Open-access Os multiletramentos e seu papel no conhecimento de professores de línguas: por uma perspectiva sistêmica e complexa *

Multiliteracies and their role in language teachers’ knowledge: towards a systemic and complex perspective

RESUMO

Este texto explora os multiletramentos pelo prisma da Linguística Sistêmico-Funcional, principalmente com base nos trabalhos de Christie (1999; 2002), Christie e Martin (1997; 2007), Unsworth (2000; 2001), Cope e Kalantzis (1993, 2000; 2009), Kalantzis e Cope (2012), dentre outros. Nesse sentido, visa entender como os multiletramentos, a partir de uma perspectiva sistêmica e complexa, devem estar presentes na formação de professores de línguas e, mais especificamente, em seu Conhecimento Sobre a Língua(gem) (CSL). Apresenta o argumento central de que a noção de conhecimento atualmente em uso na área de formação de professores requer revisões, ampliações e reorientações em seu escopo com vistas a uma educação linguística mais eficaz e realista. Desse modo, almeja ainda contribuir para as discussões sobre a formação do professor de línguas e a construção de seu conhecimento no âmbito dos cursos de graduação em Letras.

Palavras-chave: Conhecimento; Formação de professores de línguas; Multiletramentos; Linguística sistêmico-funcional

ABSTRACT

In this text multiliteracies are explored from the perspective of Systemic Functional Linguistics, mainly based on works developed by Christie (1999; 2002), Christie and Martin (1997; 2007), Unsworth (2000, 2001), Cope and Kalantzis (1993; 2000; 2009), Kalantzis and Cope (2012), among others. To this end, it aims at understanding how multiliteracies, from a systemic and complex perspective, should be present in language teacher education and, more specifically, in their Knowledge About Language (KAL). The main argument is that the notion of knowledge currently in use in the teacher education area requires revisions, extensions and reorientations in scope towards a more effective and realistic language education. Thus, it is also aimed to contribute to the discussions on language teachers’ education and their knowledge building in the context of undergraduate Languages courses.

Key-words: Knowledge; Language teacher education; Multiliteracies; Systemic functional linguistics

Multiletramentos, formação de professores e complexidade na hipermodernidade

O ponto de partida para a discussão aqui empreendida é o fato de que a noção de conhecimento atualmente em uso na área de formação de professores requer revisões, ampliações e reorientações em seu escopo com vistas a uma educação linguística mais eficaz e realista, principalmente em função das novas práticas hipermídias na hipermodernidade e da circulação de novos letramentos.

Uma vez considerada a ressignificação de muitos dos fenômenos no campo da Linguística Aplicada (LA), do ensino de línguas e da formação do professor de línguas, estabelecemos como objetivos para este trabalho: (1) explorar os multiletramentos a partir da perspectiva da Linguística Sistêmico-Funcional (LSF), principalmente com base nos trabalhos de Christie (1999; 2002), Christie e Martin (1997; 2007), Unsworth (2000; 2001), Cope e Kalantzis (1993; 2000; 2009), Kalantzis e Cope (2012), dentre outros, e (2) discutir como os multiletramentos devem estar presentes na formação de professores de línguas e, mais especificamente, em seu Conhecimento Sobre a Língua(gem).

A própria enunciação desses dois objetivos deixa claro que uma única perspectiva teórica não seria suficiente para abarcar quaisquer dos referidos fenômenos, dada a sua complexidade. Desse modo, duas perspectivas devem ser estabelecidas. Em primeiro lugar, por se tratar de sistemas interconectados em funcionamento no mundo real, é necessário que se adote uma visão que apreenda sistema como “sistemas de redes” (Vasconcellos 2013). Essa perspectiva vem sendo proposta por estudiosos de diferentes áreas e já fora antecipada por Morin (2013:53) em sua afirmação de que “sabemos cada vez mais que as disciplinas se fecham e não se comunicam umas com as outras. Os fenômenos são cada vez mais fragmentados, e não se consegue conceber sua unidade”.

No campo da LA e do ensino de línguas, Leffa (2006:27) havia sinalizado que “[...] o aprendizado de uma língua estrangeira é muito complexo para que possa ser explicado através de uma única teoria de aprendizagem” e, em razão disso, o autor também afirma que “[...] para descrever a aprendizagem da língua temos que recorrer à Linguística, à Linguística Aplicada, à Psicologia, à Pedagogia, entre outras” (Leffa 2006:28).

Em segundo lugar, levando em consideração uma perspectiva complexa, a noção de conhecimento atualmente em uso nas áreas mencionadas não comporta ideias mais amplas como a multiplicidade característica da hipermodernidade. Como bem sinaliza Rojo (2013), há um deslocamento, frente a todas as possibilidades trazidas pela hipermodernidade, pela Web 2.0, pelas tecnologias digitais de informação e comunicação (TDICs) do papel do simples leitor, ou simples autor, fazendo emergir o que a autora denomina de lautor. Em relação à Web 2.0, Rojo e Barbosa (2015:119) observam que ela “muda o fluxo de comunicação e, em tese, acaba com a cisão produtores/leitores, possibilitando que todos publiquem na rede e exerçam simultaneamente os dois papéis”. As autoras apontam para o fato de que no contexto da hipermodernidade, conforme preceituado por estudiosos de distintas áreas, “não basta viver, é preciso contar o que se vive (reordenando as fronteiras entre o público e o privado) ou, mais do que isso, é preciso mostrá-lo (em selfies, em fotos, em vídeos)” (Rojo & Barbosa 2015:121).

Desse modo, almejando lançar um olhar sistêmico e complexo para os multiletramentos e seus papéis na formação de professores de línguas no contexto hipermoderno, este texto está estruturado de modo a debater aspectos dos multiletramentos e da formação dos professores de línguas na hipermodernidade. Primeiramente a ideia de uma abordagem sistêmica e complexa aos fenômenos é explicitada para que, em um segundo momento, seja discutido o modo como a Linguística Sistêmico-Funcional (LSF) tem abordado o ensino dos multiletramentos. Em seguida, relacionando a LSF à sociologia de Bernstein, a relação entre conhecimento e discurso é discutida, com vistas a revisitar a noção de conhecimento e de seus conhecedores. São apresentados, por fim, apontamentos sobre as relações complexas entre os fenômenos apresentadas e as consequências dessas relações para a prática.

Por uma ressignificação sistêmica e complexa dos fenômenos

Notadamente a partir da publicação da obra de Larsen-Freeman e Cameron (2008), a temática da complexidade passou a figurar no campo da LA e, em face dos trabalhos constantes de Paiva e Nascimento (2009), os temas relacionados às ciências da complexidade tornaram-se mais constantes na pauta dos estudos em LA no Brasil, principalmente aqueles direcionados ao ensino e à aprendizagem de línguas, conforme trabalhos posteriores presentes na coletânea organizada por Magno-e-Silva e Borges (2016).

Em estudos sobre educação, temas relacionados à complexidade também têm sido bastante frequentes, como atestam, por exemplo, os trabalhos de Almeida (2010; 2012). Já no campo da formação de professores de línguas, essa ênfase se dá em virtude de o paradigma tradicional de formação apresentar-se inadequado, caracterizado pelo foco em um eixo linear temporal, com conceitos como formação inicial ou pré-serviço, formação contínua/continuada e em serviço, como sinalizam Freire e Leffa (2013:68). Estes autores apontam a teoria desenvolvida por Pineau (1988), conhecida como teoria tripolar de formação, com três polos: autoformação, heteroformação e ecoformação, mais condizente com os princípios da teoria da complexidade e com a hipermodernidade e as tecnologias e seu papel nesse cenário.

Especificamente no âmbito da LSF, o trabalho de Mendes (2016) estuda as relações de junção em textos acadêmicos a partir de uma abordagem sistêmico-complexa, a qual, segundo o autor,

não comporta bem o significado de “objeto” para a designação de uma relação de significados que se inscrevem dentro de contextos (cultural e situacional) mais amplos e simultaneamente realizados por diferentes níveis de sentido (semântico-discursivo, lexicogramatical, grafofonológico). A ideia de um sistema de interesse, aqui empregado para a compreensão de “por quê” e de “como” se estabelecem as relações de junção, melhor se ajusta às concepções funcionalistas que depõem a favor da língua como atividade social da qual resultam os textos e seus significados (Mendes, 2016:77).

Ao refutar a ideia de “objeto”, elege-se o conceito de “sistema de interesse” para contrapor à ideia herdada das ciências naturais de “objeto de estudo”. A esse respeito, Silva (2016:18) explicita que o termo “sistema de interesse” é utilizado por “possibilitar a compreensão do objeto de forma multirrelacional e interconectado à rede que o constitui e à qual contribui para constituir”. Com base em Capra e Luisi (2014) e em Silva (2016), Mendes (2016:77) assevera que

a ideia de objeto não resiste a uma abordagem que compreende sistema como “totalidade integrada cujas propriedades não podem ser reduzidas às de partes menores [...] porque se constituem propriedades do todo, que nenhuma das partes tem (CAPRA; LUISI, 2014, p. 113). Essas posições admitem que o modelo sistêmico compreende a língua como um conjunto de opções intrincadas, em que cada relação no conjunto implica sempre um movimento que mobiliza o complexo na sua inteireza.

O arcabouço sistêmico-funcional tem uma firme ancoragem na teoria de contexto da antropologia de Malinowski, já que Halliday concebe uma relação dialética entre linguagem e contexto, uma vez que o texto é produzido em um contexto e dele guarda marcas. Essa inter-relação entre linguagem-texto-contexto e uma abordagem sistêmico-complexa para a pesquisa é reproduzida na Figura 1, conforme apresentada por Mendes (2016:81):

Figura 1
Perspectiva sistêmico-complexa da pesquisa em LSF conforme Mendes (2016)

Essa relação permite que se identifiquem redes e sistemas, bem como a interação destes em contextos, indo ao encontro do que afirma Vasconcellos (2013:112):

Contextualizar é reintegrar o objeto no contexto, ou seja, é vê-lo existindo no sistema. E ampliando ainda mais o foco, colocando o foco nas interligações, veremos esse sistema interagindo com outros sistemas, veremos uma rede de padrões interconectados, veremos conexões ecossistêmicas, veremos redes de redes ou sistemas de redes [itálicos no original].

Uma abordagem sistêmico-complexa, portanto, compreende os fenômenos em sua auto-organização e o modo como se relacionam com outros sistemas, indo ao encontro do paradigma proposto por Morin nas ciências da complexidade de uma interligação de saberes que imprime, aos contextos de práticas hipermodernos, a necessidade de ressignificação de muitos de seus fenômenos.

Os multiletramentos pela perspectiva da LSF

Essas propostas de ressignificações incluem os letramentos e os novos e multiletramentos. Nesse contexto, os estudos em LSF têm contribuído significativamente para a pedagogia dos letramentos (Unsworth 2000; 2001; Christie 1999; 2002; Christie & Martin 1997; 2007; Cope & Kalantzis 1993; 2000; 2009; Kalantzis & Cope 2012) e um dos pontos centrais para a abordagem adotada diz respeito à noção de gênero.

Neste trabalho, gênero é compreendido, no âmbito da LSF, a partir do que preceituam Martin e Rose (2008:6) como sendo “configurações recorrentes de significados e que essas configurações recorrentes de significado deflagram as práticas sociais de uma dada cultura1”. Para uma visada ampla sobre o conceito de gêneros no âmbito da LSF, uma vez que existem diferenças entre concepções, é relevante remeter o leitor ao trabalho de Silva e Espíndola (2013), que realizam “...uma revisão crítico-descritiva da noção teórica de gênero textual desenvolvida internacionalmente na Linguística Sistêmico-Funcional (LSF)…” (Silva & Espíndola 2013:262), o que fornece subsídios mais amplos para a compreensão da noção de gênero adotada na área.

Tomando por base essa concepção de gênero, uma das premissas básicas para que se implemente a LSF na prática pedagógica relaciona-se à ideia de metalinguagem. Unsworth (2001:16) assinala que tal necessidade é um consenso crescente, sendo que a proposta de uma pedagogia de multiletramentos do New London Group (2000) adota tal premissa e, de acordo com os autores, o propósito primário da adoção de uma metalinguagem deveria ser “identificar e explicar as diferenças entre os textos e os relacionar aos contextos de cultura e situação em que parecem funcionar”2 (New London Group 1996:24).

Para o desenvolvimento de letramentos na escola, a metalinguagem gramatical torna-se essencial, pois não é possível ignorar a gramática no trabalho com os gêneros. O que os estudos divulgados pelos pesquisadores e autores em gêneros e letramentos pela perspectiva da LSF têm sinalizado refere-se à utilidade de descrições gramaticais como facilitadores do ensino e da aprendizagem dos letramentos na escola.

A prática de análise linguística em diferentes pesquisas tem apontado que determinados aspectos da língua são mais sensíveis a determinados gêneros. Como ilustração, pode-se pensar nas nominalizações no discurso acadêmico, extremamente relevante para o ensino em cursos de Inglês para Fins Específicos, ou na modalização em textos científicos, ou, ainda, nas relações autor/leitor marcada pelo uso de pronomes e outros aspectos interpessoais que caracterizam a linguagem acadêmico-científica.

Dessa forma, uma abordagem ao ensino do letramento, com base na perspectiva sistêmico-funcional, envolve, como sugerem Cope e Kalantzis (1993:1), entre outros aspectos:

[...] ser explícito sobre o modo como a linguagem funciona para construir sentido. Isso significa envolver os alunos no papel de aprendiz com o professor no papel de especialista no sistema e função da linguagem. Significa uma ênfase no conteúdo, na estrutura e na sequência nas etapas pelas quais um aprendiz passa para se tornar letrado em um ambiente educacional formal. Significa um novo papel para os livros didáticos no aprendizado do letramento. Significa ensinar gramática outra vez3.

Como se pode depreender, pelo que expõem os autores, propostas de ensino que adotem perspectivas de multiletramentos ou gêneros como base para o ensino não devem prescindir da gramática.

A arquitetura da LSF de Halliday está baseada em um modelo de linguagem que mapeia as metafunções ideacional, interpessoal e textual nos estratos grafofonológico, lexicogramatical e semântico-discursivo e concebe, por sua vez, um modelo estratificado de contexto, que inclui o contexto de situação (registro) com suas variáveis de campo, relações e modo e o contexto de cultura (gênero).

Com base em Martin (1992), depreende-se que, em um modelo dessa natureza, como também proposto por Martin (2007:34), “a variável campo fornece uma perspectiva sociossemiótica sobre a estrutura do conhecimento; e o conhecimento é, em geral, realizado, construído e, ao longo do tempo, reconstruído por meio de significado ideacional (por modalidades de linguagem e imagem)”4.

Em face desses elementos teóricos, é possível inferir que se trata de uma teoria complexa que oferece elementos para que se analisem gêneros, textos, discursos, gramática a partir de diferentes prismas, a depender das perguntas de pesquisa e dos elementos sob análise. Consiste, portanto, em uma teoria complexa em sua natureza e sistêmica por princípio.

Considerando as exigências tecnológicas hipermodernas e hipermidiáticas, constata-se a necessidade de vivenciar práticas e compreendê-las além do ler e escrever, que alternam os papéis de autor e leitor, como indicado no início do texto, encaminhando a necessidade de vislumbrá-las e vivenciá-las como multiletramentos (New London Group 1996) ou novos eventos de letramento (Lankshear & Knobel 2008), dado o fato da circulação de textos multissemióticos: impressos ou digitais, que veiculam uma multiplicidade de linguagens, incluindo fotos, vídeos e gráficos, linguagem verbal oral ou escrita, sonoridades, exigindo usuários aptos a interagir com práticas digitais multimodais e que sejam, acima de tudo, críticos para conviver com a multimodalidade, multissemiose ou multiplicidade de linguagens, fazendo emergir, assim, práticas multiletradas.

Se as propostas do New London Group (1996) e as de Cope e Kalantzis (2000) forem colocadas em perspectiva, identificam-se os elementos expostos no Quadro 1:

Quadro 1
As propostas do New London Group e de Cope & Kalantzis

Os princípios básicos de uma proposta de multiletramentos, a partir do que propõem Cope e Kalantzis (2000), incluem formar um usuário funcional, que seja criador de sentidos, analista e crítico, assim como transformador.

Por fim, mas não menos importante, devemos sinalizar para a relevância de uma perspectiva crítica para o letramento. A recontextualização da proposta do New London Group (1996) feita por Cope e Kalantzis (2000) inclui a formação de um usuário analista e crítico, como sinalizado acima.

Nesse sentido, Menezes de Souza (2011:137) informa que o letramento crítico “[...] situa a produção de significação sempre em termos do pertencimento sócio-histórico dos produtores de significação, e postula tanto leitores quanto autores como igualmente produtores de significação [...]” (itálicos no original). Sendo assim, uma proposta de multiletramentos crítica, continua o autor, é aquela que “[...] recusa a normatividade e a crença em verdades universais e não sócio-históricas que sirvam para fundamentar de forma ‘objetiva’ (isto é atemporal e não social) leituras ‘certas’ ou ‘erradas’” (Menezes de Souza 2011:137).

O conhecimento dos professores e seus processos formativos

Para que se concebam quaisquer propostas envolvendo multiletramentos, deve-se considerar a questão do conhecimento. A noção de conhecimento preceituada por Maton (2007, 2014) compreende a existência de uma relação entre uma estrutura de conhecimento e, uma vez que esse conhecimento é disseminado em um determinado contexto, considera também uma estrutura de conhecedores.

Essa concepção está baseada na sociologia de Bernstein (1999). Nessa perspectiva, na segunda metade do século XX, Snow (1959) já havia concebido a ideia de “duas culturas”, sendo uma hierárquica, nas Humanidades, e outra horizontal, nas Ciências. Há, assim, na cultura humanista, uma estrutura de conhecimento horizontal e uma estrutura de conhecedores vertical, enquanto, na cultura científica, verificam-se uma estrutura de conhecimento hierárquico e uma estrutura de conhecedores horizontal.

O discurso horizontal está relacionado ao senso comum, é implícito, contextualizado e funcional. Como se pode depreender do conceito proposto por Bernstein (1999:159), este “[...] envolve um conjunto de estratégias que são locais, segmentalmente organizadas, específicas a um contexto e dependentes, para maximizar encontros com pessoas e habitats”5. Já o discurso vertical é concebido pelo referido autor como aquele que “[...] toma a forma de uma estrutura coerente, explícita e com princípios sistemáticos, hierarquicamente organizados, como nas ciências, ou toma a forma de uma série de modos especializados de interrogação e critérios especializados para a produção e circulação de textos, como nas ciências sociais e humanidades”6. Está, desse modo, relacionado ao senso não comum, sendo explícito, descontextualizado e hierárquico.

Reunindo os elementos expostos até aqui, tem-se um fenômeno complexo, composto por diversos outros aspectos inerentemente complexos, o que ocorre pelo simples fato de estar relacionado a questões que envolvem linguagens, textos e discursos e suas diferentes possibilidades e perspectivas de ocorrências e prismas de análise. Desse modo, a questão que se apresenta é: como formar professores para atuar em uma sociedade hipermoderna, considerando os multiletramentos, os gêneros do discurso, bem como os elementos contextuais e linguístico-gramaticais?

É necessário compreender, também, como o conhecimento dos professores de línguas pode ser abordado em uma perspectiva de formação que leve em conta a questão do “eu”, tanto do ponto de vista individual quanto do social (autoformação). Há que se considerar, também, a forma como os professores, como participantes cidadãos de práticas e suas ações, atuam uns sobre os outros nas diversas comunidades em que atuam (heterofomação); por fim, as ações do ambiente sobre cada um, na medida em que são participantes de diferentes contextos que interferem em seu processo formativo (ecoformação).

Vislumbra-se, primeiramente, a característica de que é preciso buscar subsídios em diferentes áreas que forneçam distintas teorias e metodologias para embasar o trabalho do professor e de sua formação. Quando se reflete sobre a capacitação de professores e dos aspectos da auto-heteroecoformação, podem-se levar em conta a caracterização da capacitação indicada por Jordão, Martinez e Halu (2011:7) como tendo “um caráter temporário, paliativo e pressupõe somente o preenchimento de lacunas ou ainda de atualização de conhecimentos profissionais, sem maiores vínculos com quem a oferece”, uma vez que se trata de profissionais em atuação em contextos em constantes mudanças, além de suas idiossincrasias e suas características como seres humanos, sobre os quais deve-se pensar “[...] integralmente, como seres humanos em constante processo de formação de subjetividades (tanto suas próprias quanto de seus alunos) [...]” (Jordão, Martinez & Halu 2011:7), e essa formação envolve aspectos sistêmicos e complexos, característicos da área e dos elementos nela envolvidos.

Muitas das reflexões aqui encetadas tomam como ponto de partida questionamentos que constantemente emergem da prática, dentre as quais Jordão, Martinez e Halu (2011) elencam: professores são formados? Formatados? “Desformatados”? pode-se considerar que o término da graduação seja o início da vida profissional de pessoas que formam outras pessoas? como assegurar que a habilidade de dar aulas foi adquirida? e o conhecimento dos conteúdos da disciplina que se vai lecionar - é possível ou desejável mensurar esse tipo de saber? qual é a sua natureza? quais são as formas de conhecer fundamentais a um professor?

A essas questões associam-se outras relacionadas aos multiletramentos, aos gêneros, à gramática, à língua, aos professores, aos alunos, às escolas e aos demais elementos do contexto, reforçando a necessidade de uma abordagem que possa apreender tais aspectos de um mosaico tão produtivo. Como modo de ilustrar a complexa inter-relação entre as diferentes teorias apresentadas, podem-se conceber os diversos sistemas em funcionamento, com todas as suas possibilidades, também complexas, como ilustra a Figura 2:

Figura 2
Os diversos sistemas complexos e sua inter-relação

A profusão de termos que compõem tal mosaico, bem como os diferentes sistemas em funcionamento, como foi intencionado apreender na Figura 2, revela, por sua vez, a complexidade envolvida na formação do professor e em sua prática pedagógica, bem como as nuanças envolvidas no processo de ensino e de aprendizagem de uma língua estrangeira. Caracteriza-se como complexa, ainda nos termos de Morin (1996:274), que afirma haver complexidade “onde quer que se produza um emaranhamento de ações, de interações, retroações”.

Pode-se estabelecer, assim, uma estreita relação entre a teoria sistêmico-complexa e o que propôs o New London Group e sua transposição para o campo da formação de professores, dado ao fato de que estes estão expostos a contínuas mudanças em suas práticas, induzindo à constante reelaboração e ressignificação para se adaptar às novas realidades e suas atividades e tecnologias inerentes ao contexto hipermoderno. Desse modo, uma visão de linguagem é imprescindível na formação de professores.

Apontou-se a LSF como uma possibilidade de teoria de linguagem a ser usada, por seu potencial estratificado, metafuncional e sua relação com os contextos de cultura e de situação em que ocorrem. A linguagem é, portanto, o meio pelo qual a auto-heteroecoformação se torna possível, uma vez que é por meio da linguagem que professores e alunos constroem conhecimentos. Nesse sentido, é necessário que a prática seja permeada por um teoria complexa e sistêmica, que pode permitir a compreensão dos fenômenos e promover quaisquer mudanças necessárias.

Apontamentos finais

O mosaico de possibilidades envolvidas no âmbito das discussões sobre multiletramentos, formação de professores de línguas e as demais facetas intervenientes nos fenômenos de ensino e de aprendizagem de línguas estrangeiras sugeridas neste texto aponta tanto para consensos quanto para dissensos, mas, acima de tudo, para a necessidade de diálogos entre disciplinas. Pelo fato de se tratar de um campo eivado de crenças, muitas práticas bem-sucedidas (produtivas em determinados grupos) e tomadas como exemplares, podem ser absolutamente improdutivas para outro grupo. E isso se deve ao axioma de ser o ensino relacionado a comunidades de práticas.

A tentativa neste texto de associar a LSF aos aspectos das ciências da complexidade teve por intuito apontar para o fato de que se trata de um fenômeno complexo e que a simples demonstração do aspecto linguístico não permite a compreensão do fenômeno em sua totalidade.

A LSF, por sua vez, por todas as possibilidades teóricas e metodológicas, fornece instrumental teórico para que se analisem as diversas práticas de linguagem de diferentes perspectivas para os diversos sentidos criados nos contextos e práticas sociais, reforçando o aspecto sinalizado por Matthiessen (2009:206) de que, “[d]esde seu início nos anos 1960, a LSF tem se preocupado com a linguagem como um sistema adaptativo complexo”7. No entanto, não permite que todos os aspectos envolvidos sejam estudados simultaneamente e, por essa razão, exige que se elejam “sistemas de interesse”, como sinalizado neste trabalho a partir dos princípios das ciências da complexidade.

Na mesma esteira do que expõe Morin (2013) sobre a fragmentação dos fenômenos a partir de uma visão complexa, e do que aponta Leffa (2006) ao indicar a complexidade do aprendizado de uma língua estrangeira e a necessidade de recorrência a vários campos do saber, espera-se que tenha ficado patente, neste texto, o imperativo de se considerar tanto aspectos sistêmicos quanto complexos, utilizando a LSF como uma perspectiva teórico-metodológica capaz de abordar a linguagem que permite considerar as questões de língua, texto, contexto, discurso, gênero, gramática, novos letramentos e, principalmente, os professores e os alunos envolvidos nos processos formativos e de ensino e de aprendizagem em que todos esses saberes interligam-se.

De vital importância ainda sinalizar, ao cabo deste texto (e não da discussão per se), que os aspectos aqui apresentados são apenas possibilidades. São “sistemas de interesse”, são mapas para os percursos percorridos, abertos às possibilidades e às alterações e transformações possíveis, advindas das complexidades do cotidiano. E, sendo apenas uma possibilidade de mapa, importante considerar que, como bem ressalta Vasconcellos (2013:141), “o mapa do outro não estará errado, mas simplesmente diferente do meu e, apesar das diferenças, poderei, como propõe Maturana (1990:25), ‘aceitá-lo como legítimo outro na convivência’, não me colocando acima nem melhor do que ele”.

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  • VASCONCELLOS, M.J. 2013. Pensamento sistêmico: o novo paradigma da ciência. Campinas: Papirus.
  • *
    Este texto é uma versão ampliada de Os (multi)letramentos e seu papel no conhecimento de professores de línguas, parte da mesa-redonda “Letramento e suas diferentes perspectivas: contribuições à docência” integrante dos eventos associados VI Encontro Systemics Across Languages e VI Encontro PIBID-Língua Portuguesa, realizados na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, em 7-8/04/16.
  • 1
    . No original: “…recurrent configurations of meaning and that these recurrent configurations of meaning enact the social practices of a given culture”.
  • 2
    . No original: “…identify and explain differences between texts, and relate these to the contexts of culture and situation in which they seem to work”.
  • 3
    . No original: “…being explicit about the way language works to make meaning. It means engaging students in the role of apprentice with the teacher in the role of expert on language system and function. It means an emphasis on content, on structure and on sequence in the steps that a learner goes through to become literate in a formal educational setting. It means a new role for textbooks in literacy learning. It means teaching grammar again”.
  • 4
    . No original: “[…] the register variable field provides a social semiotic perspective on knowledge structure; and knowledge is by and large realized through, construed by, and over time reconstrued through ideational meaning (via modalities of language and image)”.
  • 5
    . No original: “[...] entails a set of strategies which are local, segmentally organised, context specific and dependent, for maximising encounters with persons and habitats”.
  • 6
    . No original: “[...] is a coherent, explicit and systematically principled structure, hierarchically organised as in the sciences, or it takes the form of a series of specialised languages with specialised modes of interrogation and specialised criteria for the production and circulation of text as in the social sciences and humanities”.
  • 7
    . No original: “Since its inception in the early 1960s, SFL has been concerned with language as a complex adaptive system”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2018

Histórico

  • Recebido
    02 Fev 2017
  • Aceito
    10 Mar 2017
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