Open-access Sobre a Soberania Sanitária no Complexo Industrial da Saúde

Resumo

O artigo discute o lugar do Complexo Industrial da Saúde na iniciativa governamental de uma nova industrialização no Brasil. Para isso, aborda eventuais caminhos que a iniciativa reserva para os seus diversos componentes. Começa discutindo a propriedade desse processo mirar uma “soberania sanitária” como objetivo. Em seguida, aponta a necessária articulação da indústria na saúde com a política geral de industrialização. Ressalta o papel do Estado e do setor privado nesse processo e ressalta a presença do SUS e do Ministério da Saúde. Finalmente, aponta as condições de competição entre o Complexo Industrial da Saúde e o oligopólio industrial global.

Palavras-chave: Nova política industrial; Complexo Industrial da Saúde; Ciência; Tecnologia e Inovação em saúde

Abstract

The article discusses the place of the Health Industrial Complex in the government initiative for a new industrialization in Brazil. To this end, it discusses possible paths that the initiative reserves for its various components. It begins by discussing the appropriateness of this process to target “sanitary sovereignty” as an objective. Then, it points out the necessary articulation of the health industry with the general industrialization policy. It emphasizes the role of the State and the private sector in this process and emphasizes the presence of the SUS and the Ministry of Health. Finally, it points out the conditions of competition between the Health Industrial Complex and the global industrial oligopoly.

Key words: New industrial policy; Health Industrial Complex; Science; Technology and Innovation in health

A soberania e o direito de governar não

podem ser conferidos a quem quer que seja... como resultado de uma discussão acadêmica.

A soberania é adquirida pela força,

poder e violência.

Mustafa Kemal Ataturk

Sobre o uso do conceito de Soberania no contexto sanitário

Sobre o conceito de soberania, vale mencionar que ele pertence ao campo da ciência política, da geopolítica e da sua ferramenta executiva, a diplomacia. Diz respeito ao lugar do Estado como ponto mais elevado numa hierarquia de poder dentro de suas fronteiras. Tal como o utilizamos hoje em dia, ele foi exaltado a partir de 1648, quando da formação dos Estados Nacionais na Europa, na chamada Paz de Westphalia. Ali foram estabelecidas as fronteiras de muitos estados nacionais europeus e inaugurado o conceito de Estado-Nação. A partir daí, todas as vezes em que se declarou uma guerra ou se negociou uma paz, o tema das fronteiras nacionais veio à tona. O princípio da inviolabilidade das fronteiras nacionais fez parte da Liga das Nações e, após a 2ª Guerra, da Carta da ONU. Em ambas esse princípio esteve presente a despeito de elas terem sido violadas muitas dezenas de vezes pelo mundo afora. E frente a violações o resultado mais comum é a guerra. Esse comentário tem o objetivo de moderar o uso do termo quando se discute o grau de autodeterminação de um país no âmbito do Complexo Industrial da Saúde.

No contexto sanitário a soberania está estabelecida na Constituição Federal de 1988 em seus artigos 196 e imediatamente seguintes. Esses dispositivos definem a saúde humana como um direito, a partir da noção da universalidade. Trata-se de uma disposição que, conceitualmente, não admite grau maior ou menor: todas as cidadãs e cidadãos têm direito à saúde e a garantia desse direito é um dever do Estado brasileiro. Entretanto, no contexto específico do Complexo Industrial da Saúde (CIS) temos uma situação distinta, em que as dificuldades atualmente postas a ele dizem respeito mais à noção de autossuficiência do que de soberania. Mais especificamente, à diminuição da dependência externa nesse terreno. Não há países 100% autossuficientes - portanto soberanos - no campo do CIS. Por exemplo, o mercado de medicamentos nos Estados Unidos, líder mundial na indústria da saúde, é de cerca de US$ 700 bilhões1 anuais e aquele país importa algo como US$ 165 bilhões em insumos farmacêuticos e medicamentos acabados2 - uma importante autossuficiência, mas não uma soberania.

Há enormes desigualdades no grau de autossuficiência entre países. Um dos primeiros passos para o aumento da desigualdade foi a decretação dos acordos TRIPS, em 1994 na OMC que “harmonizaram” em nível mundial as regras sobre propriedade intelectual em benefício dos países proprietários de patentes. Mais recentemente, com a crise da globalização produtiva e financeira e o deslocamento do eixo geopolítico para o Leste, a derrocada da utopia dos mercados livres, desregulamentados e complementares também tem contribuído para o aumento dessa desigualdade. Durante a pandemia de COVID-19 esse processo se radicalizou e ficou patente no campo das vacinas. O relatório de 2022 da OMS sobre vacinas mostra que de todas as vacinas contra o SARS-CoV-2 apenas 14% foram oriundas de sua iniciativa COVAX, destinada aos países pobres3. Importante ressaltar que a ocorrência da pandemia não originou esse fenômeno, mas sim o expressou de forma mais aguda.

O Complexo da Saúde não é uma ilha

Atualmente, a indústria de transformação no Brasil responde por cerca de 10% do Produto Interno Bruto e em meados dos anos 1980 respondia por quase 30%. O processo de desindustrialização nas economias nacionais não foi um fenômeno exclusivamente brasileiro, mas entre nós revestiu-se de características particularmente danosas, tanto por características estruturais da formação do parque industrial (substituição de importações sem domínio das tecnologias envolvidas), quanto pela revolução nos padrões da produção industrial operada nos países líderes durante a nossa trajetória de desindustrialização, alicerçada na incorporação de tecnologias avançadas nos processos produtivos (indústria 4.0). Neste momento em que se ensaia uma nova tentativa de reindustrializar o país, é essencial advertir que o CIS não é uma ilha e o seu fortalecimento com vistas ao aumento de nossa autossuficiência sanitária exigirá uma articulação com o esforço geral dessa nova tentativa.

A reivindicação de uma posição de prioridade para o CIS dentre os demais setores industriais decorre não apenas da sua relevância social, como também de seu impacto econômico e estratégico. No plano econômico porque o CIS congrega grande contingente de força de trabalho com componentes de alta qualificação. No plano estratégico porque ele é intensivo em tecnologia sendo, ao lado da indústria das tecnologias de comunicação e informação, aquele que mais investe em desenvolvimento tecnológico. O ponto de partida desse novo processo de estancamento da desindustrialização foi a reativação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial (CNDI), vinculado à Presidência da República4. A proposta de trabalho engloba sete missões prioritárias, cada uma delas sob a responsabilidade de um grupo de trabalho. O CIS está representado em uma missão denominada “Complexo da saúde resiliente para a prevenção e o tratamento de doenças”5.

A cadeia produtiva industrial de medicamentos engloba, atualmente, quatro tipos de indústrias: indústria farmoquímica, indústria farmacêutica de base química, indústria farmacêutica de base biotecnológica (inclusive vacinas), e indústria farmacêutica de produtos naturais. Muito embora todas elas façam parte de um mesmo Complexo (CIS), apresentam características bastante particulares entre si. Essas diferenças situam-se no campo da escala de produção, das tecnologias envolvidas, dos processos produtivos, dos valores adicionados, do peso de cada uma no mercado global e das tendências projetadas por cada uma neste mercado. Portanto, os gargalos existentes e os caminhos para superá-los devem levar em conta essas especificidades e um debate sobre o aumento de autossuficiência deve levar em conta essas diferenças.

A indústria farmoquímica tem principal insumo os intermediários de síntese, a maioria deles derivada da indústria petroquímica (benzeno, etanol, eteno, etc.) submetida a várias transformações. No ramo farmacêutico, essas transformações resultam nos insumos farmacêuticos ativos (IFAS), base da composição dos medicamentos. Os IFAS representam uma proporção relativamente pequena no custo do medicamento acabado. Daí resulta que sua escala de produção é uma variável essencial para estimar o sucesso de uma unidade produtiva nessa indústria. Muitos IFAS são considerados commodities. Entretanto, cada vez mais o mercado de medicamentos de base química mais complexos exige IFAS de maior valor agregado, que não são considerados commodities e este fato é importante na formulação de uma política industrial para este segmento. Atualmente importamos cerca de 95% dos IFAS para medicamentos produzidos no Brasil6. Na década de 1980, importávamos cerca de 50% (outras estimativas falam em 20%). A mudança deveu-se à abertura comercial ocorrida na década de 1990. Essa abertura levou ao fechamento de muitas unidades produtivas de IFAS no país, que não puderam competir com as produções indiana e chinesa, ancoradas em políticas industriais mais estritas no sentido do estímulo à produção local.

Atualmente, é pouco provável que uma produção local de farmoquímicos baseada em commodities possa ser competitiva com Índia e China em função das diferenças de escala de produção, do menor custo da mão de obra naqueles países e da hegemonia que conquistaram nos grandes mercados mundiais. A estratégia para a indústria local deve ser dirigida a moléculas selecionadas, mais complexas, e do estímulo a compras públicas. Entretanto, a existência de episódios de desabastecimento de medicamentos essenciais no Brasil sugere que moléculas mais tradicionais, como por exemplo antibióticos e outros produtos presentes em episódios de desabastecimento sejam também priorizadas. Recentemente, a Associação Brasileira das Indústrias de Insumos Farmacêuticos (ABIQUIFI) entregou aos Ministérios da Saúde e de Ciência, Tecnologia e Inovações um estudo com medidas para a ampliação de 5% para 20% nos insumos farmacêuticos produzidos no país. Em trajetória similar, a Fiocruz e a Associação das Indústrias de Química Fina, Biotecnologia e suas Especialidades (ABIFINA) firmaram convênio para a elaboração conjunta de um conjunto de IFAS considerados estratégicos para o SUS7. Uma visão circunstanciada dos desafios e oportunidades da indústria farmoquímica brasileira pode ser encontrada no trabalho “Há espaços competitivos para a indústria farmoquímica brasileira? Reflexões e propostas para políticas públicas”8.

O mercado brasileiro de medicamentos é de cerca de R$ 110 bilhões e as vendas no varejo representam cerca de 70% do mesmo; 30% são vendas institucionais, aí incluídas as compras do SUS. Diferentemente das farmoquímicas, a indústria farmacêutica baseada em síntese química apresentou grandes crescimento e consolidação após a abertura comercial da década de 1990. Isso decorreu de vários fatores onde se destacam a política de genéricos, o crescimento da demanda decorrente das políticas de inclusão social, dos aumentos sustentados do salário mínimo, dos programas de Farmácia Popular e da Política de Desenvolvimento Produtivo, que será mencionada mais adiante. Atualmente, dentre as 18 maiores farmacêuticas com atuação no Brasil, dez (dentre as quais a maior) são empresas de capital nacional9. Cerca de 80% dos medicamentos consumidos no país são aqui fabricados total ou parcialmente. Dentre os medicamentos totalmente fabricados aqui, as empresas líderes do mercado são as de capital nacional e sua participação no mercado é majoritária em termos de unidades farmacêuticas. Em termos de valor, as empresas multinacionais com fábricas ou escritórios no Brasil detêm a maior fatia de mercado. As empresas multinacionais sediadas no Brasil vêm desativando unidades produtivas desde a abertura comercial dos anos 1990. Crescentemente importam medicamentos acabados, apenas finalizados e embalados no Brasil.

A Associação dos Laboratórios Oficiais do Brasil (ALFOB), engloba 21 laboratórios ativos, a maioria públicos (10 federais e estaduais) e os demais com estatuto jurídico diverso. Essa rede possui graus muito heterogêneos de capacidade produtiva e, principalmente, de absorção de tecnologias. Dentre os laboratórios oficiais, destacam-se os que produzem imunizantes - vacinas e soros. São eles o Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (BioManguinhos/Fiocruz), o Instituto Butantan, vinculado ao governo de São Paulo e o Instituto de Biologia Molecular do Paraná (IBMP), gerido por um consórcio entre a Fiocruz e o Instituto de Tecnologia do Paraná (TECPAR). Devem ainda ser mencionadas a Fundação Ezequiel Dias (FUNED), de Minas Gerais e a Fundação Ataulpho de Paiva, neste momento em processo de associação com a Fiocruz. Essas instituições têm um papel importante numa política para o CIS pois muito embora grandemente heterogêneos quanto aos seus portfólios e suas capacidades tecnológicas/produtivas, sua relevância reside em sua atuação orientada 100% por um espírito de missão vinculada ao SUS.

O mundo tem testemunhado grandes avanços no campo das tecnologias para a produção de medicamentos por rotas biotecnológicas. A despeito de, atualmente, representarem pouco menos do que 30% do mercado mundial de medicamentos, tudo indica que o futuro da indústria farmacêutica é o de tornar-se uma indústria biofarmacêutica. Em paralelo a essa tendência, a indústria de vacinas que hoje está organicamente integrada à de medicamentos e responde por pouco menos de 10% do mercado mundial de medicamentos, acompanha aquela tendência. Atualmente, explorando todo um novo universo das vacinas baseadas em plataformas de tipos variados, como percebido na pandemia de COVID-19.

Além da proximidade com o SUS, os laboratórios oficiais que desenvolvem e produzem vacinas e medicamentos biotecnológicos vêm se preparando para ajustar-se a essas novas tendências globais. BioManguinhos, Butantan, FUNED e IBMP, mediante escolhas distintas em termos de alvos, aumentam muito sua importância estratégica para o aumento da autossuficiência sanitária, haja vista sua experiência tecnológica e produtiva.

Atualmente, tanto o Butantan quanto BioManguinhos dominam as tecnologias mais tradicionais e o desafio mais importante nesse aspecto é o domínio tecnológico e produtivo das novas plataformas para biomedicamentos e vacinas. Historicamente, as duas instituições, na maior parte de seus sucessos, têm baseado sua atividade numa estratégia de transferência de tecnologia mediante licenciamentos voluntários. Além do prestígio internacional de ambas, a grande demanda do Programa Nacional de Imunizações é que tornou atrativa para os detentores das tecnologias a negociação da transferência com algumas cláusulas de compensação tecnológica, o que propiciou boa parte de sua capacitação nesse terreno. Entretanto, esse importante mecanismo apresenta várias e já conhecidas dificuldades, além de um esgotamento que tende a crescer com as inovações tecnológicas ora observadas no campo vacinal e de biomedicamentos. Os problemas tradicionais nessa estratégia são, entre outros, a possibilidade de transferência de tecnologias obsoletas sempre que o contrato não prever atualizações, e a não transferência de toda a tecnologia, deixando o recipiente em permanente subordinação ao vendedor, bem como a limitação de mercados e de preços para o produto produzido localmente. A razão do provável futuro estreitamento desse caminho é que as novas tecnologias baseadas em novas plataformas em muitos casos não estarão à venda como compensação à compra dos produtos acabados pelo SUS. Não apenas por razões comerciais, como também pelas dificuldades técnicas envolvidas em uma eventual transferência. Daí a necessidade da exploração de novas formas de associação como, por exemplo, o compartilhamento de risco (encomendas tecnológicas), já testadas com sucesso no caso das respectivas vacinas durante a pandemia.

Como já observado mais acima, o atual quadro geopolítico e a pandemia de COVID-19 geraram uma quebra de muitas cadeias produtivas globais até então compartilhadas e complementares em algum grau. Em todo mundo, essa quebra teve como resultado claro a necessidade da introdução, em algumas políticas setoriais, da incorporação no país de etapas upstream nos processos tecnológicos e produtivos relativos a essas políticas. No que se refere ao CIS, essa incorporação é inquestionável e há notícias no Brasil de produtos em processo de desenvolvimento desde a bancada. Sem a intenção de ser exaustivo, projetos dessa natureza estão em curso na USP, na UFMG e na Fiocruz. A velocidade e as condições de sucesso dessas iniciativas são tributárias de um grande reforço no apoio à pesquisa científica básica e translacional.

Dentre os bioprodutos de interesse estratégico para o país estão os derivados do sangue humano. Particularmente em situações de crise, mas não apenas, é essencial o domínio completo da coleta, purificação, fracionamento e produção de medicamentos hemoderivados. A hemoterapia no Brasil vem sendo construída em bases também públicas e universalistas e grandes passos foram dados em direção ao fornecimento do sangue e suas frações ao público. Isso foi conquistado mediante a instalação de 36 hemocentros e órgãos de coordenação10 espalhados pelo país. Destaque-se também o KIT NAT para a detecção de HIV, e Hepatites B e C nas bolsas de sangue, integralmente desenvolvido no IBMP e introduzido na rede desde 2011 por BioManguinhos. Recentemente (2022), foi lançado o KIT NATplus que somou a malária aos alvos anteriores. Entretanto, o domínio do ciclo completo na manipulação do sangue humano ainda é um desafio no Brasil. Após longos percalços, a planta industrial da Hemobrás em Goiana, Pernambuco, está sendo reativada com vistas à sua conclusão. A capacitação tecnológica está ainda sendo realizada mediante a transferência de tecnologia e penso que o desafio a ser superado é o domínio completo das tecnologias recombinantes e a produção autóctone dos principais hemoderivados.

Em 2015, havia 166 empresas com registros ativos no segmento das indústrias farmacêuticas de produtos naturais. Seu mercado é predominantemente doméstico. A tendência atual é de diminuição do número de empresas e de registros ativos. Essa redução do número de empresas vem se realizando em favor de empresas de capital estrangeiro. Nas maiores empresas com atividade em fitoterápicos, esta não é a atividade principal. A despeito da grande biodiversidade brasileira, o setor sofre com baixa padronização da matéria-prima e dificuldades regulatórias para o acesso às suas fontes. A indústria de produtos naturais é muito pouco articulada com o SUS, embora o tema dos medicamentos naturais seja bastante tradicional11.

O papel do Estado e do SUS no Complexo Industrial da Saúde e as condições de competição

Um novo patamar no cenário da autossuficiência do CIS deverá ser alcançado com o concurso de múltiplos atores, públicos e privados. O avanço da Nova Política Industrial que, como já foi mencionado, tem o CIS como um de seus setores prioritários, coloca o parque industrial privado como um ator indispensável. A nova política industrial deverá ter um olhar específico para cada um dos componentes do CIS, cujas demandas são distintas. Farmoquímicos, medicamentos, equipamentos, materiais e outros componentes do CIS, cada uma dessas indústrias necessitará ser objeto de um olhar diferenciado. No entanto, isso não exime de apontar uma dimensão que constitui um desafio comum a toda a indústria privada brasileira no campo sanitário e que necessitará de uma ação concertada entre essa indústria e o poder público. Essa dimensão é o gigantesco poder econômico-financeiro e o poder de lobby dos oligopólios industriais sanitários internacionais. Esses oligopólios vêm projetando cada vez mais seu poder nas políticas públicas dos grandes mercados do mundo, inclusive nos países onde estão localizadas suas matrizes. Atualmente, o governo norte americano trava uma verdadeira guerra com a indústria farmacêutica, majoritariamente sediada nesse país, relacionada à escalada de preços12,13. De modo similar, na Europa ocorre atualmente uma intensa queda de braço entre governos e indústrias com relação a preços14.

A dificuldade de governos tão poderosos em enfrentar a competição com a chamada “Big Pharma” decorre essencialmente desse poder descomunal que controla um mercado global de US$ 1,5 trilhão15. E onde, em 2021, as 10 maiores farmacêuticas responderam por 1/3 desse mercado e as 20 maiores por quase 50%16. Mas o cenário de concentração não ocorre apenas nos medicamentos. No que se refere aos equipamentos diagnósticos (imagem e outros), a concentração é correspondente, com as dez maiores empresas respondendo por 38% do mercado mundial em 202116. Uma política de reindustrialização em um país periférico que, muito embora possuidor de um grande mercado interno, possa competir nesse cenário tão concentrado, exige uma articulação virtuosa entre o setor privado e o Estado, sendo este último a peça-chave de orientação estratégica e de suporte financeiro.

O exercício do poder desses oligopólios, particularmente no campo farmacêutico, acontece principalmente no âmbito das políticas nacionais de propriedade intelectual e isso vem se intensificando desde 1994 por ocasião da entrada em vigor dos acordos TRIPS, mencionados no início deste texto. Não haverá uma política industrial adequada no campo sanitário se não for levada em conta a política brasileira de propriedade intelectual (PI). No Brasil, essa política apresenta desafios importantes, tanto na instância que a elabora quanto na que a executa.

Países que se industrializaram mais recentemente (Japão, Coreia, Índia, China), sem exceção, localizam em instâncias máximas de poder político a formulação de suas políticas de PI. Na Coreia, por exemplo, o comitê que formula a política é presidido pelo Presidente da República e no Japão pelo Primeiro Ministro. Isso não ocorre entre nós, onde essa formulação, na prática, é atribuída a um colegiado de hierarquia política mais baixa - Grupo Interministerial de Propriedade Intelectual (GIPI), vinculado ao Ministério de Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Além dessa baixa hierarquia, o GIPI tem sido penetrado direta e indiretamente por interesses do oligopólio, mediante escritórios de advocacia em sua representação. Uma nova configuração da instância formuladora da política de PI em muito auxiliaria uma nova política industrial para o CIS.

No lado da execução da política, cuja responsabilidade é do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), os problemas se localizam no progressivo enfraquecimento do órgão, decorrente de perda de pessoal qualificado e de dificuldades na utilização pelo INPI dos recursos financeiros oriundos de suas receitas que impedem o seu fortalecimento institucional. Um recente e importante passo no sentido da mudança do cenário da PI no campo sanitário foi a declaração, pelo STF, da inconstitucionalidade do § Único do Artigo 40 da Lei brasileira de PI que permitia a extensão indevida do período de proteção patentária além dos 20 anos regulamentares. Outra medida positiva se refere ao fortalecimento do INPI, com a aprovação, pela Cãmara dos Deputados, de um dispositivo legal que impede o contingenciamento de recursos destinados ao órgão contribuindo para o seu fortalecimento.

No campo sanitário, a orientação estratégica da política industrial implica em colocar a serviço do fortalecimento do CIS a instância que adquire em torno a 25% do mercado de medicamentos, algo em torno a 50% do mercado de equipamentos e acima de 90% do mercado de vacinas e soros. Essa instância é o SUS, que tem em suas principais prioridades a ampliação do acesso aos produtos do CIS por parte da população. O suporte financeiro, além dos investimentos próprios das empresas, deve contar com a atuação da rede de agências federais e estaduais atuantes no campo da ciência, tecnologia e inovação, a saber o BNDES, a Finep, a Embrapii e agências estaduais de fomento.

A articulação entre o SUS, através do seu gestor federal e essas agências não será uma iniciativa original, haja vista uma experiência acumulada de 15 anos de execução da Política de Desenvolvimento Produtivo, mediante a contratação de parcerias público-privadas que puderam atrair a indústria farmacêutica privada e os laboratórios oficiais para o desenvolvimento e a produção de itens importantes para a saúde pública, gerando economia de recursos e ampliação de acesso a esses itens (Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo). Essa política, a despeito de seu saldo amplamente positivo, deve ser revisitada com vistas a superar algumas fragilidades. Dentre elas, vale mencionar a heterogeneidade de alguns laboratórios oficiais relativamente à sua capacidade de absorver as tecnologias envolvidas no desenvolvimento de produtos. Outro ponto importante a merecer atenção é a revisão dos processos de escolha de produtos a serem incluídos na política, que muitas vezes envolveram tecnologias maduras ou em final de ciclo, cujo resultado foi o de estender o período de proteção patentária dos mesmos. Vale ainda mencionar a necessidade de, no processo de definição de produtos candidatos, haver um equilíbrio maior entre a escolha de produtos mais caros e complexos e produtos mais tradicionais que têm sido objeto de escassez de oferta no mercado nacional. E, finalmente, incluir na política mecanismos de encomenda tecnológica (com compartilhamento de risco) de produtos cujo desenvolvimento ainda se encontram em fase de prova de conceito ou de ensaios pré-clínicos ou clínicos.

A Política de Desenvolvimento Produtivo concentrou sua atuação em medicamentos e vacinas, o que foi uma escolha correta. Mas será importante estendê-la ao campo dos equipamentos terapêuticos e diagnósticos e de materiais de menor valor agregado que, como mostrou dramaticamente a recente pandemia, podem assumir uma importância muito grande.

É conhecido o peso que as despesas com a compra de produtos e serviços de saúde tem na economia das famílias, mesmo com a existência de sistemas públicos universais de saúde. Mais ainda nos países que não possuem sistemas de saúde desse tipo. Para as famílias mais pobres, os gastos diretos com medicamentos são o principal item de gastos diretos, podendo levar a situações catastróficas quando descontrolados. Por este motivo, a regulação dos preços, além de mitigar o excesso de gastos com medicamentos nas famílias e no SUS e de ampliar o acesso aos mesmos, tem um sentido econômico indireto que é o de prevenir gastos maiores com saúde no cuidado a problemas agravados pela não utilização de medicamentos e outros produtos em tempo e hora adequados. No ano 2000, houve uma Comissão Parlamentar de Inquérito sobre medicamentos que introduziu o controle de seus preços no país. Fruto de aperfeiçoamentos incrementais, onde se destaca a criação da Câmara de Regulação dos Preços de Medicamentos (CMED) em 2003, essa política de controle manteve uma importante estabilidade nos preços17. O fato mais notável é que a ação da CMED não impediu a excelente performance da indústria farmacêutica no Brasil desde a sua criação, como foi apresentado em seção anterior deste texto. Portanto, a existência da CMED e do controle de preços, ao contrário do que se poderia pensar, não foi um fator de enfraquecimento do CIS. Esse comentário é importante porque, recentemente (2022), houve uma tentativa de deslocar a CMED - uma ferramenta de caráter eminentemente sanitário - da esfera do Ministério da Saúde onde se encontra sua secretaria executiva (Anvisa), para ao Ministério da Economia (atualmente Fazenda). Outra investida cujo resultado, caso implementada, seria enfraquecer o controle de preços, também de 2022, foi a reivindicação de uma precificação diferenciada (e mais elevada) para lançamentos de produtos que apresentassem “inovações incrementais”. Souza et al.18 elencam argumentos que demonstram que a relação entre aumento de preços e estímulo a inovações são bem mais complexas do que uma relação direta linear. Além disso, a proposta fala de “inovações incrementais”, cuja categorização é muito ampla, difusa e, portanto, imprópria para orientar a precificação.

Referências

  • Editores-chefes:
    Maria Cecília de Souza Minayo, Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Nov 2023

Histórico

  • Recebido
    16 Ago 2023
  • Aceito
    22 Ago 2023
  • Publicado
    24 Ago 2023
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