Open-access A memória coletiva oficial e o necropoder: os grupos de extermínio em Você também pode dar um presunto legal (1973)1

The official collective memory and necropower: death squads in Você também pode dar um presunto legal (1973)

Resumo

Neste artigo, apresentamos um estudo sociológico e imagético do curta-metragem Você também pode dar um presunto legal (1973), do diretor Sérgio Muniz, com base nos conceitos de necropolítica e máquinas de guerra, de Achille Mbembe, e das contribuições teóricas de Michael Pollak em seu artigo Memória, esquecimento, silêncio. Mais especificamente, trata-se de uma análise que almeja estabelecer os pormenores de como o enredo da obra aponta para a naturalização do estabelecimento de esquadrões da morte a serviço da Ditadura Civil-Militar (1964-1985) e da memória coletiva oficial estabelecida pelo regime em questão. Ou seja, apresenta-se o seguinte cenário: da mesma forma que o curta expõe as máximas defendidas pela memória oficial exaltada pelo regime militar ele também denuncia os crimes e as atrocidades levadas a cabo por seus agentes. Ao denunciar as atrocidades dos esquadrões da morte no período da Ditadura Civil-Militar, Muniz almeja estabelecer as bases (ainda que tão-somente simbólicas) para o advento de uma memória que possa de fato tanto se encaixar quanto ser adequada aos preceitos de um legítimo processo de lembrança e justiça para as vítimas do regime militar e seus descendentes.

Palavras-chave necropolítica; Esquadrão da Morte; máquina de guerra; memória coletiva oficial; ditadura civil-militar

Abstract

In this paper, we pre-sent a sociological and imagetic study of the short film Você também pode dar um presunto legal (1973), by director Sérgio Muniz, based on the concepts of necropolitics and war machines in Achille Mbembe and the theoretical contributions of Michael Pollak in his article Memória, esquecimento, silêncio. More specifically, it is an analysis that aims to establish the details of how the plot of the work points to the naturalization of the establishment of death squads at the service of the Civil-Military Dictatorship (1964-1985) and of the official collective memory established by the regime in question. That is, the following scenario is presented: in the same way that the short film exposes the maxims defended by the official memory exalted by the military regime, it also denounces the crimes and atrocities carried out by its agents. By denouncing the atrocities of the death squads during the period of the Civil-Military Dictatorship , Muniz aims to establish the bases (albeit only in a symbolic sense) for the advent of a memory that can genuinely both fit and be adequate to the precepts of a legitimate process of remembrance and justice for the victims of the military regime and their descendants.

Keywords necropolitics; Death Squad; war machine; official collective memory; civil-military dictatorship

Introdução

Afirmar que o tema do presente trabalho é a análise de um curta-metragem que contém uma continuidade mais ou menos ortodoxa (quer dizer, com início, meio e fim bem definidos) seria um tanto quanto errôneo. O curta de 1973 aqui estudado, Você também pode dar um presunto legal,2 aborda o processo de formação e outorga de legitimidade por parte da Ditadura Civil-Militar (1964-1985) dos esquadrões da morte que atuaram no Brasil durante o período em questão na perseguição, tortura e assassinato de todo um conjunto de indivíduos percebidos como ameaças para a estabilidade do regime que se estabeleceu após o golpe de estado contra o presidente João Goulart em meados da década de 1960. Porém, justamente devido à época na qual se encontrava inserido, ele não foi lançado em circuito comercial e também não detém uma narrativa de cunho linear. Exibido pela primeira vez tão-somente em 2003 para um público exclusivamente universitário de um seminário sobre Cinema e Televisão no Tempo da Ditadura dirigido por Anita Simis e realizado pelo Departamento de Sociologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp), no campus de Araraquara, o curta se traduz em uma obra que visa acima de tudo estabelecer o testemunho sócio-histórico de um período no qual era proibida toda e qualquer versão dos fatos que ultrapassasse os limites impostos pela memória coletiva oficial defendida pelo regime militar.

O curta transcorre de maneira fragmentada e descontínua, entrelaçando notícias jornalísticas, músicas nacionalistas do período em questão3 e trechos das peças de teatro A resistível ascensão de Arturo Ui, de Bertold Brecht, e O interrogatório, de Peter Weiss4, para compor um quadro extremamente coerente de condenação dos crimes cometidos pelos esquadrões da morte a serviço do regime militar. Esquadrões estes que eram em sua maioria (e isto é de fato um dos pontos centrais da presente narrativa fílmica) compostos não somente de militares e policiais, mas também tinha suporte de membros da sociedade civil, como advogados, juízes, promotores, médicos, dentistas e empresários. Essas pessoas não somente financiavam as ações do aparato de tortura do regime militar como também participavam diretamente do processo de perseguição, captura e tortura de cada indivíduo percebido como uma ameaça para o regime. O que confirma empiricamente o verdadeiro caráter da ditadura imposta a partir de 1964: não um regime de caráter estritamente militar, mas também de cunho civil-militar, cujas consequências perduram até a atualidade, como muito bem estabelecido por Anita Leandro em seu artigo Você também pode dar um presunto legal: Um filme clandestino sobre os esquadrões da morte.

Se no período do regime militar eram membros civis do empresariado nacional que também sustentavam o aparato repressivo, atualmente um processo afim se dá com relação às versões mais recentes dos esquadrões da morte: as milícias. Em suas palavras:

Além do controle do comércio nas periferias das grandes cidades e da segurança nos bairros ricos, as milícias de hoje, versão contemporânea dos esquadrões, multiplicam suas ramificações na política, nas instituições religiosas, no tráfico de armas, de drogas e outras atividades ilícitas. Depois da promulgação da lei de anistia em 1979, sob controle militar, a democracia negociada que se seguiu assegurou a impunidade dos torturadores e a manutenção do aparato repressivo do regime. Hoje, quando esse passado recente de crimes bate à porta, ameaçador, o filme de Muniz vem suprir uma lacuna no cinema brasileiro contemporâneo, que não hesitou em virar, rapidamente, essa página obscura da história

(LEANDRO, 2020, p. 324).

Fundamentação teórica

Este artigo visa articular partes das obras de Achille Mbembe (Necropolítica), Anita Leandro (Você também pode dar um presunto legal: Um filme clandestino sobre os esquadrões da morte)5 e Michael Pollak (Memória, esquecimento, silêncio), presentes na bibliografia selecionada, com o curta-metragem Você também pode dar um presunto legal. Trata-se, sobretudo, de um texto que se propõe, ao dissecar o curta em questão, a analisar a possível conexão entre, de um lado, a atuação dos esquadrões da morte no período da Ditadura Civil-Militar e, do outro, o conceito de necropolítica elaborado por Achille Mbembe no artigo de mesmo nome. Objetiva-se responder às seguintes questões: até que ponto é possível observar no curta e na apresentação dos seus esquadrões da morte os pormenores do funcionamento do necropoder, da necropolítica expostos por Mbembe em seu artigo, e até que ponto a construção, a elaboração da memória concernente a esses acontecimentos estruturada por Sérgio Muniz pode auxiliar na elaboração dos processos que dizem respeito a reparação e reconhecimento das vítimas e seus descendentes, e evitar que tais acontecimentos ocorram novamente. No caso de Pollak, será incluída neste artigo a sua clivagem entre memória coletiva oficial e dominante e as memórias subterrâneas que, se aproveitando da falta da garantia de perenidade da primeira, também almejam por intermédio de toda uma “[...] tipologia de discursos, de silêncios, e também de alusões e metáforas [...]” encontrar uma escuta para tudo aquilo que desejam salvar do esquecimento definitivo ou do reprimido inconsciente (POLLAK, 1989, p. 8).

De acordo com Mbembe, o conceito de necropolítica pode ser entendido do seguinte modo:

Se observarmos a partir da perspectiva da escravidão ou da ocupação colonial, morte e liberdade estão irrevogavelmente entrelaçadas. Como já vimos, o terror é uma característica que define tanto os Estados escravistas quanto os regimes coloniais tardo-modernos. Ambos os regimes são também instâncias e experiências específicas de ausência de liberdade. Viver sob a ocupação tardo-moderna é experimentar uma condição permanente de “estar na dor”: estruturas fortificadas, postos militares e bloqueios de estradas em todo lugar; construções que trazem à tona memórias dolorosas de humilhação, interrogatórios e espancamentos; toques de recolher que aprisionam centenas de milhares de pessoas em suas casas apertadas todas as noites desde o anoitecer ao amanhecer; soldados patrulhando as ruas escuras, assustados pelas próprias sombras; crianças cegadas por balas de borracha; pais humilhados e espancados na frente de suas famílias; soldados urinando nas cercas, atirando nos tanques de água dos telhados só por diversão, repetindo slogans ofensivos, batendo nas portas frágeis de lata para assustar as crianças, confiscando papéis ou despejando lixo no meio de um bairro residencial; guardas de fronteira chutando uma banca de legumes ou fechando fronteiras sem motivo algum; ossos quebrados; tiroteios e fatalidades — um certo tipo de loucura

(MBEMBE, 2016, p. 146).

Tem-se aqui a introdução à construção do seu conceito de necropolítica, elaborado devido à sua percepção de que os conceitos foucaultianos de direito soberano de vida e de morte e biopoder não são mais suficientes para esclarecer os pormenores dos modos contemporâneos de disciplinarização, de subjugação dos corpos (sobretudo naquilo que diz respeito a zonas de guerra, a zonas de grande instabilidade geopolítica, como a Palestina e o continente africano como um todo).

Faz-se necessário discutir brevemente tanto o direito soberano de vida e de morte quanto o biopoder. O primeiro se traduz em uma economia, em toda uma série de técnicas/tecnologias de poder preocupadas com a intimidação, a ameaça, enfim, a punição física dos condenados/criminosos pautada sobre uma máxima que preconiza fazer morrer ou deixar viver. E o segundo se volta para uma pletora de técnicas/tecnologias de poder cuja função é garantir o estabelecimento da delimitação do caráter essencialmente corretivo das penas em geral (ou seja, da modulação dos castigos de acordo com os indivíduos culpados), e de toda uma série de instituições jurídicas que sigam, reproduzam e resguardem a maximização das chances e possibilidades biológicas da vida. À preeminência do direito soberano de vida e de morte sobre os súditos do senhor na Idade Média e durante parte considerável da Idade Moderna seguiu-se tanto o advento quanto a primazia do biopoder enquanto conjunto de técnicas/tecnologias de poder voltadas para a disciplinarização/regulamentarização do(s) corpo(s) organizado(s) em sociedade(s) (FOUCAULT, 2005). O que não significa que a soberania tenha pura e simplesmente deixado de existir, de ser utilizada de um momento para o outro. Mbembe vai, por exemplo, apresentar o próprio âmbito colonial europeu como um espaço no qual a soberania jamais perdeu a sua precedência.

Se as relações entre vida e morte, a política de crueldade e os símbolos do abuso tendem a não se distinguir nas fazendas, é notadamente na colônia e sob o regime do apartheid que se instaura uma formação peculiar de terror, da qual passarei a tratar. A característica mais original dessa formação de terror é a concatenação do biopoder, o estado de exceção e o estado de sítio. A raça é, mais uma vez, crucial para esse encadeamento. De fato é sobretudo nesses casos que a seleção de raças, a proibição de casamentos mistos, a esterilização forçada e até mesmo o extermínio dos povos vencidos foram inicialmente testados no mundo colonial. Aqui vemos a primeira síntese entre massacre e burocracia, essa encarnação da racionalidade ocidental. Arendt desenvolve a tese de que existe uma ligação entre o socialismo nacional e o imperialismo tradicional. Segundo ela, a conquista colonial revelou um potencial de violência até então desconhecido. O que se testemunha na Segunda Guerra Mundial é a extensão dos métodos anteriormente reservados aos “selvagens” pelos povos “civilizados” da Europa

(MBEMBE, 2016, p. 132).

Nunca houve, portanto, limites no âmbito colonial quanto à atuação da soberania. Esta tratava simplesmente de definir quem importava e quem não importava, enfim, quem era descartável e quem não era descartável tanto para o processo de ocupação colonial quanto para a espoliação dos espaços outrora pertencentes às populações vencidas pelas primeiras guerras imperialistas. Essas populações terminam por ser vítimas do mais virulento racismo porque este se traduz em uma pedra fundamental para o exercício do direito soberano de vida e de morte durante o período de preeminência do biopoder. É aqui, contudo, que Mbembe vai introduzir o conceito que dá nome ao seu artigo: a necropolítica.

Para além do exemplo acima mencionado da África do Sul, Mbembe também traz para a sua análise o exemplo da Palestina, que serve como representação daquilo que o autor denomina de ocupação colonial tardo-moderna, ou ainda, de terror tardo-moderno. Com relação a Palestina, segundo Mbembe,

A forma resultante da soberania pode ser chamada de “soberania vertical”. Sob um regime de soberania vertical, a ocupação colonial opera por uma rede de pontes e túneis, em uma separação entre o espaço aéreo e o terrestre. O próprio chão é dividido entre a superfície e o subsolo. A ocupação colonial também é ditada pela própria natureza do terreno e suas variações topográficas (colinas e vales, montanhas e cursos d’água). Assim, o terreno elevado oferece benefícios estratégicos não encontrados nos vales (eficácia da vista, autoproteção, fortificações panópticas que permitem orientar o olhar para múltiplas direções)

(MBEMBE, 2016, p. 136).

Trata-se da criação de mundos de morte nos quais imperam condições de vida que submetem populações inteiras ao status de mortos-vivos. Pois eis que, para além da política da verticalidade, tem-se também a emergência das máquinas de guerra: toda uma série de milícias urbanas, exércitos privados, exércitos de senhores regionais, segurança privada e exércitos de Estado que reclamam, ou ainda, que proclamam o direito de exercer a violência, o direito de matar. São atores, portanto, que põem em xeque o monopólio do uso da força física e dos meios de coerção pelo Estado onde quer que se encontrem. Na África, por exemplo, o último quarto do século XX foi testemunha da compra e venda indiscriminada de mão de obra militar. Mão de obra esta que foi capaz não somente de preencher o vazio deixado pela erosão da capacidade do Estado pós-colonial de construir os fundamentos econômicos da ordem e autoridade políticas como também de estabelecer verdadeiros enclaves econômicos voltados para a extração de recursos e a taxação dos territórios e das populações que os ocupam, e que tem como pedras fundamentais toda uma variedade de redes transnacionais e diásporas que providenciam o apoio material e financeiro necessário para sua manutenção.

Finalmente, Mbembe encerra o seu ensaio apontando para uma das consequências mais drásticas do necropoder: o gradual fim das linhas divisórias entre resistência e suicídio, sacrifício e redenção, martírio e liberdade. Se às populações vítimas de seu julgo resta tão-somente um futuro de políticas da verticalidade, de máquinas de guerra, enfim, de uma condição permanente de estar na dor (elemento este esclarecido na citação com a qual abrimos a exposição do conceito de necropolítica), a morte é experimentada como “uma libertação do terror e da sujeição” (MBEMBE, 2016, p. 146). Se no mundo contemporâneo as armas de fogo têm como função a destruição máxima de pessoas e a criação de mundos de morte, a própria morte pode ser representada como agenciamento “[...], já que a morte é precisamente aquilo por que e sobre o que tenho poder” (ibidem, p. 146).

Assim sendo, usando os conceitos de máquinas de guerra e necropolítica, vamos analisar a narrativa do curta. É fundamental, contudo, ter em mente desde já que um protagonista de suma importância para o curta é o delegado Sérgio Paranhos Fleury, chefe do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) de São Paulo e o “[...] 7º homem na cadeia de comando dos órgãos governamentais envolvidos no desaparecimento, tortura e morte de pessoas.” (LEANDRO, 2020, p. 309) durante o período da ditadura abarcado pela obra em questão.

Figuras 1 e 2
“Você também pode dar um presunto legal”, Sérgio Muniz, 1973.

O Filme

O prólogo do curta é composto de duas breves sequências: na primeira, é informado aos espectadores, por intermédio de uma notícia jornalística (e ao som de “Eu te amo, meu Brasil”, da banda de pop rock paulista Os Incríveis), o assassinato com requintes de crueldade por parte da polícia do assaltante carioca conhecido como Roncador, que permaneceu acuado num bueiro durante 35 horas, aguentando mais de 400 bombas de gás lacrimogênio e monóxido de carbono e rajadas de metralhadoras disparadas a esmo, até finalmente sair, e, mesmo implorando por clemência, ser alvejado por mais de 20 perfurações dos disparos de 100 policiais que se encontravam em seu encalço (figura 1). Na segunda sequência, ouve-se à seca descrição de uma sessão de torturas no pau de arara por parte de um dos atores da peça O interrogatório, de Peter Weiss (figura 2). Essas duas primeiras cenas já indicam o caráter do restante da narrativa fílmica: num momento de profunda repressão política, de um visceral terrorismo de Estado por parte da Ditadura Civil-Militar (tendo em conta principalmente o advento do Ato Institucional nº 5, de 1968), o testemunho construído por Sérgio Muniz se baseará no estabelecimento da solidariedade entre documentário e ficção para se garantir principalmente a reprodução para o público não de acontecimentos precisamente determinados (ainda que, de fato, estes também estejam presentes no transcorrer da obra), mas, antes, de uma situação política específica.

Lá onde impera o silêncio e a morte, a cena de teatro filmada por Muniz, nesse breve plano de um ator negro descrevendo uma técnica de tortura, inscreve no presente histórico um testemunho de ficção, o único, talvez, possível, nas circunstâncias de então. Quando não há memória a ser conservada, é preciso criá-la, inventá-la, estabelecendo ligações entre coisas distantes umas das outras, como uma cena de teatro e uma reportagem jornalística. “A memória é obra de ficção” (RANCIÈRE, 2001). E, no caso do documentário de Sérgio Muniz, poderíamos acrescentar que a memória é obra de montagem, pois é ali que se fortalecem os laços entre testemunhos e fatos, fala viva e documentos, ficção e real

(LEANDRO, 2020, p. 313-314).
Figura 3
“Você também pode dar um presunto legal”, Sérgio Muniz, 1973.

A seguir, há uma sequência de encenação de força por parte da polícia, acompanhada em off pela voz do próprio Muniz (que se traduz na principal instância de enunciação no decorrer do filme). É descrito como, após a morte de um policial em novembro de 1969, oitenta policiais reunidos em seu enterro fizeram um macabro juramento de matar dez criminosos para cada policial morto enquanto atiravam para cima. É justamente aqui que aparecerá pela primeira vez, e por intermédio de uma rápida foto, a figura do delegado Sérgio Paranhos Fleury, um dos mandantes e executores da morte do ladrão Antônio de Sousa Campos, mais conhecido como Nego Sete, executado no dia 23 de novembro de 1968 em Guarulhos, São Paulo (figura 3). Todavia, será somente em 1970 que o procurador Hélio Bicudo juntará à denúncia do assassinato de Nego Sete um relatório da Comissão Estadual de Investigações sobre a atuação de policiais no âmbito do narcotráfico em São Paulo que, em troca de dinheiro e drogas, executavam pequenos traficantes e acobertavam os mais fortes. É claro que Sérgio Muniz, mais uma vez impossibilitado de filmar o desenrolar desses acontecimentos, reconstitui os fatos com atores e com base nas próprias notícias de jornal. E, naquilo que diz respeito a essa sequência particular das reconstituições presentes no curta, vale ressaltar o trecho no qual a voz do comentário enumera alguns dos diversos suplícios aplicados pelos grupos de extermínio em suas várias vítimas.

Final de mais uma execução do esquadrão: o marginal Nego Sete é chacinado por um grupo chefiado pelo tristemente famoso delegado Fleury. Técnica usual: mutilação dos cadáveres para evitar a identificação; inúmeros tiros de vários calibres para evitar que se saiba quem desferiu o primeiro tiro mortal

(VOCÊ TAMBÉM PODE DAR UM PRESUNTO LEGAL, 1973).

Vemos, posteriormente, uma sequência na qual é exposta a situação econômica do Brasil daquele período ao som de “Mini-ministério”, de Gilberto Gil, com a voz de Gal Costa:

Brasil, 1971: crescimento do Produto Nacional Bruto (PNB) de 9% ao ano, mas só para 20% dos seus 95 milhões de habitantes. O preço? Liquidação física de qualquer oposição, o arrocho salarial, enfim, uma paz sangrenta para a burguesia, aliada ao capital multinacional. Explorar e acumular. Renda per capita: 185 dólares por ano; salários deteriorados em 54% nos últimos seis anos, apesar da classe operária ter praticamente dobrado o seu contingente nos últimos dez anos; mais de 50% das casas, mesmo numa cidade como São Paulo, sem água encanada e esgoto; baixíssimos índices de higiene e saúde; na cidade mais industrializada do país 74 crianças em cada 1.000 morrem antes de atingir um ano de idade, e os planos de urbanização transformam os bairros operários em verdadeiros guetos. A violência da luta pela sobrevivência muitas vezes se transforma na violência marginal. Com incrível requinte de sadismo, os organismos policiais aniquilam essa violência. A pequena burguesia, eterna espectadora, assiste passiva à escalada da mais incrível repressão policial. Em nome de uma pretensa sociedade de consumo num país subdesenvolvido, é aceita a violência policial que, logo adiante, após esse verdadeiro ensaio geral, se transforma na violência da repressão política. É tida como compatível ou mesmo indispensável ao crescimento industrial. Confundido com desenvolvimento industrial, uma estagnação cultural e uma sangrenta repressão política, são engolidas pela pequena burguesia as ilusões que lhe impinge a burguesia internacional de um país livre e dono de si mesmo

(VOCÊ TAMBÉM PODE DAR UM PRESUNTO LEGAL, 1973).
Figura 4
“Você também pode dar um presunto legal”, Sérgio Muniz, 1973.

E a esta situação econômica será adicionada bem depois uma inquietante sequência, talvez a mais impactante e enigmática da obra até os dias de hoje. Nela, Fleury é condecorado pela Marinha Brasileira numa cerimônia oficial (ainda que não divulgada interna ou externamente) pelos serviços prestados à nação (figura 4). Com a duração de apenas 12 segundos, a sequência de quatro planos mostra Fleury sendo condecorado nos dois primeiros planos abertos, e, nos outros dois mais fechados, aparecem vários oficiais alegres e contentes com a condecoração dada ao torturador (qual seja, a de Amigo da Marinha). As imagens provenientes dessa sequência permanecem ainda hoje um mistério, dado que Sérgio Muniz jamais revelou o nome de quem lhe passou esse material na época em que estava filmando (ainda que se saiba, segundo Anita Leandro, que se tratam de imagens obtidas de forma clandestina por intermédio de uma rede de televisão, possivelmente fornecidas a Muniz por alguém ligado ao jornalista e cineasta Vladimir Herzog). Novamente, segundo Leandro (2020),

Uma consulta a três jornais de grande circulação no mês de dezembro de 1970 (Jornal do Brasil, O Globo e Última Hora), quando Fleury foi condecorado pela Marinha, mostra uma série de assassinatos perpetrados pelos Esquadrões, entre eles, o do Nego Sete, do qual foi acusado o “Fininho”, comparsa de Fleury [...]. O mês de dezembro de 1970, quando Fleury é condecorado pela Marinha, tinha sido marcado pelo aumento do número de execuções e pela prisão do ladrão de carros Lúcio Flávio. Na mesma ocasião, Fleury teria recebido também a Medalha de Pacificador do Exército

(LEANDRO, 2020, p. 322-323, grifo nosso).

Aqui percebe-se claramente a importantíssima função exercida pelo curta naquilo que diz respeito à construção da memória em um período sócio- econômico-político definido pelo autoritarismo e pela censura: na falta de imagens, evidências e testemunhos da barbárie perpetrada pelo regime militar, faz-se necessário montar a memória por intermédio de símbolos e signos que preencham (de forma deliberadamente alegórica ou não) o vazio deixado pelo processo de apagamento (e, não raro, exaltação) dos crimes cometidos pelos esquadrões da morte a mando (ou com a conivência) dos militares que se encontravam então no poder. O curta, neste sentido, é uma denúncia do caráter eminentemente destruidor, uniformizador e opressor da memória coletiva nacional, da memória oficial, em detrimento, no caso específico desse curta, de contribuições e reivindicações culturais e simbólicas das memórias subterrâneas, incessantemente perseguidas, silenciadas e apagadas pelo regime militar (POLLAK, 1989, p. 4). Ao passo que a narrativa do curta por si só põe em disputa a memória do período da Ditadura Civil-Militar, ela também põe em evidência frequentemente os próprios esforços dos militares para construir e preservar a coesão dos grupos e das instituições que compunham o quadro da memória nacional defendida pelo regime. O uso político da celebração da vitória na Copa do Mundo em 1970 (vale enfatizar que a seleção de fotos de Fleury e outros policiais ligados ao esquadrão logo no início do curta vem acompanhada pela música “Camisa 12”, de Jorge Ben Jor), as ações do grupo Tradição, Família e Propriedade (TFP) na exaltação do anticomunismo, da pátria, e dos valores da civilização cristã ocidental, e a apropriação por parte das campanhas publicitárias em suas estratégias de venda de todo o vocabulário relacionado às perseguições, assassinatos e torturas levado a cabo tanto diretamente pelos militares quanto indiretamente pelos esquadrões da morte (com expressões como subversões das panelas, guerrilheiras ODD, aparelho estourado, resistiu a tudo na câmara de torturas, câmara de torturas descoberta em plena Avenida Paulista, três dias de lavagem cerebral, torturas em inglês e francês, e [Vladimir Herzog] hospedado no Tutóia-Hilton; esta última, por sinal, se tratando de uma piada de cunho macabro que faz referência ao prédio da Operação Bandeirante (Oban) que viria, posteriormente, a sediar o Departamento de Operações de Informação — Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), comandado pelo major Carlos Alberto Brilhante Ustra).6 Todas essas iniciativas apontam invariavelmente para um cenário no qual a coesão interna e a defesa das fronteiras da memória nacional defendida pelos militares de então não permitia qualquer penetração de narrativas, ideias ou testemunhos que pusessem em questão tais interpretações do passado e do presente levadas a cabo pelos proponentes do regime em questão para a preservação deste tanto no presente quanto no futuro.

Não é por mero acaso, afinal de contas, que os resultados de uma sondagem feita pela revista Veja no ano de 1970 e expostos ao público já quase na metade da obra mostram 60% de aprovação com relação ao Esquadrão da Morte por parte dos entrevistados provenientes do estado de São Paulo e 33% de aprovação por parte dos provenientes do estado do Rio de Janeiro. E, no conjunto das cidades brasileiras pesquisadas, o valor é de 41% de aprovação ao Esquadrão. Com o simultâneo crescimento e a boa propaganda oferecidos ao Esquadrão na época em questão, esses resultados não são nada surpreendentes. Levando-se em conta também a previamente indicada apropriação por parte das campanhas publicitárias em suas estratégias de venda de todo o vocabulário relacionado a perseguições, assassinatos e torturas levados a cabo tanto diretamente pelos militares quanto indiretamente pelos esquadrões da morte, evidencia-se o caráter tanto civil quanto militar da ditadura em si e da construção e defesa da memória coletiva oficial prevalecente no período aqui observado e que, infelizmente, conta com uma forte penetração no tecido sócio-econômico-político nacional de certos remanescentes seus até os dias de hoje.

Assim sendo, percebe-se o trabalho de enquadramento da memória levado a cabo pelos dois lados (quais sejam, a Ditadura Civil-Militar e a narrativa fílmica do curta em si) presente da seguinte maneira na obra de Muniz: da mesma forma que se denuncia o processo de enquadramento da memória por parte do regime militar, a simultânea condenação dos crimes perpetrados e apagados pelos próprios esquadrões da morte já se traduz ela mesma em um ato de enquadramento da memória oposto aos interesses e determinações simbólicas da memória coletiva oficial do período. Desse modo, verifica-se que as palavras de Michael Pollak (1989) também podem ser utilizadas aqui para descrever o espaço ocupado pelo curta naquilo que diz respeito ao processo de enquadramento da memória. Pois eis que,

Por conseguinte, existem nas lembranças de uns e de outros zonas de sombra, silêncios, “não-ditos”. As fronteiras desses silêncios e “não-ditos” com o esquecimento definitivo e o reprimido inconsciente não são evidentemente estanques e estão em perpétuo deslocamento. Essa tipologia de discursos, de silêncios, e também de alusões e metáforas, é moldada pela angústia de não encontrar uma escuta, de ser punido por aquilo que se diz, ou, ao menos, de se expor a mal-entendidos

(POLLAK, 1989, p. 8).

A questão dos esquadrões da morte durante o período da Ditadura Civil-Militar, portanto, é abordada da maneira mais direta possível (dadas as circunstâncias de então) no curta de Muniz. Isto é, estrategicamente camuflada por meio de alegorias e referências a acontecimentos distantes da história brasileira, como no caso do nazismo observado nas peças de Brecht e Weiss. Tendo em mente tanto a narração do filme (responsável pela rigorosa exposição dos materiais reunidos durante a produção, sejam estes imagens de cunho ficcional ou registros documentais provenientes da imprensa da época) quanto a preocupação demonstrada por este a respeito da transformação em hábito da violência continuamente perpetrada pelos grupos de extermínio, o curta se traduz em um legítimo exemplar da construção de uma memória repleta de alusões e metáforas, nos termos de Pollak. Ao curta bastou em grande medida o estabelecimento da fundamental “[...] ligação entre os dados, entre testemunhos de fatos e marcas de ações” (RANCIÈRE, 2001, p. 201-202).

Denuncia-se, no auge da ditadura, a função dos esquadrões da morte e das bases civis apoiadoras do regime militar: a repressão financiada pelo empresariado local e levada a cabo pelos criminosos que compunham os quadros dos esquadrões da morte nada mais foi do que o ensaio geral para a série de prisões, torturas e assassinatos que teriam lugar posteriormente nos porões dos próprios militares (TOMAIM, 2014 apud LEANDRO, 2020, p. 320). Portanto, não somente uma ditadura de caráter militar, mas antes de caráter civil-militar. Fato é que ao representar a penetração dos esquadrões da morte e a disseminação de seus métodos e códigos linguísticos (cujo melhor exemplo é o próprio título da obra, dado que a palavra presunto fazia referência aos corpos das vítimas dos grupos de extermínio, e a frase “Você dá um presuntão legal!” era comumente dita pelo próprio Fleury) por toda a sociedade brasileira, o curta de Muniz se traduz em um arriscado discurso oposicional à memória coletiva estabelecida do período da ditadura tanto no passado quanto no presente. Pois à falta de uma quantidade suficiente de evidências imagéticas e testemunhais, sob reais riscos para a sua segurança, e dentro das extremamente limitadas condições de articulação para a oposição do período em questão, Muniz foi, ainda assim, capaz de captar as emoções e os elementos cognitivos provenientes do período da Ditadura Civil-Militar sem necessariamente acabar por transformar a sua obra em mais um simples exemplo da memória coletiva oficial tão cara e fundamental ao regime militar. E, assim sendo, seu curta também acaba por se traduzir em um excelente exemplar da captação das lembranças em filmes proposta por Michael Pollak em seu texto de 1989, Memória, esquecimento, silêncio. Mais especificamente,

Ainda que seja tecnicamente difícil ou impossível captar todas essas lembranças em objetos de memória confeccionados hoje, o filme é o melhor suporte para fazê-lo: donde seu papel crescente na formação e reorganização, e portanto no enquadramento da memória. Ele se dirige não apenas às capacidades cognitivas, mas capta as emoções. Basta pensar no impacto do filme Holocausto, que, apesar de todas as suas fraquezas, permitiu captar a atenção e as emoções, suscitar questões e assim forçar uma melhor compreensão desse acontecimento trágico em programas de ensino e pesquisa e, indiretamente, na memória coletiva. A obra monumental de Lanzmann, Shoah, sob todos os aspectos fora de comparação com o filme de grande público Holocausto, quer impedir o esquecimento pelo testemunho do insustentável. O filme-testemunho e documentário tornou-se um instrumento poderoso para os rearranjos sucessivos da memória coletiva e, através da televisão, da memória nacional

(POLLAK, 1989, p. 11).

Esquadrões da Morte, Necropoder/Necropolítica e Máquinas de Guerra

Em uma das últimas sequências da obra é apresentada ao público a figura do então procurador de Justiça do Estado de São Paulo, Hélio Bicudo (interpretado por Othon Bastos), responsável por uma ferrenha oposição a Fleury e ao seu Esquadrão da Morte (figura 5). No depoimento que segue, Bicudo demonstra total confiança na capacidade da Justiça de sanar ou corrigir eventuais casos de abusos de poder ou violência física por parte das autoridades responsáveis pela repressão. E, ao ser questionado sobre eventuais pressões sofridas por sua pessoa para retardar o andamento na Justiça dos processos contra o Esquadrão, Bicudo afirma enfaticamente que os processos transitam normalmente, sem que ele tenha sofrido quaisquer instâncias de pressão ou insinuação por parte de quem quer que seja. Segue-se, então, ao seu depoimento uma notícia de jornal na qual é anunciado o seu afastamento dos processos concernentes a Fleury e ao Esquadrão por parte do Estado devido a motivos não suficientemente esclarecidos. Ao mesmo tempo, é exposta também a notícia de que Bicudo estava realmente sendo misteriosamente seguido em todos os seus passos (com até mesmo o seu escritório particular tendo sido vasculhado por três desconhecidos aparentemente interessados na microfilmagem de seus documentos pessoais).

Figura 5
“Você também pode dar um presunto legal”, Sérgio Muniz, 1973.

Por conseguinte, dadas as circunstâncias sócio-econômico-políticas nas quais o curta se encontrava inserido, não é de surpreender que a obra se encerre justamente com uma inquietante premonição a respeito daquilo que aguarda a nação brasileira caso o processo de julgamento das ações e recuperação da memória de Fleury e seus pares não seja forte e profundo o suficiente para impedir que o ventre do qual advieram ainda possa levar a recrudescências de caráter autoritário no futuro. Retornemos a partir daqui às contribuições teóricas de Mbembe (2016) para o presente texto por intermédio da seguinte pergunta: qual seria, portanto, a relação entre a atuação dos esquadrões da morte retratados no curta e os conceitos de necropoder/necropolítica e máquinas de guerra provenientes da obra de Mbembe? Antes de mais nada, entretanto, observemos brevemente as palavras finais do narrador do curta aqui analisado.

Hoje, o que importa é saber como o governo nacional militarista no Brasil utilizará politicamente a liquidação do esquadrão. O seu desaparecimento não significa necessariamente a vitória de um mínimo de justiça. O esquadrão é mais um retrato das deformações de um novo tipo de fascismo, aparentemente fora do tempo e do espaço. Para as autoridades, o Brasil é uma bem-sucedida experiência capitalista. E perguntamos: a que preço? O justiciamento de Fleury e seus pares, quer seja pela justiça revolucionária, quer seja pela justiça burguesa, é insuficiente. E a justiça burguesa, pressionada, vem recuando e dando mostras de medo. Por outro lado, os militares vêm tentando apaziguar a situação, demitindo dos quadros do funcionalismo público elementos menores do esquadrão, pois a punição de Fleury poderia comprometer altos escalões das Forças Armadas e da polícia. O ventre que gerou Fleury e o governo nacional militarista é o mesmo e ainda está fecundo

(VOCÊ TAMBÉM PODE DAR UM PRESUNTO LEGAL, 1973).

De fato, o ensaio geral da repressão representado pelo advento dos esquadrões da morte e por intermédio do financiamento de setores da sociedade civil poderia muito bem ser considerado um legítimo exemplo de como se dá o surgimento, a ascensão e o fortalecimento de uma máquina de guerra. Todavia, à diferença dos exemplos de máquinas de guerra provenientes do continente africano apresentados por Mbembe para a fundamentação dos seus conceitos de necropoder/necropolítica, no caso brasileiro, os esquadrões da morte atuaram não somente com a conivência, como também (e este fato é da mais alta importância para a presente análise) com a outorga por parte das Forças Armadas e da polícia durante o período da Ditadura Civil-Militar. E isto no sentido de — como muitíssimo bem posto por Antônio Calmon em seu filme Eu matei Lúcio Flávio (1979) — “fazer uma limpeza nessa cidade, onde a incidência de crimes já virou uma questão de alarme nacional” (EU MATEI LÚCIO FLÁVIO, 1979). Assim sendo, o Brasil da Ditadura Civil-Militar foi testemunha, como magistralmente exposto por Muniz em seu curta, do estabelecimento de uma bem-sucedida experiência capitalista nacional aliada ao capitalismo multinacional. E, responsável pela defesa desta, tem-se o estabelecimento de uma não menos bem-sucedida máquina de guerra voltada para a prisão, a tortura, e, enfim, o extermínio de todo indivíduo ou grupo que pudesse vir a ser percebido como uma ameaça para a estabilidade tanto do governo nacional militarista como um todo quanto da memória coletiva oficialmente propagada e defendida por ele.

Já com relação aos conceitos de necropoder/necropolítica, a conexão com o curta se transforma em algo relativamente mais complexo. Comecemos por reforçar que, para além das variadas diferenças contextuais entre a obra e a contemporaneidade dos conceitos provenientes de Mbembe, não restam dúvidas quanto ao fato de que os esquadrões da morte, tanto no curta em si quanto na vida real, contêm todos os elementos caracterizadores de uma máquina de guerra. Seria possível, então, afirmar que estes mesmos esquadrões são responsáveis pela criação de mundos de morte no espaço geopolítico da nação brasileira cujas condições de vida submetem populações inteiras ao status de mortos-vivos? De fato, podemos afirmar neste texto que o contexto sócio-econômico-político no qual se encontrava inserido o curta se trata de um contexto no qual as armas de fogo já tinham como função a destruição máxima de pessoas e a criação de mundos de morte (ainda que não necessariamente com a drástica consequência de que a própria morte terminasse por ocupar a posição e acabasse sendo mesmo representada como uma instância de agenciamento).

A obra de Muniz é exitosa na exposição ao seu público, senão da própria primazia do necropoder, da própria primazia da necropolítica, pelo menos de um prelúdio extremamente preocupante para um complicadíssimo cenário sócio-econômico-político, alertando recorrentemente (ainda que, indubitavelmente, de modo pleno de alegorias e referências a acontecimentos distantes da história brasileira) para aquilo que ainda podia se normalizar (e, até certo ponto, já havia se normalizado na própria época em que o filme foi lançado) caso nada fosse feito para frear e reverter os efeitos nocivos da atuação e do crescente fortalecimento dos esquadrões da morte no transcorrer do regime militar. Realmente, o curta contém um dos elementos fundamentalmente caracterizadores do necropoder, da necropolítica, qual seja, o gradual fim das linhas divisórias entre resistência e suicídio, sacrifício e redenção, martírio e liberdade. Ou seja, o curta já apresenta desde a década de 1970 as consequências das crescentes ascensão e influência dos esquadrões da morte para a população brasileira em geral.

Desse modo, à afirmação de Mbembe, ao final de seu artigo — de que os seus conceitos de necropolítica e necropoder explicam o advento de formas novas e únicas da existência social na contemporaneidade, marcadas pela implantação de armas de fogo no interesse da destruição máxima de pessoas, pela criação de mundos de morte e pela submissão de vastas populações a condições de vida que lhes inserem na categoria de mortos-vivos — a obra de Sérgio Muniz alerta seu público para uma verdade profundamente inquietante: essas formas novas e únicas da existência social na contemporaneidade explicadas pelos conceitos de necropolítica e necropoder já estavam presentes nos processos das ditaduras militares da América Latina da segunda metade do século XX. Realmente, Você também pode dar um presunto legal, ao contrário do artigo de Mbembe, aponta tanto para a formação quanto para o fortalecimento de máquinas de guerra, mundos de morte e o status de mortos-vivos desde, no mínimo, as décadas de 1960 e 1970 na experiência do Brasil da Ditadura Civil-Militar. Experiência esta que — justamente por ter sido tanto bem-sucedida quanto a primeira de seu tipo — serviu como ponto de partida para os regimes autoritários que a sucederam em vários outros âmbitos latino-americanos e para uma primeira fundamentação teórico-legal das políticas de Segurança Pública no período pós-Constituição de 1988. Como fica evidente, a título de exemplo, no seguinte trecho do artigo A violência estrutural na América Latina na lógica do sistema da necropolítica e da colonialidade do poder, de Dennis de Oliveira.

No ano de 1989, a Escola Superior de Guerra, instituição das Forças Armadas brasileiras que funcionou como um “think tank” das doutrinas que sustentaram a ditadura militar (1964-1985), elaborou um documento intitulado “Estrutura do Poder Nacional para o Século XXI”, que no capítulo da “ordem social” aponta que o crescimento da miserabilidade é um fator de risco para a desestabilização do sistema, razão pela qual pregam a manutenção do papel de “polícia” das Forças Armadas para o controle dos cinturões de miséria e o contingente de “menores” abandonados que tenderiam a se transformar em “criminosos”. Importante mencionar dois aspectos referentes a esse documento: ele foi elaborado para intervenção nas primeiras eleições presidenciais diretas realizadas após o fim da ditadura militar e também no bojo da discussão que pautou a Assembleia Nacional Constituinte do papel das Forças Armadas no ordenamento democrático

(OLIVEIRA, 2018, p. 50).

Considerações Finais

O que tudo isso indica é que as realidades apontadas por Mbembe em seu artigo, longe de terem apenas mais recentemente se traduzido conjuntamente numa modalidade contemporânea de existência social, já se faziam presentes desde pelo menos as décadas de 1960 e 1970 no âmbito da América Latina. E, dado que pelo menos dois dos próprios exemplos oferecidos por Mbembe do necropoder, da necropolítica já se faziam presentes antes mesmo da década de 1960 — quais sejam, o caso da Palestina e do regime de Apartheid na África do Sul —, realmente permanece a dúvida quanto à afirmação de que os conceitos de necropoder e necropolítica contêm em si o advento de formas novas e únicas da existência social. Pois, ao se testemunhar tanto o curta de Muniz quanto a cronologia referente a esses dois exemplos de Mbembe, uma conclusão não menos válida seria a de uma evolução no tempo das estratégias e tecnologias utilizadas por um necropoder/uma necropolítica já presente desde pelo menos meados do século XX ao redor do globo. A posição defendida pelo presente artigo é de que máquinas de guerra, mundos de morte e a categoria de mortos-vivos não são necessariamente realidades tão recentes assim, como indicado por Mbembe.

Finalmente, Você também pode dar um presunto legal realiza algo que infelizmente permanece até hoje a exceção e não a regra com relação ao cinema brasileiro: uma fundamental denúncia da visceral associação entre o crime organizado, o grande capital e o poder político com vistas tanto a desnudar o tipo de memória coletiva oficial que é recorrentemente reforçada e defendida por esse conjunto de atores quanto a condenar a transformação em hábito da violência continuamente alimentada (e reforçada como necessária) pelos grupos de extermínio a serviço do governo nacional militarista do período em questão.

Entretanto, o fato de ainda haverem grandes obras deste mesmo cinema voltadas para a lembrança e a elaboração de uma memória que tanto faça frente quanto dê início à abertura (ainda que simbólica) de um legítimo processo de justiça para as vítimas e seus descendentes, e também para a contestação do conteúdo da memória coletiva oficial do período da Ditadura Civil-Militar e seus remanescentes nos dias de hoje — tais como Lúcio Flávio, o passageiro da agonia (1977), Cidadão Boilesen (2009) e Pastor Cláudio (2017) —, representa aquilo que Pollak havia indicado em seu artigo de 1989: que nenhum grupo social ou instituição, por mais que aparente deter fortes estabilidade e solidez, possui, de fato, a garantia da sua perenidade. Mas o autor também aponta que o passado longínquo sempre pode se tornar promessa de futuro, ou, ainda, desafio lançado à ordem estabelecida no presente. (POLLAK, 1989, p. 11). E, no caso brasileiro, é precisamente por causa desses estilhaços de um passado não tão distante que é urgente, hoje mais do que nunca, descobrir, em vez de ocultar, toda produção filmográfica que almeje abordá-lo num sentido tanto crítico quanto factual, seja para desvelar os crimes acobertados pela memória coletiva oficial da época, seja para fazer frente a narrativas que almejem justificar (ou mesmo exaltar) os grupos de extermínio a serviço da ditadura de então.

  • 1
    Leonardo Corrêa Figueira e Marcos Alexandre dos Santos Albuquerque agradecem a Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) e ao Núcleo de Antropologia da Arte (N.A.d.A.) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
  • 2
    Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=RE8UvCUFGAk&t=308s>. Acesso em: 5 out. 2023.
  • 3
    Quais sejam, e na ordem em que aparecem, “Eu te amo, meu Brasil” (Os Incríveis), “Camisa 12” (Jorge Ben Jor), “Mini-ministério” (Gilberto Gil), “Língua do P” (Gilberto Gil), “Alfômega” (Gilberto Gil), “Pra frente, Brasil” (Miguel Gustavo) e “Apesar de você” (Chico Buarque de Hollanda).
  • 4
    Ambas as peças estavam em cartaz no Teatro São Pedro, em São Paulo, que estava sob a direção administrativa de Sérgio Muniz desde 1970. Lidando, respectivamente, com a ascensão do nazismo na Alemanha e com o campo de concentração de Auschwitz, elas expuseram a impactante escalada da violência política no Brasil desde 1964 (LEANDRO, 2020, p. 310-311).
  • 5
    Ao passo que Anita Leandro disseca em profundidade não apenas o curta como também as condições nas quais ele foi filmado (assim como as suas conexões com o Brasil da atualidade), nosso artigo visa abordar sua narrativa em diálogo com o necropoder/a necropolítica em Mbembe e com a clivagem entre memória coletiva oficial e memórias subterrâneas em Pollak. Ou seja, adotamos aqui uma perspectiva que problematiza a memória, com as dimensões socioculturais organizando de forma prioritária o eixo da análise em relação às dimensões audiovisuais.
  • 6
    Para mais informações a respeito dessas iniciativas de enquadramento da memória por parte do regime militar, consultar Cartoce (2017), Leandro (2020) e o filme Brasil Ontem, Hoje e Amanhã (1975).

Referências

  • BRASIL ontem, hoje e amanhã. Agência Nacional. 1975. (50 min), son, pb.
  • CARTOCE, R. E. O milagre anunciado: Publicidade e a ditadura militar brasileira (1968-1973). 2017. 257 f. Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Universidade de São Paulo, 2017.
  • CIDADÃO Boilesen. Direção: Chaim Litewski. 2009. (90 min), son, color.
  • EU MATEI Lúcio Flávio. Direção: Antônio Calmon. 1979. (97 min), son, color.
  • FOUCAULT, M. Aula de 17 de março de 1976. In: DREYFUS, H. L.; RABINOW, P. Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: M. Fontes, 2005. p. 285-315.
  • ______. Vigiar e punir 20. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
  • LEANDRO, A. Você também pode dar um presunto legal: Um filme clandestino sobre os esquadrões da morte. La Roca, n. 7, p. 308-329, dic. 2020.
  • LÚCIO Flávio, o passageiro da agonia. Direção: Héctor Eduardo Babenco. 1977. (120 min), son, color.
  • MBEMBE, A. Necropolítica. Arte & Ensaios, n. 32, dez. 2016.
  • OLIVEIRA, D. A violência estrutural da América Latina na lógica do sistema necropolítica e da colonialidade do poder. Extraprensa, São Paulo, v. 11, n. 2, p. 39-57, jan./jun. 2018.
  • PASTOR Cláudio. Direção: Beth Formaggini. 2017. (76 min), son, color.
  • POLLAK, M. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, 1989.
  • RANCIÈRE, J. La Fable cinematographique Paris: Seuil, 2001.
  • TOMAIM, C. S. Conversa entre Sérgio Muniz e Cássio dos Santos Tomaim sobre o seu livro “Documentário e o Brasil na Segunda Guerra Mundial…” Disponível em: <http://doc.ubi. pt/16/entrevista16.pdf>. Acesso em: 2 ago. 2022.
    » http://doc.ubi. pt/16/entrevista16.pdf
  • VOCÊ também pode dar um presunto legal. Direção: Sérgio Muniz. 1973. (39 min), son, pb.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    17 Jul 2023
  • Aceito
    13 Out 2023
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