Elizabete Presidente da Associação Comunitária Quilombo Morro Alto, Maquiné |
Elizabete tem 64 anos, perdeu o pai quando tinha cinco anos e foi incentivada pela mãe, viúva, não alfabetizada, mãe de seis filhos, a buscar a educação. Ela e os irmãos trabalhavam em roças e na faxina de moradias nas praias para garantir a sobrevivência. Atualmente aposentada, recorda com carinho de sua profissão de professora, que lhe conferiu reconhecimento para além da comunidade, tornando-a referência no município quanto ao ser quilombola. Transita entre memórias de cenas de violência cometidas por policiais vistas no pátio da sua casa; ofertas de emprego que não consideravam sua habilitação, mas sim sua cor; falta de dados oficiais referentes a sua comunidade e os desejos e ações do futuro da comunidade para que haja justiça social. Seus filhos não residem exclusivamente no quilombo. Assim como outros jovens, partiram em busca de emprego. |
A grande maioria está fora... saem em busca de trabalho. Porque o município não comporta trabalho para todos. Então nossos próprios filhos vão para outros municípios ou outros estados em busca de trabalho. Mas não perdem nunca o nosso laço quilombola, porque é os nossos costumes, os nossos valores, a nossa identidade. E tem uma coisa que eu chamo de muito importante, que é o nosso laço sanguíneo… Então, é porque esses laços estão espalhados. Não é só dentro da comunidade, não é só o convívio dentro daquele pedaço do território que a gente se encontra em cima. Ele está além disso. O sentimento nos identifica muito. E nós somos sobreviventes de luta, porque ser quilombola para mim é a gente poder se identificar também numa determinada comunidade. E até hoje nós estamos atrás da nossa identidade, estamos atrás da nossa luz em busca de dias melhores, porque, por incrível que pareça, a gente é invisível.
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Francisca Liderança quilombola, Osório |
Também em um papel de liderança temos Francisca, a Preta do Maçambique, atual rainha da ginga, figura de destaque na festa de Maçambique. Reside em Osório, onde o território quilombola não é reconhecido. Nascida em Morro Alto nos anos 1960, nos fala sobre a saída do território, escolha que não foi sua. Sua história atravessa questões de gênero e de violência, une a importância das ancestrais femininas, da oralidade e da religiosidade na transmissão de valores do ser quilombola. Durante o processo de vacinação contra a COVID-19, experiencia a comunidade para além da festa, destacando que o processo da vacina evidencia outras questões vivenciadas pela sua comunidade. |
A gente teve que ir embora dessa comunidade. Não porque foi uma escolha deles, mas por uma necessidade de sobrevivência. A gente morava em cima do morro e com as pedreiras, por causa da dinamite, nós estávamos correndo risco de vida, não tinha mais como ficar em cima do morro.
Tive um bom tempo saindo, saindo da comunidade para me reconhecer de novo…
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Lélia Liderança quilombola, Morro Alto, Maquiné |
Lélia, além de liderar o processo de preparo das refeições durante as gravações, nos conta sobre a fome que marcou sua infância. Com 59 anos, suas falas retratam atuais dores no corpo relacionadas ao tipo de trabalho desempenhado por ela na roça, desde a infância. Apesar de apresentar formação em técnica de enfermagem, ela optou por trabalhar na cantina da escola. Lélia também é filha do morador mais antigo da comunidade. Seu pai, marcado pela luta pelo território, preso durante a ditadura, também é o principal motivador da sua alta hospitalar quando ela esteve acometida pela COVID-19. |
Nós éramos muito pobres e tinha um vizinho que a gente ia buscar a lavagem do porco. E a situação era tão difícil que não tinha carne e a gente não tinha carne, então às vezes eles botavam fora, e a gente vinha, lavava e comia. A minha irmã falou: Por que tu vai contar uma coisa dessas para os outros? Mas, é a nossa vida, foi a nossa vida.
É de uma raiz que vem, aquilo vem no teu sangue, porque até hoje, assim, quando se trata de pensar que é uma coisa que passou, mas até hoje, quando eu me lembro das pessoas que apanharam, olha aquilo pra mim parece que eu tô apanhando ainda hoje.
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Edite Liderança quilombola, Ribeirão, Maquiné |
Edite, foi a primeira a ter lágrimas registradas pelas câmeras. Emoções que transbordam ainda durante o ajuste do foco das câmeras. Com 78 anos, professora aposentada, ela nos conta sobre a importância da tia, Aurora, no manter a história viva e demonstra preocupação quando nos fala que muitos hoje duvidam do que é relatado sobre o passado. Também, são dela as falas marcantes sobre a importância das reuniões da comunidade e o orgulho de ser reconhecida atualmente como quilombola. |
Eu luto, eu participo... da reunião quilombola e eu fui uma das primeiras a fazer o grupo, juntar as pessoas, fazer café, fazer bolo e reunir as pessoas na minha casa, ou muitas vezes na minha família, no clube, no Ribeirão Futebol Clube. Mesmo não tendo salão, ali nos reuníamos debaixo da figueira... e não meia dúzia de pessoas, era cento e poucas pessoas. Então, para mim era gratificante. Era uma luta que a gente estava lutando e, graças a Deus, alguma coisa a gente está recebendo em troca pelo que a gente fez. Eu bato no peito e digo: eu sou uma quilombola de orgulho.
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Catiani Liderança quilombola, Faxinal, Maquiné |
Catiani, jovem liderança da área chamada de Faxinal ou Quilombinho, local onde ocorreu a aplicação da primeira dose de vacina na comunidade. Além da chegada da sua segunda filha, durante a pandemia, viveu a perda do companheiro e o desafio de higienizar a sala de vacinação do posto de saúde. A partida do pai de sua filha denuncia a vulnerabilidade frente aos trabalhos precários. Chama atenção para a dificuldade de isolamento, redução dos transportes públicos, dificuldade de aliar empregos e cuidados com as crianças na pandemia. Fala do curso de pedagogia interrompido pela gravidez, vislumbrando na educação possibilidades de futuros outros para sua comunidade. Se sente em segurança junto a sua grande família, no quilombo. |
Eu, quilombola, ser vacinada por ser quilombola, faz uma grande diferença.
Nós não seríamos vacinados ou seríamos os últimos se não fosse o papel dos quilombolas.
O que ser quilombola para mim? Eu acho que é a resistência, eu acho que é a força que vem lá do meu avô, passar por muitas coisas assim que eu quero dizer, tipo o racismo, a desigualdade, é a nossa força ser quilombola para mim.
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Solange Liderança quilombola, Aguapés, Osório |
Solange, mãe da jovem Isadora e de Vitória, nasceu na comunidade de Morro Alto, mas morou em Terra de Areia, município próximo. Voltou a residir na comunidade de Aguapés, situada dentro do território do Quilombo de Morro Alto, mas pertence ao município de Osório, quando se casou com um morador nascido e criado no Aguapés. É professora de municípios vizinhos, Capão da Canoa e Xangrilá. |
Não era só a vacina. A vacina veio me mostrar o outro lado. A gente veio para cá para ser escravo, mas hoje a gente não é mais escravo. A gente tem que conhecer a história de nós, os negros, pra saber que quem ajudou a construir esse país fomos nós. Se a gente não tivesse assumido a frente das questões das vacinas e todos os direitos que a gente passa a ter conhecimento quando a gente participa de uma comunidade quilombola, as pessoas, a maioria, não teria acesso às vacinas porque não teriam conhecimento, porque não são informadas.
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