Open-access Espelho sem reflexos: conflitos e vulnerabilidades socioambientais em uma região produtora de cana-de-açúcar

Resumo

O objetivo deste estudo é analisar os impactos socioambientais e sanitários decorrentes do monocultivo da cana-de-açúcar em um município da Zona da Mata pernambucana. Foi realizado um mapeamento coletivo, com uso da cartografia social. Os problemas investigados foram representados graficamente em mapas, cujas versões finais foram elaboradas pelo Software ArcGIS 10.2. O estudo foi realizado no distrito de Tejucupapo, situado em Goiana, selecionado por sua proximidade dos canaviais. No ambiente observou-se aumento do desmatamento, degradação do mangue, assoreamento dos rios, diminuição do pescado e contaminação das águas e de outras culturas por agrotóxicos e esgoto. Para a saúde, foram apontados problemas respiratórios pela queima da cana, intoxicações por agrotóxicos e precariedade da rede assistencial. Na dimensão sociocultural foram identificados conflitos relacionados ao uso e à ocupação das terras, com perda, expropriação e destruição de objetos e símbolos históricos da comunidade, tendo como reflexos a perda da identidade cultural. Os problemas relacionados ao cultivo da cana afetam severamente a saúde e destroem o território tanto em seus aspectos ambientais como na própria construção identitária da comunidade, ameaçando os modos de vida tradicionais.

Palavras-chave: Cana-de-açúcar; Vulnerabilidade em saúde; Impacto ambiental; Agrotóxicos

Abstract

This study aims to analyze the socio-environmental and health effects of sugarcane crops in a county in the Zona da Mata of the state of Pernambuco, Brazil. A collective mapping was carried out with use of social cartography. The issues investigated were plotted on maps, whose final versions were elaborated by means of the ArcGIS 10.2 software. The study was carried out in the district of Tejucupapo, located in the municipality of Goiana, selected due to its proximity to the sugarcane fields. In the environment there was an increase in deforestation, mangrove degradation, silting of rivers, reduction of fish and contamination of water and other crops by pesticides and sewage. For health, respiratory problems were pointed out by sugarcane burning, pesticide poisoning and the precariousness of the governmental health care. In the socio-cultural dimension, conflicts related to land use and occupation were identified, with loss, expropriation and destruction of historical objects and symbols of the community, reflecting the loss of cultural identity. The problems related to sugarcane production severely affect human health and destroy the territory both in its environmental aspects and the very identity construction of the community, threatening traditional livelihoods.

Key words: Sugarcane; Health vulnerability; Environmental impacts; Pesticides

Introdução

O cultivo da cana-de-açúcar remonta aos tempos do Brasil Colônia e marca uma das mais antigas formas de apropriação e uso econômico, cultural, social e simbólico do território1. Na década de 1970, com a crise do petróleo, houve um aumento na produtividade no setor sucroalcooleiro mediada por subsídios estatais, o que levou à expansão da agroindústria da cana-de-açúcar no país, com ampliação das áreas de cultivo2.

Atualmente, a cana-de-açúcar tem uma relevância comercial expressiva, com produção em mais de 70 países, sendo o Brasil o maior produtor do mundo. Embora tenha sido registrado no país um aumento de 2,6% na produção de açúcar na safra 2019/2020, contrastando com a baixa da produção mundial, espera-se uma redução na safra 2020/2021 devido à pandemia de COVID-19. Apesar das estimativas iniciais apontarem uma redução esperada de 0,4% da área destinada à produção dessa cultura em relação à safra anterior, na região Nordeste há a expectativa de crescimento da área colhida na ordem de 2%. Em Pernambuco, a cana-de-açúcar continua sendo a principal cultura em extensão de área plantada e o maior valor da produção em reais, com concentração do plantio na Zona da Mata3.

O cultivo da cana-de-açúcar no Brasil se dá em detrimento das questões sociais, de saúde e ambientais. A cana-de-açúcar avança sobre áreas protegidas e de vegetação nativa, impulsionando o desmatamento2. O uso de agrotóxicos e fertilizantes químicos nas lavouras provoca a contaminação da água, do solo e do ar, além de afetar animais e outras espécies vegetais, contaminando outros cultivos4,5. Pode haver o assoreamento de rios em decorrência da erosão dos solos. A poluição atmosférica provocada pela queima da cana reduz a biodiversidade animal pela perda de habitat ou morte de espécies que utilizam o canavial para nidificação ou alimentação. A biodiversidade vegetal também é ameaçada em áreas adjacentes aos canaviais queimados devido a incêndios acidentais6,7.

Quanto às condições de saúde e vida, observa-se a formação de latifúndios e concentração de renda; a precarização do trabalho; os acidentes de trabalho graves e fatais; a ameaça à soberania alimentar e nutricional; intoxicações por exposição a agrotóxicos; problemas respiratórios, circulatórios, e outros danos à saúde humana. Também há risco de perda dos modos tradicionais de vida. Essas questões se somam às vulnerabilidades socioambientais existentes nos territórios, como precárias condições de habitação e saneamento, agravando o quadro geral de saúde7-10.

Ao considerarmos essas questões, tem-se como objetivo deste estudo identificar os impactos socioambientais e para a saúde decorrentes do monocultivo da cana-de-acúcar no município de Goiana, considerado um dos maiores produtores dessa lavoura da Zona da Mata pernambucana.

Metodologia

Trata-se de um estudo transversal, com triangulação metodológica para coleta e análise dos dados.

A pesquisa foi desenvolvida no município de Goiana, localizado na região da Zona da Mata, escolhido por ser um dos maiores produtores de cana-de-açúcar de Pernambuco, com uma área plantada de 550 mil hectares em 2018. Foi realizado o cruzamento dos pontos referentes às queimadas com os aglomerados urbanos, buscando identificar áreas densamente povoadas e localizadas em meio às lavouras de cana-de-açúcar.

A identificação das queimadas foi realizada mediante consulta ao banco de dados sobre queimadas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), disponível em http://www.inpe.br/queimadas/bdqueimadas. Foram utilizados dados dos períodos diurno e noturno, no período de 2007 a 2019. Os dados, em formato de shapefile, foram importados para o Software ArcGIS 10.2, em que foi realizada a estimativa da densidade de pontos pelo método de Kernel11. Em seguida, foram identificadas as comunidades situadas nas áreas mais próximas dos focos de calor, por meio dos dados de aglomeração populacional do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), resultando na seleção de Tejucupapo (Figura 1).

Figura 1
Distribuição dos focos de calor no município de Goiana, Pernambuco, no período de 2007 a 2019.

Os dados primários foram coletados entre julho e novembro de 2019, utilizando-se a cartografia social como estratégia de participação dos implicados no problema investigado, conferindo protagonismo à comunidade e legitimando o saber coletivo e os modos de ser12.

Inicialmente foram realizadas visitas exploratórias para identificação e mobilização das lideranças no território. Foram agendados encontros quinzenais, realizados na sede da Associação das “Heroínas de Tejucupapo”, na própria comunidade, em dias e horários definidos previamente pelos participantes. Foram incluídos moradores do distrito, maiores de 18 anos, de ambos os sexos, vinculados ou não à cultura da cana-de-açúcar.

Os encontros foram conduzidos a partir da pergunta orientadora “quais as situações de conflito e impactos relacionados ao cultivo da cana-de-açúcar para a saúde e para o ambiente?”. Os problemas foram cartografados pela comunidade em mapas de base, em folha de papel A3, utilizando caneta hidrocor e lápis de cor. Durante o mapeamento, buscou-se também a recuperação de memórias e identidades ameaçadas pela expansão da cana-de-açúcar no território. Os participantes foram divididos em três grupos, e cada grupo elaborou um mapa. Cada atividade de grupo durou aproximadamente 60 minutos, seguida da apresentação dos elementos cartografados em roda de conversa.

Realizou-se uma visita de campo, guiada por participantes da cartografia, para localização dos principais problemas apontados pela comunidade. Os encontros foram fotografados e os áudios gravados e posteriormente transcritos, sendo obtido o consentimento escrito dos participantes.

O conteúdo das transcrições foi organizado em categorias temáticas, realizada em seguida uma Análise de Discurso (AD)13. A sistematização e análise das questões emergentes nos diálogos se deu a partir da Condensação de Significados de Kvale (1996)14, em que os discursos foram condensados em um quadro constituído pelas categorias de análise e temas centrais identificados. Os dados foram tabulados no programa Excel.

O mapa final foi elaborado a partir da junção das geotecnologias de mapeamento digital e dos dados fornecidos pela comunidade, utilizando-se o software ArcGIS 10.2. Para análise do desmatamento, utilizou-se como referência os limites territoriais da Reserva Extrativista (Resex) Acau-Goiana, obtidos na página do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).

A pesquisa foi aprovada por um comitê de ética em pesquisas envolvendo seres humanos.

Resultados

O mapeamento realizado pela população revelou impactos sobre a saúde, o ambiente e a existência de conflitos associados ao cultivo da cana-de-açúcar no território (Figura 2).

Figura 2
Distribuição dos focos de calor no município de Goiana, Pernambuco, no período de 2007 a 2019.

Os impactos associados ao cultivo da cana-de-açúcar foram organizados em três categorias centrais, detalhadas no Quadro 1.

Quadro 1
Problemas associados ao cultivo da cana-de-açúcar no território de Tejucupapo, Goiana, Pernambuco.

Conflitos territoriais

Tejucupapo é explorado para a produção de açúcar desde o século XVI, e foi cenário de conflitos armados na época da invasão holandesa, sendo o mais emblemático deles a Batalha de Tejucupapo. Na região, essa história tem o modo e o devido lugar de ser contada, marcada pela oralidade, cuja população reconta orgulhosa a sua trajetória e reafirma a identidade coletiva. Por meio de uma encenação teatral, a comunidade reconta a trajetória das “Heroínas de Tejucupapo”, datada do século XVII, em que mulheres lideraram a expulsão dos invasores holandeses da localidade com o uso de água quente, pimenta e pedaços de madeira. Contudo, a população disputa com os “donos da terra” o espaço para realização do evento, já que o Monte das Trincheiras, marco dessa importante batalha, identificado por um obelisco, foi cercado e privatizado, demandando autorização do proprietário para acessar a área.

Segundo a comunidade, peças e registros arqueológicos encontrados no local foram levados para a sede de Goiana e para museus em Recife. Nessa área também estão abandonadas as ruínas do que a população afirma ter sido a primeira igreja no território, a Igreja de Santana (Figura 3a), conforme observado na visita de campo.

Figura 3
Impactos socioterritoriais relacionados ao cultivo da cana-de-açúcar no distrito de Tejucupapo, Goiana, Pernambuco.

No entorno desse sítio histórico localiza-se a Resex Acaú-Goiana, que é uma reserva extrativista onde a cana-de-açúcar avança sobre o território (Figura 3b), marcando novos conflitos territoriais, que desafiam a identidade coletiva na comunidade.

A identidade dos moradores é marcada pela organização popular, na resistência e permanência no território. As narrativas dos conflitos mais recentes incluem a expulsão de uma fábrica de agrotóxicos que pretendia se instalar na região e a disputa de parte do território com uma família de donos de engenho, que alega a propriedade de terrenos onde vive a comunidade.

A recente instalação de um polo industrial no município intensifica os conflitos socioterritoriais, intensificando a especulação imobiliária e o aumento no número de condomínios na região, com expulsão das famílias e inflacionamento do preço da terra. A apropriação privada do solo e dos biomas promove a supressão vegetal, impede seus usos coletivos e dificulta a provisão de infraestrutura urbana pelo Estado, como revela a comunidade.

Quando começa esse negócio de rio ter dono... Rio não é pra se ter dono. Antigamente até se bebia a água…

Como reflexo desse processo, foi relatado o aumento da violência no território, expressa pela ruptura de laços familiares e comunitários em decorrência da migração, sofrimento mental, consumo de drogas, violência física, prostituição, dentre outros. Houve relatos de tráfico e consumo de drogas na comunidade e a existência de grupos de extermínio e assassinatos de parentes dos participantes do estudo.

Danos ao ambiente

Os discursos apontaram problemas graves como a falta de saneamento na comunidade. Foi apontada a irregularidade na captação e tratamento do esgoto doméstico, que é descartado em uma unidade coletora conhecida localmente como “fossão”. A visita ao território revelou que o esgoto corre a céu aberto, corroborando com a fala dos participantes. Segundo relatos, o “fossão” foi instalado em um local anteriormente ocupado por um poço que fornecia água para a comunidade. O esgoto a céu aberto provoca desconforto pelo odor desagradável, descaracterização da paisagem, contaminação dos rios, córregos e lençóis freáticos e por propiciar a proliferação de mosquitos e outros vetores, como demonstra a comunidade:

Eu tenho algumas queixas sobre essa parte, sobre o desprezo que a gente vive:saneamento básico, é os esgotos correndo aí a céu aberto, é a cana-de-açúcar quando toca fogo, na minha casa não suja tanto porque tá coberta com plástico, mas o terraço fica todo pretinho eé a queixa de muitas outras pessoas aqui também[...]. E a outra coisa aqui que a gentequeixou a secretaria e nada feito é muriçoca. Tá uma peste de muriçoca muito grande dentro de Tejucupapo (grifos nossos).

A perda da qualidade da água de abastecimento é ocasionada também pela adição excessiva de produtos químicos sanitizantes pela concessionária, havendo relatos da alteração das propriedades físico-químicas e organolépticas, como odor e cor, causando dúvidas quanto à sua potabilidade. A precariedade do saneamento foi remetida a um sentimento de abandono, tanto pela prefeitura do município como pela companhia de abastecimento de água e esgoto, onde o pleito dos moradores para a adoção de medidas resolutivas nunca foi atendido.

O avanço do desmatamento pela expansão do monocultivo da cana-de-açúcar foi mencionado pelos participantes, inclusive em áreas de proteção ambiental (Figura 3c), como é o caso da Resex Acaú-Goiana, que sofre com o uso intensivo de agrotóxicos e fertilizantes químicos no monocultivo sucroalcooleiro, além da ampliação das atividades de carcinicultura.

A preocupação com o uso de agrotóxicos e a sua relação com a poluição ambiental marcou o discurso, sendo identificada inclusive a pulverização aérea. O uso do glifosato, popularmente conhecido como “mata-mato”, nos canaviais foi destacado, sendo apontada apreensão quanto às consequências do uso dessas substâncias para a saúde da população e para o ambiente, como a contaminação do solo, das águas superficiais e subterrâneas, dos manguezais e das lavouras de subsistência existentes no território:

Inclusive eu moro ali próximo de um canavial ali e tem um rio. Toda vez que aplica o agrotóxico ele vaza totalmente pra vagem. O rio da gente aqui tá tudo precisando de tratamento, né?

Os moradores relataram diminuição de espécies aquáticas antes encontradas em abundância na região, como mussum, caranguejo e guaiamum, que constituíam importante fonte de renda para os pescadores, sendo destacada a contaminação do pescado por agrotóxicos.

Quanto à poluição atmosférica, foi apontada queda significativa na qualidade do ar no período da queima da palha da cana e a sedimentação do particulado, que cobre as casas e locais próximos aos canaviais, ocasionando problemas ambientais e de saúde.

Danos à saúde

A cartografia social revelou a existência da queima da cana-de-açúcar durante os meses de colheita, que em geral vai de agosto a fevereiro, época seca do ano (Figura 3d). A fumaça e o material particulado se dispersam por longas distâncias, comprometem a qualidade do ar e afetam o sistema respiratório, principalmente dos mais vulnerabilizados, como crianças e idosos, que apresentam quadros sintomáticos de asma e dificuldade respiratória, relatados pela população. As consequências da queima foram mencionadas principalmente pelas mulheres que se ocupam do trabalho doméstico e da limpeza dos domicílios afetados pela fuligem:

Eu trabalhava no posto médico e tinha semana de gastar quatro balão de oxigênio, fora nebulização que era adulto, era criança, era todo mundo cansado pela queimada.

E todas as casas aqui fica afetada, né? Fica preta, preta, daquelas coisas que cai.

Quanto à exposição aos agrotóxicos, foram relatados casos de intoxicação aguda, incluindo casos múltiplos de intoxicação ocupacional, perda auditiva em trabalhadores que manuseiam agrotóxicos; aposentadoria por invalidez e outros agravos. Os participantes registraram dificuldades na assistência à saúde do trabalhador, sobretudo àqueles que estão diretamente expostos aos agrotóxicos na rotina do trabalho nos canaviais.

Tontura, intoxicação. Eu fui socorrido, tomei soro. Foram 6 camaradas comigo. Tudo num dia só...

Se vai pro SUS, toma uma dipirona, não tira raio-X, não faz exame de sangue.

Ficou evidente a dificuldade de acesso ao cuidado adequado, relatado pelos próprios trabalhadores que não há investigação de caso nem a realização de ações de vigilância que evitem a reincidência. Há também um quadro de insegurança alimentar devido à contaminação das lavouras por agrotóxicos, ameaçando a saúde da população.

O discurso revela a baixa qualidade do cuidado em saúde, o que evidencia a dificuldade de acesso a serviços e atendimentos por profissionais nos diferentes níveis de atenção. A precariedade dos serviços de saúde foi enfatizada pelos participantes mediante os relatos da escassez de profissionais, principalmente médicos, a falta de medicamentos e de ambulâncias no território. Há também a escassez de equipamentos sociais na comunidade, registrando-se a inexistência de serviços públicos de assistência social e equipamentos sociais/de lazer, com o reduzido número de escolas, além da precariedade no transporte público.

A saúde é de chorar. Não tem nem o que falar, né? De saúde que quando vem não tem cuidado, quando vai cuidar a gente não tem mais socorro.

Discussão

Conflitos e disputas territoriais e a materialização da violência no território

Os conflitos, as disputas por terra e a destruição do bioma para expansão sucroalcooleira evidenciados remetem a processos históricos de avanço do monocultivo da cana-de-açúcar, com apropriação do território mediada pela violência. O clima de medo, repressão e ausência de direitos15 formataram a relação das comunidades com o território, revelando a perversidade das dinâmicas estabelecidas por esta atividade ao longo dos séculos.

Apesar da demarcação de assentamentos rurais e da Reserva Extrativista em Goiana representarem uma vitória na disputa pela posse da terra, as relações sociais em Tejucupapo seguem afetadas por conflitos por terra para produção de cana-de-açúcar, e por indústrias e imobiliárias, que avançam sobre o território. Situação semelhante foi observada na Colômbia, onde a segmentação espacial causada pela expansão da cana-de-açúcar tem sido instituída por instrumentos de planejamento territorial, negando direitos constitucionais das comunidades16.

O despojo do espaço físico representa uma situação de injustiça, observada também na privação dos direitos sociais e culturais, o que evidencia a dimensão simbólica da marginalização do acesso ao território e de sua proteção. A ameaça de despojo é reforçada pela instalação contemporânea de grandes empreendimentos em Goiana, como o polo automobilístico, que pode afetar a territorialidade tradicional, sendo esses achados semelhantes aos encontrados em uma região produtora de cana-de-açúcar na Colômbia16.

Em Tejucupapo, a substituição dos canaviais por zonas industriais adiciona elementos às históricas disputas territoriais, uma vez que as indústrias se utilizaram das formalidades para classificar a região como zona de expansão urbana, gerando especulação imobiliária. A perenidade das disputas por terra entre a comunidade e os “latifundiários monocultores” é atualizada frente aos interesses do Estado, sendo evidenciadas em outras comunidades com características semelhantes, como o Engenho Massangana, no município do Cabo de Santo Agostinho, marcado pela violência da instalação de um complexo industrial portuário17. Em ambas as comunidades, os processos de expulsão, os conflitos territoriais e a permanência de modos de viver das comunidades dependem ora da expansão dos canaviais, ora da expansão industrial e urbana.

Uma consequência desse processo é o aumento da violência, expressa de forma econômica, física, moral e simbólica, comprometendo os direitos humanos e a dignidade. A violência generalizada na Zona da Mata teve como consequência expulsões dos territórios, e também conflitos duradouros, como observado na década de 1980, em que 74,4% dos assassinatos no campo em Pernambuco ocorreram em áreas de monocultivo da cana-de-açúcar18,19.

A marcante violência simbólica no território, onde o avanço do agronegócio marca a perda - da terra, da história, da memória, da cultura, da tradicionalidade/ancestralidade, da forma de se relacionar com a terra/água (pesca, mariscagem), da soberania e segurança alimentar e nutricional. Essas perdas aumentam a vulnerabilidade do território, o que agrava os problemas existentes, cria, reforça e legitima estigmas e se constituem em processos de discriminação. A violência simbólica se materializa na ruptura de laços familiares e comunitários em decorrência da migração, sofrimento mental, consumo de drogas, violência física, assassinatos, prostituição e outros. Esses achados são corroborados por outros estudos, como evidenciado nos estados de Goiás e São Paulo, onde registrou-se o aumento do tráfico de drogas e de conflitos e violência em áreas sucroalcooleiras20,21.

Mesmo com a violência e assimetria das relações de poder características desses territórios, é possível identificar formas de resistência desses povos, como observado em estudo realizado com moradores e trabalhadores de uma região produtora de cana-de-açúcar em Alagoas22.

Conforme observado em outros estudos22,23 e na presente pesquisa, as diferentes narrativas compartilhadas reafirmam a potência de vida e suas múltiplas formas de expressão, marcando as estratégias de resistência no território. As estratégias de resistência representam uma forma singular da população de enfrentar as violências oriundas das relações de poder estabelecidas, mas não se restringindo a elas. São fortes expressões do desejo de existir, resistir e ressignificar as existências no território, ou de manter seus modos de vida, demonstrando resistência diante de situações que ameaçam a vida no território.

Danos ao ambiente

A produção e beneficiamento da cana-de-açúcar consome grandes volumes de água24, agravando o cenário de abastecimento irregular e de baixa qualidade evidenciado em Tejucupapo. A priorização do fornecimento de água para o agronegócio em detrimento da população corrobora com o dado de que mais de 70% da água subterrânea e superficial é consumida pela agricultura, sendo boa parte desse volume desperdiçado25. Os problemas relacionados ao abastecimento de água refletem a precariedade do saneamento do município, onde apenas 33,5% dos domicílios apresentam saneamento ambiental adequado, segundo o Censo de 2010. Em comunidades tradicionais, a falta de estruturas básicas de saneamento é comum, sendo precários o esgotamento sanitário e o abastecimento de água26-28. O saneamento ambiental inadequado pode piorar o quadro geral de saúde, agravando doenças preexistentes e aumentando a suscetibilidade a outros problemas de saúde.

Quanto aos agrotóxicos, a cana-de-açúcar é uma das culturas que mais utiliza essas substâncias no Brasil, consumindo principalmente os herbicidas glifosato, popularmente conhecido como “mata-mato”, e o 2,4-D, o que está de acordo com os relatos dos participantes. Muitos desses agrotóxicos apresentam uma dinâmica ambiental favorável ao seu acúmulo, particularmente no solo e em águas superficiais e subterrâneas, corroborando o discurso dos participantes, que apontaram o arraste desses agentes para os rios. Estudos que avaliaram a contaminação das águas por agrotóxicos no cultivo de cana-de-açúcar evidenciaram a presença de diferentes ingredientes ativos em rios 4, bem como o risco elevado de contaminação da água subterrânea e dos lençóis subsuperficiais por herbicidas em todos os tipos de solo estudados, em profundidades de até dez metros29. O 2,4-D apresenta potencial de lixiviação, podendo contaminar águas subterrâneas, e o glifosato possui alto potencial de transporte associado ao sedimento30.

A pulverização aérea de agrotóxicos representa um dos principais problemas causados pela cultura da cana-de-açúcar, com danos reportados em comunidades rurais. A deriva dos agrotóxicos contamina solos, águas, culturas vizinhas, florestas e áreas residenciais próximas, havendo registro de desastres no Brasil, com exposição ampliada e ocorrência de dezenas de casos de intoxicações, particularmente em crianças31-33. A emissão de material particulado e substâncias tóxicas nos períodos da queima da cana também representa uma importante fonte de poluição atmosférica em regiões produtoras de cana e pode causar grandes incêndios6,9.

O lançamento de efluentes das usinas açucareiras nos rios também é preocupante, pois estima-se que o potencial poluidor do vinhoto/vinhaça é cerca de cem vezes maior que o do esgoto doméstico. O vinhoto causa impactos significativos ao ambiente, sendo considerado altamente nocivo à espécies animais e vegetais, particularmente à microfauna e microflora das águas doces, além de afastar espécies marinhas que se reproduzem na zona costeira34.

A apropriação de mananciais pelo agronegócio tem sido apontada como um dos principais motivadores de conflito por acesso à água no Nordeste35, sendo destacada a atuação do Estado no fortalecimento da lógica de apropriação do território, sobretudo por meio de incentivos à liberação de agrotóxicos e frágil monitoramento de seus danos36.

Sobre o desmatamento, estudos apontam que o agronegócio sucroalcooleiro promove a supressão da Mata Atlântica, inclusive reservas37,38, mesmo diante da redução da área cultivada no estado39. O desmatamento facilita a ação erosiva das chuvas, transporta sedimentos e agrotóxicos, contamina o solo, rios e lençol freático. Dados revelam que entre 63% e 75% do desmatamento global registrado entre 2000 e 2012 ocorreu para promover o avanço da agricultura comercial40. Desse total, de 36% a 65% era ilegal. Somente entre 2005 e 2013, a expansão de terras agrícolas, pastagens e plantações para fins industriais foi responsável por 62% do desmatamento no mundo, e que de 29% a 39% das emissões de carbono estão associadas a commodities agrícolas e florestais fora dos países de produção41.

O monocultivo da cana-de-açúcar em Tejucupapo tem promovido profundos impactos na atividade pesqueira e extrativista, consideradas as principais fontes de renda da comunidade. O lançamento de efluentes das usinas açucareiras também têm sido registrados na Resex, causando a morte de peixes e de outras espécies de interesse econômico, como siris e caranguejos19,42.

Saúde

Os impactos ambientais e os conflitos territoriais identificados no território se refletem na deterioração das condições de saúde da população.

Ao considerarmos a queima da palha da cana-de-açúcar, diferentes estudos encontraram uma associação positiva entre essa prática e surgimento ou agravamento de doenças cardiovasculares e respiratórias, como bronquite, enfisema e asma, tanto em trabalhadores como na população de áreas vizinhas aos canaviais. Observa-se o aumento da demanda por atendimento médico de indivíduos saudáveis no período das queimadas, com aumento da incidência de doenças respiratórias, principalmente entre crianças e idosos7,9,10.

Os relatos de intoxicações agudas por exposição aos agrotóxicos são semelhantes ao observado em outras regiões produtoras de cana-de-açúcar, particularmente entre trabalhadores8,43,44. Alterações significativas do equilíbrio corporal, ototoxicidade e perdas auditivas neurossensoriais também têm sido relatadas entre trabalhadores expostos45. Alguns agrotóxicos também podem causar problemas crônicos como cânceres, distúrbios endócrinos e outros5.

A exposição a agrotóxicos e ao material particulado oriundo das queimadas estão associados à ocorrência de estresse oxidativo e ao acúmulo de radicais livres no organismo, resultando em citotoxicidade e no desenvolvimento de doenças46.

As nocividades para a saúde relacionadas ao monocultivo da cana-de-açúcar geram uma importante demanda a ser assistida pelos serviços de saúde. Contudo, observou-se em Tejucupapo uma grande fragilidade nos serviços ofertados pelo Estado, ampliando as vulnerabilidades da população mediante a insuficiência da cobertura do SUS. Em Goiana, observa-se a ausência de políticas públicas voltadas para a saúde do trabalhador, a insuficiência de recursos financeiros voltados à Atenção Básica, número de profissionais insuficiente e elevada rotatividade, dificultando o estabelecimento de vínculo entre equipe e comunidade47.

A precariedade nos territórios camponeses é marcada pela maior dificuldade de acesso aos serviços de saúde, insuficiência de saneamento, dificuldades de transporte público e acesso à água, moradias precárias e fechamento sistemático de escolas nas zonas rurais. A política econômica neoliberal e seus modos de reprodução limitam o papel do Estado, o que dificulta o acesso da população do campo aos serviços públicos básicos26-28.

Considerações finais

O monocultivo da cana-de-açúcar desvela diversos processos de vulnerabilização que repercutem na saúde e no ambiente, estando associado a conflitos territoriais relacionados à concentração fundiária, desterritorialização, e produzindo desigualdades sociais e constantes ameaças de expulsão, privando a população dos seus modos de vida e existência originários. O ambiente, devastado e contaminado, gera inclusive danos econômicos, com a perda das principais fontes de renda associadas à mariscagem e pesca artesanal.

O direito à saúde tem sido negado na comunidade de Tejucupapo, e os serviços de saúde não são adequados às demandas geradas pelos problemas associados à cana-de-açúcar, revelando a insuficiência da cobertura do SUS para o atendimento das necessidades locais.

Os sentimentos de identidade e pertencimento associados à territorialidade são rompidos devido às perdas territorial, social e cultural promovidas pela cultura canavieira, descaracterizando os modos de vida da população. A agroindústria sucroalcooleira produz “a perda dos reflexos, diante do espelho”: a comunidade no território passa a não se reconhecer nele, “desmatado, poluído, privatizado e gerador de adoecimento e morte”.

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Editado por

  • Editores-chefes:
    Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    Mar 2022

Histórico

  • Recebido
    23 Jul 2020
  • Aceito
    20 Fev 2021
  • Publicado
    22 Fev 2021
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