Open-access Violências relacionadas ao trabalho e variáveis associadas em profissionais de enfermagem que atuam em oncologia

Resumo

A violência ocupacional é um agravo ao qual os profissionais de saúde estão cotidianamente expostos. O objetivo deste artigo é identificar a prevalência de violência no trabalho (verbal/física) e as variáveis relacionadas em profissionais de enfermagem atuantes em oncologia. Estudo transversal, em que a agressão física ou verbal foi avaliada por meio do autorrelato. Analisou-se a relação entre as variáveis sociodemográficas, psicoemocionais e relacionadas ao trabalho violência (verbal/física) por meio dos testes Qui-Quadrado, exato de Fisher, Test T Student e Mann-Whitney. A amostra do estudo foi composta por 231 profissionais de enfermagem. A prevalência de agressão física ou verbal referida no último ano foi de 61,5%. Maior prevalência de agressão foi evidenciada nos profissionais que afirmaram apresentar-se cansados ao final do plantão e com concentração diminuída durante este turno. Destaca-se que os trabalhadores que sofreram violência apresentaram Burnout em alto nível em todas as subescalas, maior escore médio na escala de estresse no trabalho e pior qualidade do sono. Os achados do presente estudo apontam para necessidade de medidas institucionais para prevenção e controle da violência ocupacional.

Palavras-chave: Violência no trabalho; Equipe de enfermagem; Recursos humanos em saúde; Saúde do trabalhador

Abstract

Occupational violence is a problem that health professionals are exposed to daily. This cross-sectional study aimed at identifying the prevalence of violence at work (verbal/physical) and the variables related to it in nursing professionals working in oncology. Physical or verbal aggression was assessed through self-report. The relationship between sociodemographic, psycho-emotional and work-related violence (verbal/physical) variables was analyzed using the Chi-Square, Fisher’s Exact, Student T and Mann-Whitney tests. The study sample consisted of 231 nursing professionals. The prevalence of physical or verbal aggression reported in the last year was 61.5%. A higher prevalence of aggression was evidenced in professionals who stated that they were tired at the end of the shift and presented reduced concentration during the shift. It is noteworthy that workers who suffered violence presented high levels of burnout in all subscales, a higher Mean score on the work stress scale and a lower Mean with regards to sleep quality. The findings of this study point to the need for institutional measures to prevent and control occupational violence.

Key words: Violence at work; Nursing team; Human resources in health; Worker’s health

Introdução

Violência é um fenômeno de alta complexidade e múltiplas determinações que se desenvolve na vida em sociedade, sendo influenciada pelo contexto histórico, cultural e político1-2. Manifesta-se em relações permeadas pela opressão, pela intimidação e pelo medo, evidenciando a proximidade entre violência e exercício do poder2-5, no qual as relações são hierarquizadas e as diferenças são transformadas em desigualdades2-5.

É desafiador construir uma única definição que abarque todas as dimensões e multiplicidades da violência2. Desta maneira, neste trabalho, optou-se por caracterizá-la como ação empreendida por um indivíduo, grupo ou país que promove privação de direitos, prejuízos físicos, psicológicos e morais a um indivíduo ou grupo3-4.

Esse fenômeno relacionado ao trabalho constitui expressão da violência, definida como ato voluntário contra um indivíduo ou grupo, ocasionando danos físicos, psicológicos ou ambos, tendo como local de ocorrência o ambiente laboral, compreendendo relações interpessoais e atividades associadas ao trabalho. Outrossim, também caracteriza violência relacionada ao trabalho a negação de direitos trabalhistas e previdenciários fundamentais, indiligência no que diz respeito às condições de trabalho, assim como a naturalização da morte e de doenças em decorrência do trabalho2. Pode expressar-se por meio de agressão física e/ou psicológica, assédio sexual, abuso e bullying6-8. Representa importante risco a que os trabalhadores estão expostos, impactando a saúde destes, com repercussão direta no processo de trabalho6-8.

Nesses cenários, os trabalhadores do setor saúde se destacam entre os demais profissionais, por apresentarem alta prevalência de violência relacionada ao trabalho, que corresponde a 25% de toda a violência em ambiente laboral notificada em todo o país-6-8.

Em relação aos profissionais da saúde, ao discriminar a proporção de violência por setor de atuação, evidenciam-se disparidades importantes na magnitude da agressão sofrida de acordo com a área de atuação e categoria profissional9-10. Os setores de maior risco são psiquiatria, salas de emergência, unidades clínicas e unidades cirúrgicas9-11; e os profissionais sob maior risco são os da equipe de enfermagem que apresentam três vezes mais risco de violência relacionada ao trabalho, quando comparados aos demais profissionais de saúde6.

Essa realidade pode associar-se à hierarquização do processo de trabalho da enfermagem e estratificação dos profissionais segundo nível de escolaridade12. A enfermagem brasileira é constituída por três categorias profissionais: enfermeiros, técnicos em enfermagem e auxiliares de enfermagem. As atividades de higiene, conforto e menos complexas são destinadas aos últimos, enquanto as atividades gerenciais e de cuidado de maior complexidade atribuídas aos enfermeiros, profissionais que possuem o Ensino Superior12. Nesse contexto, atribui-se menor valor e reconhecimento social às atividades da enfermagem que são associadas ao trabalho doméstico, como banho, troca de fraldas, alimentação, entre outros, sendo reflexo das desigualdades de gênero7-9.

Somado a isso, pode-se destacar o caráter das rotinas de trabalho que exigem contato direto e intenso com pacientes e acompanhantes, por vezes fragilizados pelo adoecimento ou insatisfeitos pela falta de resolução da assistência de saúde prestada, assim como pela realização de repetição de procedimentos invasivos, trabalho noturno solitário. Contraposto às dificuldades inerentes aos serviços de saúde, como demora na assistência, falta de profissionais suficientes e infraestrutura inadequada6-8.

Outra particularidade da categoria profissional da enfermagem é ser composta majoritariamente por mulheres7-9, o que pode explicar a alta prevalência de violência sofrida, pois o ambiente de trabalho reflete as desigualdades de gênero presentes na sociedade patriarcal, e assim as mulheres apresentam maior sofrimento associado ao trabalho, devido ao assédio moral, sexual, aos estigmas de fraqueza e menor capacidade intelectual13-14.

Nessa direção, estudo realizado com profissionais mulheres que atuavam em enfermagem identificaram alta prevalência de violência verbal, física e sexual no ambiente de trabalho (45,8%, IC95%38,5-53,4), perpetrada por pacientes, acompanhantes e colegas de trabalho11. Nos profissionais de enfermagem atuantes nos setores de psiquiatria, urgência e emergência, a agressão física foi a mais prevalente, e, nas demais áreas, a agressão verbal13.

A violência relacionada ao trabalho, em virtude da alta magnitude e dos impactos no processo de trabalho, apresenta como consequência: aumento do absenteísmo, maior insatisfação com o trabalho e alterações na saúde mental dos trabalhadores de enfermagem7-9. Não é um problema de saúde pública que recebe a devida importância, refletindo no pouco conhecimento dos procedimentos de notificação pelos profissionais vitimados e subutilização desses instrumentos pela gestão7, o que ocasiona a invisibilidade da violência, dificulta o diagnóstico, o planejamento, a implementação e a avaliação das ações de prevenção e controle desse agravo à saúde do trabalhador.

Frente a essa realidade e escassez de estudos que analisam a ocorrência da violência ocupacional em profissionais de enfermagem atuantes em oncologia, objetivou-se identificar a prevalência das violências no trabalho (verbal/física) e as variáveis relacionadas (sociodemográficas, atuação profissional, qualidade do sono, psicoemocionais -Burnout, estresse relacionado ao trabalho) em profissionais de enfermagem atuantes em Centro de Alta Complexidade em Oncologia, no estado do Rio de Janeiro, Brasil.

Método

Tipo de estudo, local, período, amostragem e critérios de inclusão

Estudo transversal, realizado com profissionais de enfermagem que atuavam em hospital especializado no tratamento oncológico no estado do Rio de Janeiro, Brasil.

Este estudo faz parte de pesquisa maior intitulado “Risco Cardiovascular e Carga Alostática em Profissionais de Enfermagem que atuam em Oncologia: variáveis biopsicoemocionais e relacionadas ao trabalho”, apresentado ao Programa de Pós-Graduação “Enfermagem na Saúde do Adulto - PROESA”, da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo.

O cálculo amostral resultou em 220 profissionais, provenientes de população de 574 profissionais de enfermagem, e realizado no programa SPSS, versão v.20.0, com nível de confiança (α) de 5% e poder de 80% (1-β) para prevalência de hipertensão de 40%. Destaca-se que a seleção dos integrantes da amostra ocorreu por meio de amostragem aleatória simples, utilizando-se do método de sorteio computacional, mediante a listagem de funcionários fornecidos pelos recursos humanos.

Os critérios de inclusão foram: pertencer à equipe de enfermagem (auxiliares/técnicos e enfermeiros), atuar na assistência a pacientes com câncer em unidades de internação e estar vinculado à instituição no mínimo há um ano. Excluíram-se os profissionais que estavam afastados (n=11) e gestantes (n=1) no período da coleta. Oito profissionais que se recusaram a participar do estudo foram repostos. Com vistas a compor a amostra selecionada (n=220), os 10 % (n=22) que fizeram parte do estudo piloto e a reposição das eventuais perdas (n=115) foram sorteados, totalizando 357 participantes, sendo que 231 compuseram a amostra final (Figura 1).

Figura 1
Fluxograma do processo de amostragem, exclusões e perdas. Rio de Janeiro, Brasil, 2021.

A coleta de dados foi realizada por equipe devidamente treinada, formada por três enfermeiros, no período de 01 de dezembro de 2013 a 30 de junho de 2015, totalizando 18 meses, em ambiente calmo e privativo, próximo ao ambiente de trabalho do (a) profissional.

Nesse contexto, a coleta dos dados ocorreu por meio de entrevista. Os participantes foram contatados pessoalmente, por telefone e/ou e-mail, e receberam informações sobre o estudo. Os que aceitaram participar tiveram dia e horário agendados para a coleta dos dados. Após leitura e assinatura do termo de consentimento livre esclarecido em duas vias, iniciaram-se a orientação para o preenchimento dos questionários e a coleta dos dados. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa.

Aplicou-se questionário sobre as variáveis sociodemográficas e relacionadas ao trabalho, posteriormente, solicitou-se o preenchimento dos instrumentos que analisaram as variáveis psicoemocionais, como a Escala do Estresse no Trabalho (ETT), Maslach Burnout Inventory (MBI), Self Reporting Questionnaire (SRQ-20) e do Índice de Qualidade do Sono de Pittsburgh (PSQI). Salienta-se que estes instrumentos foram validados para serem utilizados no Brasil e apresentaram alta validade e confiabilidade.

A ocorrência de violência física e/ou verbal foi avaliada a partir da pergunta: “Você já sofreu agressão física ou verbal durante o trabalho hospitalar no último ano? sendo as possibilidades de resposta dicotômicas (sim ou não). Caso a resposta a essa questão fosse positiva (sim), os trabalhadores eram questionados sobre o agressor, sendo as possibilidades de respostas, não mutuamente exclusivas, pacientes, acompanhantes e profissionais. Os profissionais que tinham mais de um vínculo empregatício foram orientados que se investigaria a ocorrência de violência no trabalho no local estudado.

As variáveis sociodemográficas avaliadas foram sexo, idade, estado civil, raça cor e renda mensal familiar (R$). E as relacionadas ao trabalho: categoria profissional; tipo de vínculo; tempo de formado (anos); maior nível de formação; número de vínculos empregatícios; horas de trabalho semanal; tempo de trabalho institucional (anos); escala de trabalho; trabalho em turnos (Sim/Não); Sofreu acidente durante o trabalho hospitalar (Sim/Não); Trabalha cansado (Sim/Não); termina o plantão se sentindo psicologicamente cansado (Sim/Não); A concentração diminuí durante o plantão (Sim/Não) (Quadro 1).

Quadro 1
Categorização das variáveis sociodemográficas e relacionadas ao trabalho. Brasil, 2021.

No intuito de identificar a presença de estresse, avaliou-se o estresse percebido por meio da pergunta: “Você se considera uma pessoa nervosa/estressada?” e da Escala de Estresse no Trabalho (ETT). A ETT é um instrumento unifatorial, com 23 itens do tipo Likert (1) discordo totalmente; (2) discordo; (3) concordo em parte; (4) concordo; e (5) concordo totalmente. O escore total da escala varia de 23 a 115 pontos, no presente estudo, a definição de pontos de corte foi realizada por meio de tercis (baixo, moderado e alto)15-16.

A agressão física foi considerada como o uso de força que resulte em dano físico ou psicológico; e a agressão verbal como uso de palavras em atitudes ofensivas, objetivando humilhar, caluniar, envergonhar indivíduos ou um grupo2,5.

A Síndrome de Burnout foi investigada por meio do Maslach Burnout Inventory (MBI), versão HSS (Human Services Survey)17-18, que possui três dimensões - exaustão emocional, despersonalização e baixa realização profissional, subdivididos em 22 itens. No presente estudo, a presença da Síndrome de Burnout foi definida pela presença de altos níveis nas três dimensões do instrumento de forma concomitante (exaustão emocional ≥ 27 e despersonalização ≥ 10 e baixa realização profissional ≤ 33), baseados nas recomendações da tabela fornecida pelo manual do instrumento17-18.

Ainda, rastreou-se a qualidade do sono, por meio do Índice de Qualidade do Sono de Pittsburgh (PSQI), que fornece uma medida de qualidade de sono padronizada. O instrumento PSQI consiste em 19 questões de autorrelato agrupadas em sete componentes: (1) qualidade subjetiva do sono (avalia a percepção individual a respeito da qualidade do sono); (2) latência para o sono (tempo necessário para iniciar o sono); (3) duração do sono (quanto tempo se permanece dormindo); (4) eficiência habitual do sono (relação entre o número de horas dormidas e o número de horas em permanência no leito, não necessariamente dormindo); (5) distúrbios do sono (presença de situações que comprometem as horas de sono); (6) uso de medicamentos para dormir e (7) sonolência diurna e distúrbios durante o dia (refere-se às alterações na disposição e entusiasmo para a execução das atividades rotineiras). Cada componente recebe pontuações que variam de 0 a 3. A soma da pontuação em cada questão comporá o escore global com pontuação que varia de 0 a 21, quanto maior a pontuação, pior a qualidade do sono13. Um escore global >5 indica que o indivíduo está apresentando má qualidade no padrão do sono13.

Os dados foram codificados e tabulados em planilha com o auxílio do Microsoft Excel, por meio de dupla digitação.

A análise descritiva foi realizada por meio de frequências absolutas e relativas para variáveis categóricas; médias e desvio padrão para as variáveis quantitativas. Em seguida, avaliou-se a existência de diferença estatisticamente significativa entre a ocorrência de violência (sim/não) e as variáveis nominais ou ordinais por meio do teste de Qui-quadrado de Pearson, razão de verossimilhança ou teste exato de Fischer. Para as variáveis contínuas, aplicou-se o teste U de Mann-Whitney ou teste T-Student, dependendo da distribuição da variável estudada. Consideraram-se significativos valores de p ≤ 0,05 e analisaram-se os dados pelo programa estatístico R, versão 3.2.1.

Resultados

A maioria dos profissionais de enfermagem era do sexo feminino (82,7%), não brancos (54,5%), vivia com companheiro(a) (70,6%), com média de idade igual a 39,6 anos (DP=8,3) e renda média de R$ 9.045,00 (DP=4.416,17) (Tabela 1).

Tabela 1
Prevalência da caracterização do agressor e características sociodemográficas dos profissionais de enfermagem, segundo a ocorrência de violência autorreferida. Rio de Janeiro, Brasil, 2021.

Em relação às variáveis profissionais, houve predomínio de auxiliares/técnicos em enfermagem (63,6%,), cuja quase totalidade atuava na área assistencial (97,4%), estatutários (80,1%) e como maiores formações a residência e especialização (43,4%). Ainda se destaca que a maioria referiu um vínculo empregatício (56,3%), tinha o plantão diurno como escala fixa (53,2%), trabalhava em turnos alternados (59,7%), com média de horas trabalhadas de 52,0 (DP=15,5) e tempo de trabalho institucional de 8,6 (DP=7,5) (Tabela 2).

Tabela 2
Características relacionadas ao trabalho dos profissionais de enfermagem, segundo a ocorrência de violência autorreferida. Rio de Janeiro, Brasil, 2021.

Ademais, é digno de nota que os profissionais trabalhavam em grande proporção cansados frequentemente/algumas vezes (92,2%), terminavam o plantão se sentindo psicologicamente cansados (87,0%) e manifestaram concentração diminuída durante o plantão frequentemente/algumas vezes (62,3%) (Tabela 2).

A avaliação da Síndrome de Burnout, estresse por meio da ETT e transtorno mental comum, verificou que os sujeitos estudados mostravam alto nível de desgaste emocional (55,0%), alto nível de despersonalização (64,1%), alto nível de baixa realização profissional (73,2%), e 39,0% apresentaram Burnout alto nível nas três subescalas. Em relação ao estresse, constatou-se semelhança entre as diferentes categorias de resposta da escala (baixo moderado e alto estresse), no entanto, 57,6% da amostra apresentaram transtorno mental comum (Tabela 3).

Tabela 3
Burnout, estresse relacionado ao trabalho e transtornos mentais comuns entre profissionais de enfermagem, segundo a ocorrência de violência autorreferida. Rio de Janeiro, Brasil, 2021.

Na amostra, 61,5% (n=142) foram expostos à violência no trabalho física e/ou verbal no último ano, foram maiores perpetradores de violência, respectivamente, acompanhantes, pacientes e outros profissionais de saúde. Destaca-se que a maior proporção dos profissionais que sofreu violência vivia com companheiro (76,8 % vs 60,7%, p=0,009), terminava o plantão se sentindo psicologicamente cansado frequentemente/ algumas vezes (69,0% vs 62,3%, p=0,003), quando comparados aos que não sofreram violência (Tabela 2). Ademais, os profissionais que sofreram violência se consideravam estressados (50,0% vs 36,0%, p=0,037), e apresentaram menor média de qualidade de sono, quando comparados aos profissionais não expostos à agressão verbal/física (p=0,016).

É digno de nota o fato dos profissionais que sofreram violência apresentarem maior proporção de exaustão/desgaste emocional, despersonalização e baixa realização em alto nível (p<0,0001) e Burnout alto nível nas três subescalas (p<0,0001), quando comparados aos profissionais que não sofreram violência. Do mesmo modo, verificou-se maior escore médio de estresse no trabalho naqueles profissionais (p=0,015) (Tabela 3). Ainda, os profissionais que relataram agressão (verbal/física) apresentaram maior prevalência de concentração diminuída durante o plantão (69,0 vs 51,7%, p=0,008) (Tabela 2), e também mostram maior média no escore global do PSQI (9,1 vs 8,1, p=0,016) (Tabela 3).

Discussão

A violência relacionada ao trabalho representa ato proposital contra um indivíduo ou uma categoria profissional, caracterizando-se por agressão física ou psicológica que ocorre em relações interpessoais no ambiente de trabalho, privando os trabalhadores de um direito trabalhista essencial, que é o processo de trabalho seguro2,4, com impactos expressivos na saúde do trabalhador e qualidade do trabalho desempenhado.

No presente estudo, evidenciou-se alta prevalência (61,6%) de agressão verbal/física, no último ano, entre os profissionais de enfermagem que atuavam em setor de internação especializado em oncologia, tendo esse agravo à saúde se relacionado às alterações psicoemocionais: baixa qualidade no sono; Burnout em alto nível em todas as subescalas (exaustão/desgaste emocional, despersonalização e baixa realização); e maior escore médio na escala de estresse no trabalho.

Adverte-se que essa realidade não pode ser considerada como evento isolado ou infortúnio, mas um fenômeno que está estruturalmente vinculado às questões socioeconômicas, culturais da sociedade e organizacionais das instituições de trabalho1-5. Pressuposto que se confirma ao avaliar a proporção de agressão referida pelos trabalhadores de enfermagem do serviço de oncologia estudado, assim como em hospitais na Região Sul do Brasil (63,2%)20, no estado do Rio de Janeiro (46,7%)21, na cidade de Londrina, em que 100% dos enfermeiros e 88,9% dos técnicos de enfermagem relataram ter sofrido violência22.

Na instituição hospitalar estudada, merece atenção a maior prevalência de agressão verbal/física em técnicos/auxiliares de enfermagem (62,7%), o que pode ser reflexo da hierarquização da enfermagem brasileira, em que as atividades de cuidado direto ao paciente são desempenhadas prioritariamente por esses trabalhadores12, aumentando a exposição destes ao sofrimento da violência por acompanhantes e pacientes, devido ao contato direto e contínuo durante o plantão21,23. Ainda, as atividades laborais são desenvolvidas predominantemente por mulheres, tarefas consideradas de menor valor, devido à vinculação ao trabalho doméstico12, elevando a chance de serem desrespeitados por usuários dos serviços de saúde e respectivos familiares e sofrerem violência10,24, em virtude das desigualdades de gênero que permeiam as relações sociais na sociedade patriarcal14.

Somadas às características do processo de trabalho da enfermagem, devem ser consideradas as especificidades da assistência aos pacientes oncológicos, pois, nesses serviços de internação, os pacientes se encontram, muitas vezes, debilitados fisicamente, exaustos com tratamentos (cirúrgicos, quimioterápicos ou radioterápicos), com dor, em detrimento da terapêutica ou extensão da doença, ou em cuidados de fim de vida. Situação que promove alto nível de estresse e sofrimento para os pacientes e respectivos acompanhantes/familiares, aumentando o risco de ocorrência de agressão verbal/física, caso as necessidades de saúde e o cuidado não sejam atendidos com a prontidão desejada por estes.

No serviço oncológico estudado, no momento da pesquisa, não se relatou escassez de recursos materiais para assistência de enfermagem, no entanto, observou-se déficit de profissionais, tendo em vista o cuidado de alta especificidade e complexidade exigido25. Esses trabalhadores pontuaram mais de 50 horas média de trabalho semanal, devido à alta proporção de profissionais com mais de um vínculo de trabalho (39,7%) e à possibilidade de realização de plantões extras na instituição, com vistas a suprir o déficit de profissionais25, realidade que tem por finalidade a complementação da renda, amplificando o desgaste desses trabalhadores25, podendo gerar comportamentos que aumentam a probabilidade de ocorrência de violência, em virtude do estresse, do cansaço e da desatenção20-22.

Nessa direção, os trabalhadores que sofreram agressão física/verbal relataram, em maior proporção, terminarem o plantão se sentindo psicologicamente cansados, com a atenção reduzida durante este período, com pior qualidade do sono e maior média na escala de estresse no trabalho. Além da maior prevalência de alto nível de exaustão/desgaste, despersonalização e baixa realização profissional, associados ao déficit profissional previamente referido, têm-se as características da clientela assistida, com mudanças repentinas no quadro clínico, emergências oncológicas, presença da morte e do luto frequentemente experenciados por esses trabalhadores26-27. Essas alterações psicoemocionais podem resultar em falhas no atendimento, motivando reações agressivas tanto dos pacientes como dos acompanhantes ou até de membros da própria equipe28-39.

O desenho do presente estudo, transversal, não permite identificar se essas alterações psicoemocionais surgiram após o episódio de agressão ou se a existência destas aumentaram o risco de ocorrência de violência no trabalho. No entanto, sabe-se que a presença de violência gera insatisfação no trabalho20 e sentimento de desvalorização profissional6, o que, por sua vez, causa irritabilidade nos trabalhadores, interfere na qualidade da assistência prestada e na segurança do paciente, aumentando o risco destes trabalhadores sofrerem violência física ou verbal20, retroalimentando o ciclo de violência no trabalho.

A alta prevalência de agressão verbal/física observada nos trabalhadores de enfermagem merece grande atenção da gestão do hospital estudada, pois, apesar de não ter sido foco deste trabalho, estudos têm evidenciado que o Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) é o problema de saúde mental mais comum após experiência de um evento traumático no ambiente de trabalho39. Estudo de revisão constatou que 10% a 18% das profissionais vítimas de violência no trabalho irão desenvolver sintomas que satisfazem os critérios de TEPT. Ademais, estes trabalhadores apresentaram maior risco de uso de antidepressivos e ansiolíticos (RR=1,45; IC95% 1,01-2,33)40. A presença de TEPT como consequência de acidente de trabalho tem sido relacionada com absenteísmo e pode impactar no relacionamento desse profissional com a equipe de saúde e os pacientes, em detrimento da maior probabilidade de irritação, dificuldades na concentração e comunicação39-40.

No entanto, apesar da grande magnitude e transcendência desse problema de saúde pública, o assunto exposto, ainda, é negligenciado por gestores8, pois acreditam que a agressão verbal faz parte do trabalho em saúde, em consequência da fragilidade dos pacientes e da incapacidade do sistema e dos serviços de saúde de atenderem às necessidades em saúde, sendo os profissionais de saúde os representantes do Estado, no qual os usuários e respectivos familiares irão apresentar o descontentamento por não ter o direito à saúde garantido6,20 ,41.

É importante ainda destacar que, embora o presente estudo seja situacional, não se utilizou da escala padronizada para avaliação da violência, além de não discriminar o tipo de violência sofrida, tendo, contudo, importância ao dar visibilidade à violência vivenciada por profissionais de enfermagem atuantes em oncologia, destacando a alta prevalência e os impactos em saúde mental.

Conclusão

Evidenciou-se que os profissionais de enfermagem de um Centro de Alta Complexidade em Oncologia, no estado do Rio de Janeiro, Brasil, que compuseram a amostra deste estudo, apresentaram alto nível de prevalência de violência autorreferida, perpetrada, na maioria, por acompanhantes e pacientes. Assim, este estudo revela face violenta, na qual os profissionais de enfermagem, cuja atividade laboral é de grande relevância, estão expostos cotidianamente.

Ademais, os profissionais de enfermagem que referiram ter sofrido violência apresentaram mais alto nível de desgaste emocional, despersonalização, Burnout, além de maior média de baixa realização profissional, estresse ocupacional e má qualidade do sono. Portanto, o fenômeno da violência no trabalho repercute negativamente na saúde destes profissionais e, consequentemente, na realização das atividades profissionais, podendo reverberar na diminuição da qualidade na assistência prestada e na segurança dos pacientes.

Este estudo aponta para urgência de demandas institucionais que visem à proteção dos profissionais de enfermagem em ambientes laborais, que devem passar, necessariamente, pela educação de acompanhantes e pacientes e, sobretudo, pela valorização profissional. Além disso, foi o primeiro estudo brasileiro a avaliar a violência ocupacional em trabalhadores de enfermagem atuantes em unidades de internação especializadas no atendimento ao paciente oncológico.

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  • Financiamento
    Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) - código do financiamento 001.

Editado por

  • Editores-chefes:
    Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    Dez 2021

Histórico

  • Recebido
    30 Mar 2020
  • Aceito
    22 Jul 2021
  • Publicado
    24 Jul 2021
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