres humanos só pode ser iniciada após a aprovação formal em instâncias do Sistema CEP-Conep, assegurando que, de início, os requisitos éticos estejam sendo seguidos4. Internacionalmente, é recomendado o uso de indicadores para monitorar o processo de revisão e supervisão ética, desde a submissão até a conclusão dos estudos5,6.

O ano de 2020 assistiu ao enfrentamento da COVID-19. Em 30 de janeiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) classificou a doença como emergência de saúde pública global, e em 11 de março de 2020, como pandemia. O Brasil, no final de 2020, apresentava 7.714.819 casos e 195.742 óbitos por COVID-197.

O período pautou-se pela busca por curas ou tratamentos, seja no reposicionamento (nova indicação) de fármacos conhecidos, no desenvolvimento de novas alternativas terapêuticas ou no desenvolvimento de vacinas8,9. Para todos os casos, os estudos clínicos são peças-chave para as necessárias provas de eficácia e segurança.

Embora o Sistema CEP-Conep já estivesse consolidado, a emergência sanitária decorrente da pandemia de COVID-19 o submeteu ao desafio de atender à demanda de análise ética de protocolos de pesquisas específicos, e com urgência inédita.

O artigo apresenta dimensões estruturantes do Sistema CEP-Conep para compreender as ações promovidas pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa nas respostas às demandas de tramitação e análise ética de protocolos de pesquisa relativos à COVID-19 no ano de 2020.

Método

O método seguiu o desenho de estudo de caso, utilizando pesquisa documental e historiográfica. O fundamento teórico do estudo de caso baseia-se na análise de eventos dentro de seus contextos de vida real, quando o foco da questão de pesquisa é o “como” e o “porquê” de alguma situação que não exige controle por parte do investigador. O estudo de caso focaliza acontecimentos contemporâneos e visa aprofundar a compreensão de fenômenos sociais complexos10,11.

O processo da pesquisa historiográfica envolve o levantamento de dados com identificação, registro e organização de documentos que respondam à questão de pesquisa, podendo ser classificados de modo cronológico e temático12. As técnicas de análise de conteúdo aplicadas aos textos documentais auxiliam na identificação dos núcleos de sentido e termos-chave que elucidam o objeto de investigação. O conteúdo é então categorizado e interpretado de maneira a permitir inferências pertinentes13.

A composição das informações necessárias foi realizada em etapas, configurando duas dimensões estruturantes do sistema. Na primeira foi descrito o percurso normativo do Sistema CEP-Conep. Foram identificadas as resoluções e outros documentos expedidos pelo Conselho Nacional de Saúde referentes à ética em pesquisa e à Conep, desde 1988, o ano da primeira resolução do CNS, até 2020, por meio de consulta em http://conselho.saude.gov.br/resolucoes-cns e https://plataformabrasil.saude.gov.br/login.jsf. As normativas identificadas foram organizadas em forma de figura do tipo linha do tempo, com numeração, ano e vigência da norma.

Na segunda dimensão, relacionada a aspectos de estrutura do Sistema CEP-Conep, os dados documentais possibilitaram identificar, ano a ano, a quantidade de CEP, de protocolos aprovados pelo sistema e de usuários/pesquisadores de 2012 até 2020. Os dados foram organizados em tabela para evidenciar a variação dessas dimensões ao longo do tempo.

De forma a investigar as adaptações implementadas pelo sistema à demanda de protocolos de pesquisa relativos à COVID-19, foram analisadas as atas de reuniões plenárias ordinárias (RO) da Conep de 2020, escolhido por ser o primeiro ano-calendário da pandemia. As atas foram lidas primeiramente de forma transversal e depois em profundidade, procurando identificar expressões-chave, núcleos de sentido e agregações temáticas pertinentes14. Essa leitura proporcionou a emergência de categorias analíticas relacionadas às atividades da Conep no exame dos protocolos, a saber: (i) centralização e descentralização do fluxo de tramitação de protocolos, (ii) adaptação dos processos de trabalho e (iii) medidas normativas, educativas e informativas da Conep. As informações provenientes das atas foram complementadas, quando necessário, com outras informações documentais e/ou bibliográficas, na tentativa de conformar uma perspectiva histórica. Os dados foram apresentados em forma de texto, com destaque identificado e codificado dos trechos de interesse de atas. Mudanças normativas da Conep, em 2020, foram organizadas em forma de linha do tempo para visualização da sequência cronológica das adaptações.

A pesquisa foi submetida ao CEP da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP) e aprovada, com número do Certificado de Apresentação para a Apreciação Ética (CAAE) 5008.1521.0.0000.5240, na Plataforma Brasil. Ao protocolo submetido ao CEP-ENSP foram anexadas as autorizações, assinadas pelo coordenador da Conep, para acesso aos documentos da comissão e uso para fins da pesquisa e publicações decorrentes: o Termo de Anuência Institucional (TAI) e o Termo de Compromisso de Utilização de Dados (TCUD). Os documentos originais encontram-se com o autor principal. A pesquisa só teve início após todas as autorizações.

Resultados

Para demonstrar a primeira das duas dimensões do Sistema CEP-Conep, foi detalhada na Figura 1 a série histórica de resoluções do CNS/MS.

Figura 1
Histórico de normas estruturantes do Sistema CEP-Conep, de 1988 a 2020.

Três normas se destacam por sua natureza, já referidas anteriormente: a 1/88, a 196/96 e a 466/12. Sob vigência da Resolução 196/96, o CNS aprovou outras 13 resoluções relativas à ética em pesquisa, que a complementam. Em 2012, o CNS aprovou a Resolução 466/2012, revogando as Resoluções 196/199, 303/2000 e 404/2008. Entre as inovações, a Resolução 466/2012 estabeleceu a Plataforma Brasil como exclusivo meio de tramitação de protocolos de pesquisa e define resoluções complementares posteriores. Em 2016 e 2018, foram aprovadas três das resoluções complementares previstas na norma: acreditação de CEP (506/2016); normatização da análise de protocolos na área de ciências humanas e sociais (CHS) (510/2016); e o detalhamento de especificidades de pesquisas de interesse estratégico para o SUS (580/2018). A Resolução 647/2020 define regras para designação e atuação de membros dos CEP como representantes dos participantes de pesquisa15.

Também estruturam o Sistema CEP-Conep duas normas operacionais (NO). A NO 1/2012 aborda e detalha os fluxos para protocolos multicêntricos e cria fluxo único para a notificação dos eventos adversos. A NO 1/2013 explana os temas dos conflitos de interesse, do sigilo na apreciação de protocolos, normatiza a tramitação de emendas e extensões, a tramitação da notificação de eventos adversos graves e o recebimento de denúncias e situações de infração ética, entre outros aspectos. Além das NO, há três manuais que orientam a organização dos CEP, instruem os pesquisadores na submissão de pesquisas na Plataforma Brasil e explicitam pedagogicamente as pendências mais frequentes em pesquisa clínica15.

Na Plataforma Brasil, no período de janeiro de 2012 a dezembro 2020, havia um total de 854.741 pesquisadores/usuários e 701.791 protocolos de pesquisa cadastrados (Tabela 1). Ao final de 2020, havia 844 CEP aprovados no país. No período, houve crescimento de 780% de usuários, 1.250% de protocolos e 28% de CEP. Em 2020, houve redução de cerca de 18% tanto na quantidade de novos usuários quanto de novos protocolos e praticamente uma estabilização na quantidade de novos CEP15.

Tabela 1
Número de usuários/pesquisadores, protocolos e CEP do Sistema CEP-Conep, de 2012 a 2020.

Para enfrentar a pandemia de COVID-19 e prover o dinamismo requerido para as ações da Conep, o sistema se reestruturou. As atas das reuniões ordinárias de 2020 apresentam diferentes aspectos que se mostraram necessários a esse enfrentamento, e seus conteúdos foram analisados segundo categorias, relativas às características mais marcantes para o sistema, descritas a seguir.

Centralização e descentralização de fluxo de tramitação de protocolos

No dia 31 janeiro de 2020, a Conep decidiu que a apreciação de todos os protocolos relativos à COVID-19 seria centralizada e célere, e que os CEP não deveriam analisá-los. A centralização foi registrada na ata da RO de janeiro:

Autorizada a celeridade na tramitação de protocolos sobre esse tema [COVID-19] pela Conep [...] mesmo não se enquadrando nas áreas de análise ética obrigatória [da Conep], orientando os CEPs a não os analisar16.

A Conep divulgou a decisão de centralização por meio de dois documentos, expedidos em 31 de janeiro de 2020: (i) o Informe aos Comitês de Ética em Pesquisa, identificado como I Informe, e (ii) o Informe à Sociedade (Figura 2). A Carta Circular nº 4/2020, de 10 de fevereiro de 2020, divulgou o que foi definido na RO e ainda orienta que

Figura 2
Alterações na tramitação de protocolos COVID-19 - Sistema CEP-Conep, 2020.

[...] no âmbito dos CEP, os Pareceres Consubstanciados deverão ser emitidos com a situação “Aprovado”, cabendo à Conep deliberar sobre tais protocolos de pesquisa em regime especial de tramitação17.

Em virtude do crescente número de protocolos, da sobrecarga sobre os assessores técnicos e relatores e da melhor compreensão da doença, ocorre o caminho inverso da centralização. Esse processo ocorreu paulatinamente, em abril, junho e novembro de 2020 (Figura 2), e ao final do período, voltou-se ao fluxo estabelecido pela normatização anterior à ocorrência da COVID-194, acrescido da centralização dos protocolos de ensaios clínicos de vacinas para COVID-1918:

ITEM 3. [...] As providências propostas são de remeter aos CEP os protocolos que normalmente já recebem e manteríamos na Conep as áreas temáticas especiais e os protocolos de vacinas [para COVID-19]19.

Adaptação dos processos de trabalho

Em 16 de março de 2020, pela inexorabilidade da pandemia e do requisito do distanciamento social, os CEP foram autorizados a realizar reuniões virtuais, em caráter excepcional20, resguardando todos os cuidados éticos, mantendo-se o sigilo e a privacidade em relação às informações tratadas durante todas as reuniões. Em abril foi recomendado que os pareceres relativos à COVID-19 fossem apreciados e liberados em sete dias corridos e que os CEP funcionassem por meio de câmaras técnicas virtuais com no mínimo cinco membros relatores21.

Para a Conep, as reuniões plenárias virtuais foram discutidas e aprovadas, por consenso, na RO de abril e enfatizada a necessidade de adaptação dos membros ao formato virtual. O processo de reuniões das câmaras técnicas também foi intenso, e elas passaram a ser diárias, durante os sete dias da semana, e para tal o funcionamento da Conep envolveu a abertura de quatro câmaras trabalhando de forma contínua. O II Informe, desse mesmo mês, solicitou que os pareceres fossem expedidos em sete dias, que os resultados relativos à COVID-19 fossem tratados com urgência e priorizados, mantendo-se as normas éticas em vigor21.

A ata da RO de setembro de 2020 registrou a proposta de aumentar a quantidade de membros das câmaras técnicas, convidando relatores ad hoc para ampliar a capacidade de apreciação de protocolos23. Na reunião de dezembro, no balanço das atividades da Conep no enfrentamento da pandemia, informou-se a ocorrência de 327 câmaras extraordinárias sobre COVID-19 ao longo do ano, havendo mais de 9.000 protocolos em tramitação, sendo mais de 4.000 sobre COVID-1924. Reiterou-se a necessidade de participação dos relatores ad hoc25.

Medidas normativas, educativas e informativas da Conep

A Conep adotou regulamentações complementares às normas descritas anteriormente (Figura 2), buscando adaptar o Sistema CEP-Conep à nova realidade que se impunha. Destacam-se: a flexibilização do registro de consentimento assinado, passando a ser aceitas formas alternativas, como assinatura digital e consentimento gravado; a flexibilização ou suspensão da necessidade de assinaturas em documentos do protocolo; a tramitação de emendas passou a ser concomitante à adoção do novo procedimento; e a interrupção excepcional do funcionamento do CEP, tendo em vista a necessidade de distanciamento social23.

Como consequência dos requisitos para enfretamento da pandemia, foram suspensos os treinamentos presenciais regionais regulares para o Sistema CEP-Conep do ano de 2020, por meio da Carta Circular nº 11/2020, de 28 de abril de 202026. Em contrapartida, houve fortalecimento dos cursos a distância; nesse ano foram oferecidos sete cursos, cujos conteúdos variaram desde básicos, como “Princípios metodológicos básicos e questões éticas”, até mais específicos, como “Biobancos e biorrepositórios”, totalizando mais de 17.000 inscrições27,28.

Outra importante iniciativa foi a inovação na forma de comunicação da Conep, utilizando mídias sociais. Durante o primeiro ano pandêmico, passaram a ser utilizados cinco diferentes aplicativos: Facebook, Instagram, LinkedIn, Twitter e YouTube. Além disso, uma inovação diferenciada surgiu com os “Boletim Ética em Pesquisa - Edição Especial COVID-19”. Em 2020 foram 53 edições, divulgando os 783 protocolos aprovados relativos à COVID-19. Os dados públicos desses protocolos foram disponibilizados no site do Observatório de Pesquisas Científicas Registradas na Plataforma Brasil (OPB)27,28.

No final do ano de 2020, ocorreu ainda o Encontro Nacional de CEP (ENCEP), de forma remota, com mais de 3.500 inscritos29.

Discussão

Para compreender as mudanças necessárias para que o Sistema CEP-Conep se adaptasse à nova demanda de apreciação de protocolos de pesquisa em função da pandemia de COVID-19, foi necessário, antes, dimensionar como o sistema estava regulado e estruturado, e se de fato essa estruturação configurou lastro para os desafios do ano pandêmico.

As três principais normas estruturantes do sistema, a 1/88, a 196/96 e a 466/12, se destacam não apenas por albergar as diversas outras normas complementares ou aditivas surgidas no período, mas por mostrarem a capacidade de aprimoramento normativo que seria essencial no enfrentamento da pandemia.

Da norma 1/88, destaca-se o fato de mudar a vinculação hierárquica de um órgão da administração (Secretaria do Ministério da Saúde) para um órgão de representação social (CNS), que recomenda, acompanha e fiscaliza as ações de saúde, conforme as Leis nº 8.080/90 e 8.142/9030,31. Nesse sentido, essa resolução representa uma mudança de paradigma; no entanto, ainda que a configuração institucional trazida por ela tenha sido essencial para assegurar o caráter independente e qualificado da pesquisa com seres humanos no país, a norma não foi inteiramente capaz de promover e dar sustentação ao desenvolvimento desse tipo de pesquisa. Passados sete anos de sua aprovação, a adesão ainda era baixa1. Outros problemas apontavam para a restrição a pesquisas da área médica e a ampliação inapropriada das atividades para biossegurança e vigilância sanitária, por exemplo32.

A Resolução CNS/MS 196/1996 criou a Conep/CNS/MS, locus a partir do qual ocorreu o desenvolvimento e a estruturação do Sistema CEP-Conep1,32. No período de sua vigência, 16 anos, foram estabelecidos, desenvolvidos, adaptados e solidificados os mecanismos para criação, credenciamento e funcionamento dos CEP, sob supervisão da Conep. Apesar dos avanços trazidos pela resolução, a crescente quantidade de protocolos de pesquisa submetidos e tramitados de forma impressa causou descompasso frente ao avanço das tecnologias de comunicação e informação. Além disso, era exigida a necessidade de ampliar os campos das pesquisas sob apreciação ética33.

Assim, a partir de 200834 são lançadas as bases conceituais da Plataforma Brasil (PB) como meio exclusivo para submissão, tramitação, aprovação e acompanhamento de protocolos de pesquisa. A Resolução 466/12 adotou a PB e previu a existência das normatizações complementares4. A expressão da regulamentação nesse momento mostrou-se essencial para pautar a dinâmica dos processos no âmbito do cenário pandêmico, porém ainda com lacunas normativas, como a questão da tipificação da pesquisa.

Encontrava-se em consulta pública, até 31 de dezembro de 2020 (limite temporal deste estudo), a minuta da resolução de tipificação de pesquisa e sua tramitação diferenciada em função do desenho. No entanto, mesmo aprovada em 6 de maio de 2022, a Resolução 674/2022 só estará operacional após a reestruturação da Plataforma Brasil (ainda sem data prevista)35.

A evolução dos números de CEP, usuários/pesquisadores e protocolos mostrou crescimento ao longo dos anos1,36,37, ainda que houvesse uma diminuição em 2020. É preciso, no entanto, elucidar qual a natureza da pressão estrutural inusitada sofrida pelo sistema durante a pandemia, que extrapola o esperado das quantidades programáticas constantes na Tabela 1. Outras questões têm influência sobre o desfecho desse tipo de pressão, como desempenho de CEP, aspecto que não foi mensurado neste estudo e baseado em indicadores específicos5,38.

No entanto, a aplicação desses indicadores encontra limites, uma vez que há pouca identificação das necessidades de novos comitês em distintas áreas geográficas ou em especialidades de atuação dos CEP (biomédica e humanidades), ou mesmo de procedimentos de tramitação em emergências sanitárias. Em contrapartida, após a emergência com o vírus da zika (ZIKV) em 2015-2016, e em conformidade com a Resolução 466/2012, foi publicada a Resesolução 580/18, havendo alguma ênfase na análise prioritária de protocolos de interesse em saúde pública, definidos pelo Ministério da Saúde39.

No entanto, medir o desempenho dos CEP existentes em análise de protocolos foi impossível na emergência da COVID-19, tendo em vista a falta de série histórica de indicadores, por exemplo: (i) características dos protocolos aprovados e (ii) quantidade de protocolos analisados por período e ao longo do tempo. A aplicação desses indicadores teria aprimorado a gestão do sistema na pandemia5,38,40.

Os resultados deste estudo apontam para uma ação preventiva da Conep frente à eclosão da pandemia. Uma vez que as dimensões estruturantes do sistema não eram capazes de responder definitiva e completamente aos desafios representados pela necessidade de tramitação ética, rápida e eficiente de um número diferenciado de protocolos de pesquisa envolvendo seres humanos, a Conep tomou medidas necessárias para superar as limitações trazidas pela estrutura normativa e física do sistema, enfrentando a complexidade da nova realidade.

Quando a OMS declarou a emergência sanitária da COVID-19, a Conep imediatamente mudou o fluxo dos processos. A decisão de centralização dos fluxos para os protocolos em que a COVID-19 estava envolvida foi tomada após discussão técnica com instituições especializadas, em janeiro de 2020, sobre a nova doença e suas possíveis consequências em termos de saúde pública. Havia incertezas iniciais sobre a dimensão que a pandemia tomaria, e o reconhecimento quanto ao seu comportamento aparentemente errático naquele momento - de maior ou menor dimensão no decorrer do tempo41.

Ao centralizar, a Conep favoreceu a celeridade e a uniformidade da apreciação ética dos protocolos recebidos, bem como facilitou a agilidade na adaptação dos processos à medida que a pandemia se disseminava pelo país. Por outro lado, iam sendo reveladas vulnerabilidades potenciais dos trâmites éticos no interior dos serviços de saúde, conforme pacientes internados se tornavam também participantes de pesquisa40. Mas, de fato, ao longo do tempo começaram a ocorrer as descentralizações. Três pontos de inflexão contribuíram para a reversão do processo de centralização: a melhor compreensão da doença, suas sequelas e seu agente causador, e a sequência das linhagens virais; a carga excessiva de trabalho sobre os membros, que após alguns meses foi demasiada; e a paulatina reorganização das instituições que albergavam CEP. As incertezas iniciais também diminuíam com os testes realizados com medicamentos e vacinas, que apontavam os mais promissores8,9. Essa mudança contribuiu para uma melhor compreensão de como deveriam ser analisados os protocolos, trazendo maior confiança ao processo de descentralização.

Entre as medidas sanitárias para possível contenção da pandemia estava o requisito de distanciamento social, que causou a adoção do trabalho remoto pela Conep42,43. Na forma tradicional de reunião presencial, é a própria Conep que estabelece os limites de interação entre membros no decorrer da avaliação e o fluxo das informações sigilosas. Assim, a adaptação para câmaras técnicas virtuais constituiu um desafio ético, por ter que suplantar práticas gerenciais e logísticas já consolidadas do Sistema CEP-Conep, que passou a funcionar em regime de excepcionalidade e na falta de normas que regulamentassem a prática. O ambiente remoto exigiu redobrada vigilância sobre cuidados éticos, sigilo e privacidade das informações tratadas, frente aos desafios das reuniões em linha e em sítios domésticos. Por isso, na realização de apreciação virtual, cada relator foi instruído a tomar as medidas necessárias para proteção e sigilo das informações20,23.

Para funcionamento, incluindo a manutenção de seu caráter independente, os CEP contam com membros que recebem capacitação inicial e permanente para o intenso trabalho de relatoria e para as atualizações normativas. Por isso, a manutenção de quadros de relatores qualificados e atualizados não é tarefa fácil44. Na pandemia, essas dificuldades cresceram de forma importante41. A Conep se viu sob intensa pressão para analisar uma crescente quantidade de protocolos de forma tempestiva, contando assim com um acréscimo de relatores ad hoc. Porém, mesmo com o trabalho de relatores capacitados e com experiência no sistema, a Conep teve que enfrentar dificuldades na disponibilidade desses mesmos relatores, principalmente quando oriundos de instituições privadas, pela necessidade de justificar o tempo dedicado à Conep. O desfecho final em relação à celeridade e ao volume de análise parece ter sido positivo44, porém nada se pode afirmar quanto ao desempenho, pelos motivos já discutidos.

Tendo em vista a importância dos processos educativos internos, como necessários para os membros e os relatores ad hoc, na pandemia o foco das ações da Conep foi bastante direcionado aos CEP, uma rede capilar e próxima aos interessados, ou seja, pesquisadores e usuários do sistema, que também foram alvo das ações educativas.

Para a harmonização da análise ética, em 2020, uma equipe da Conep realizou reuniões virtuais com 357 CEP, em substituição a visitas in loco, perfazendo mais de 3.900 espectadores. Foram produzidos e disponibilizados sete cursos curtos a distância cujo público-alvo eram os membros voluntários e funcionários administrativos de CEP, mas podiam ser acessados por qualquer interessado27,28.

Em tempos regulares, a obtenção do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), a submissão de documentos assinados e a tramitação de emenda são, entre outros, aspectos de rigidez normativa e processual no Sistema CEP-Conep e geram pendências. A pandemia exigiu novos trâmites. A Conep expediu o documento Orientações para Condução de Pesquisas e Atividade dos CEP Durante a Pandemia Provocada pelo Coronavírus Sars-CoV-2 (COVID-19) em 9 de maio de 202023. O intenso trabalho das câmaras técnicas, somado às mudanças normativas desse documento, inovaram a prática e, ao fim e ao cabo, aceleraram a aprovação de protocolos.

Para o público externo, a Conep inovou ao ampliar os meios de comunicação, ao publicar, regularmente e de modo agregado, dados públicos dos protocolos aprovados em que a COVID-19 estivesse envolvida e ao disponibilizar esses dados no portal do Observatório de Pesquisas Científicas Registradas na Plataforma Brasil (OPB). A série “Boletim Ética em Pesquisa - Edição Especial COVID-19” foi recebida como excelente contribuição pela comunidade científica e pela sociedade46, dando visibilidade às pesquisas tramitadas na Conep. A iniciativa foi considerada pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) como um exemplo de fortalecimento da comunicação transparente sobre as pesquisas em andamento durante a pandemia47.

O estudo foi baseado principalmente nas atas da Conep de 2020, de caráter sigiloso, e, complementarmente, em outros documentos públicos emitidos pela Conep. Do ponto de vista do universo da pesquisa e seu corpus, pode se considerar que os documentos analisados têm total representatividade sobre o objeto de análise. A Conep é um órgão sob escrutíneo dos pesquisadores interessados nos seus projetos e as atas passam pela revisão de todos os seus membros, portanto, o texto das mesmas tem elevada fidedignidade com o ocorrido e alta padronização. Para fins deste estudo, esses pontos agregam qualidade ao material utilizado. Porém, vale ressaltar que as atas não foram geradas com o propósito de fornecer respostas às perguntas de pesquisa, o que traz certa limitação aos nossos resultados.

Ainda, de forma a reduzir subjetividades, foram acrescentadas as figuras do tipo linha do tempo, que apoiam o texto com a descrição das dimensões estruturantes e das mudanças de tramitação de protocolos. Sempre que necessário e disponível, as informações das atas foram verificadas com outros documentos, embora a Conep não faça análise das características dos protocolos analisados de modo regular, sistemático e público, o que dificultou a comparação com outros períodos.

Considerações finais

Este artigo examinou a trajetória da Conep durante o primeiro ano pandêmico. A análise das atas foi uma estratégia inovadora, que permitiu compreender os processos de mudança e adaptação suscitadas pela pandemia de COVID-19 e alcançar os objetivos propostos. O fato de a Conep ser uma Comissão do Conselho Nacional de Saúde conferiu transparência, autonomia, pluralidade e independência à sua atuação.

As dimensões estruturantes desenvolvidas ao longo do tempo - normativas e estrutura física - não foram suficientes para enfrentar as necessidades e pressões surgidas com a pandemia. Esta exigiu modificações rápidas e efetivas para que os trâmites éticos das pesquisas não ficassem paralisados. A Conep respondeu de forma célere, já no início de 2020, com centralização das análises e adaptações subsequentes, conforme a pandemia avançava e o conhecimento sobre a doença e as pesquisas em andamento se consolidavam. Além disso, houve mobilização intensa dos membros efetivos para apreciação ética e agregação de contingente de relatores ad hoc, conformando uma verdadeira força-tarefa em prol do pleno funcionamento do sistema. Algumas estratégias educacionais e formativas para a sociedade foram desenvolvidas, em especial o Boletim, reconhecido nacional e internacionalmente, expressando o progresso das pesquisas no decorrer do tempo.

Os vários progressos realizados na emergência sanitária trazem a expectativa de que as lições aprendidas sejam incorporadas aos fluxos em situações semelhantes no futuro. A análise mostrou que o Sistema se adaptou rapidamente em função de demandas sanitárias abruptas e deu suporte e retorno à ciência. Além disso, pauta-se a vanguarda dessas modificações no decorrer da pandemia dentro de um sistema de análise ética tão avançado como o brasileiro, o que pode inspirar outros países. Sem dúvida, ainda que haja necessidade de desenvolvimento de indicadores de desempenho para seu aprimoramento, foi um sistema consolidado que permitiu os progressos apontados.

Agradecimentos

À Conep/MS pela cessão das atas.

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  • Editores-chefes:
    Maria Cecília de Souza Minayo, Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Out 2024

Histórico

  • Recebido
    04 Fev 2023
  • Aceito
    09 Out 2023
  • Publicado
    11 Out 2023
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