Open-access Giro autoral no “livro de repórter”

Authorship’s turn in the “book of reporter”

Resumo

Um exercício para dar resposta à clássica indagação de Foucault, “O que é um autor?” (1970) está materializado neste texto em relação ao jornalismo. Para isso, considera-se a autoralidade como dispositivo de deslocamento de um movimento epistemológico que tem como ponto de partida a existência da autoralidade coletiva nas mídias jornalísticas e projeta a autoralidade individual no “livro de repórter”. As ações de resistência no jornalismo provocam este giro autoral alçando o repórter à condição de um “novo intelectual”, realizando-se como autor voltado a iluminar o que permanece oculto na produção das mídias. A experiência de duas repórteres, recortada de entrevistas de pesquisa ou descrita em seus livros, e a análise do livro Viagem à Palestina revelam quatro características do “repórter-autor”.

Palavras-chave jornalismo; autoralidade; livro de repórter

Abstract

This text intends to answer the classic Foucauldian question “what’s an author?” (1970), in the journalistic field, considering authorship as a dispositive of displacement of an epistemological movement from the collective authorship in the journalistic media to the individual authorship in the “book of reporter”. The resistance actions in journalism provokes this authorship’s turn, which moves the reporter to the condition of a “new intellectual” realizing himself as an author focused on illuminating the shadow zone in the media production. The experience of two reporters, collected in research interviews or described in their books, and the analysis of the book Viagem à Palestina, show four characteristics of the “author-reporter”.

Keywords journalism; authorship; book of reporter

Introdução

Nas mídias, o jornalista é parte no processo de produção coletiva. O reconhecimento desta condição de possibilidade implica no anonimato ou na assinatura jornalística (byline), evidência empírica de uma singularidade profissional em que, como autor, o jornalista é uma peça do dispositivo de produção que regularmente é posto em funcionamento. Tão logo tornado público, o texto jornalístico perderia a validade, o que levou Dominique Maingueneau (2010) a situar no mesmo limiar de autoralidade1 jornalistas e padres à medida que ambos são produtores de discursos perecíveis.

Simultaneamente, nossos estudos têm evidenciado na França (RINGOOT; BASTIN, 2011) e no Brasil um fenômeno editorial que segue direção contrária: os livros escritos por jornalistas. Neste amplo espectro, localizou-se o “livro de repórter”, em que a resistência à disciplina jornalística aproxima o repórter à figura híbrida de um “novo intelectual” (VATTIMO, 2016). No “livro de repórter” há dois limiares de crítica ao jornalismo. No primeiro identificou-se uma hermenêutica jornalística; no segundo, uma ação de criação em relação ao jornalismo. Ambos supõem uma autoralidade individual que se desvia da disciplina jornalística e emerge igualmente em certas reportagens produzidas nas mídias jornalísticas nas margens da produção coletiva, mas é somente quando atravessa o limiar da criação, que o repórter parece ser “plenamente autor”, por ter sua obra reconhecida por mídias de prestígio e pela academia, no caso, pelos cursos de jornalismo.

Autoralidade coletiva e o giro autoral

Na prática jornalística, a autoralidade é desenhada pelos filtros existentes na curta duração do processo de produção, o que faz do texto jornalístico um objeto empírico complexo, construído por muitas vozes e por operações de controle. Neste processo, o jornalista perde os contornos individuais e se constitui como sujeito no coletivo.

Em discursos recortados da mídia francesa, Roselyne Ringoot levantou pistas da existência de um sujeito coletivo jornalístico e de um ethos, igualmente jornalístico. Um conjunto de mecanismos constitutivos da enunciação jornalística e da racionalização da informação enquadram a produção do discurso e organizam o menu informativo pontual sobre pré-construídos estáveis. Deste modo, as editorias e os recursos gráficos, de um lado; os gêneros, os ângulos, a assinatura e o discurso reportado, que se apoia em fontes informativas, de outro, configuram em seu conjunto a identidade editorial do jornal (RINGOOT, 2013).

No âmbito dos gêneros jornalísticos, Ringoot reconheceu a existência de um ethos jornalístico construído sobre três tipos de estratégias discursivas individuais: 1) a corporalização enunciativa em que o jornalista coloca em cena o seu corpo no momento da escrita; 2) a caracterização enunciativa que corresponde à mobilização da opinião e do trabalho intelectual do jornalista; e 3) a despersonalização que corresponde ao apagamento enunciativo do jornalista (RINGOOT, 2005).

Outro viés da autoralidade decorre da construção simbólica da profissão. No quadro de uma autoralidade genérica, o sujeito se constrói em relação aos outros discursos com os quais o jornalismo foi demarcado socialmente. Neste sentido, o ethos profissional legitima a atividade de informar na profissão, por meio das mídias. Segundo o sociólogo inglês Jean Chalaby, a profissão e o discurso jornalístico resultaram da emergência no século XIX, de um saber autônomo de produção discursiva, regulamento por valores como a objetividade e a neutralidade.

Progressivamente, o discurso jornalístico tornou-se um tipo de texto diferenciado: agentes do campo jornalístico desenvolveram suas próprias normas e valores, como a objetividade e a neutralidade. O modo jornalístico de escrita incorporou estratégias e práticas discursivas, nem literárias, nem políticas. Os textos jornalísticos ganharam características filológicas diferenciadas e o mesmo fenômeno discursivo pode ser identificado nestes textos que formaram o discurso jornalístico

(CHALABY, 1996, p. 304, tradução livre da autora)2.

A concepção de jornalismo de Chalaby, no quadro conceitual da formação discursiva, se refere à “ordem do discurso” que passou a vigorar nas práticas e nas manifestações singulares do texto jornalístico com a emergência de novos dispositivos capitalistas e organizacionais, em meados do século XIX, nos Estados Unidos e na Inglaterra. Esta tese, segundo Ringoot, articula ordem profissional à ordem do discurso, ou seja, enquadra a autoralidade profissional no nível discursivo, enquanto no âmbito do jornal, aponta para a instância do coletivo que se desenvolve no processo de produção e é relacionada com o surgimento do jornal.

A descontinuidade inscrita por Jean Chalaby no quadro conceitual da formação discursiva se situa no nível do discurso, enquanto a continuidade defendida por Jean Charron e Jean de Bonville se situa no nível do jornal. Desde meu ponto de vista, trata-se, de um lado, da autoralidade genérica profissional (...) e, de outro, da autoralidade coletiva do jornal (...). A tese continuísta privilegia a autoralidade coletiva do jornal no sentido de que o jornalismo pode ser relacionado com a aparição do jornal, em detrimento da autoralidade profissional

(RINGOOT, 2012, p. 100, trad. livre da autora)3.

Dominique Maingueneau (2010) abriu uma derivada de estudos incluindo o jornalista como autor, embora situado num baixo limiar de autoralidade. Desde uma abordagem singular, em que fixou quatro limiares de autoralidade, ou etapas anteriores à emergência de uma figura de “auctor maior”, designado como “autor-auctor”. O jornalista, na leitura de Maingueneau, é um produtor de discursos que perdem a validade, tão logo tornados públicos. Esta seria a função de um produtor individual ou coletivo de textos dispersos, assinados ou não, que permanecem no seu lugar original. Nesta etapa de emergência da autoralidade, Maingueneau não diferenciou o jornalista de um “padre que faz o sermão todos os domingos”.

Em segundo lugar, Maingueneau localizou o produtor-autor, um jornalista mais qualificado que reúne separadamente os textos produzidos, ou o padre, os sermões que fez, para convertê-los em obra. Em seguida Maingueneau desenhou a figura do autor potencial, que não tem acesso ao circuito editorial e por isso possui uma imagem de autor extremamente fraca, e do autor que publica em uma editora forte e tem acesso à midiatização, que lhe confere um grau forte de autoralidade. O terceiro limiar é cruzado pelo auctor, que pode ser associado a uma obra e não a uma sequência contingente de textos dispersos, um opus, que implica um conjunto de enunciados relacionado a um focalizador, uma consciência da qual esses enunciados seriam a expressão.

No quarto limiar situa-se alguém de tanto prestigio que pode até publicar uma antologia de outros autores; o que nela vai preponderar é o seu ponto de vista pessoal (MAINGUENEAU, 2010). Atravessam o quarto limiar autores como Mallarmé e Nietzsche, diferenciados por terem produções, que eles próprios excluíram de sua obra, incluídas por decisões editoriais que as tornam parte da obra e da imagem pública dos autores.

A função autor

O interesse pelo autor apareceu com sua ausência, em As palavras e as coisas, em que Foucault se dedicou a massas de enunciados da história natural, da análise das riquezas e da economia política. Apagando as unidades habituais do livro e do autor, foram se formando “famílias monstruosas” que não pareceram extravagantes a Foucault, porque o que buscava, algo “modesto”, eram as condições de funcionamento das práticas discursivas especificas (FOUCAULT, 1999, p. 331).

Em outra parte de seu trabalho, Foucault voltou-se justamente a esta ausência anterior: a noção de autor e a maneira como o texto aponta para esta figura “que lhe é exterior e anterior, aparentemente pelo menos4” (FOUCAULT, 1999, p. 332, trad. livre da autora). Neste percurso epistemológico, localizou a indiferença – o que importa quem fala?, expressão com que Beckett contempla um dos princípios éticos fundamentais da escritura contemporânea: ela é jogo de signos ordenados, uma regularidade, que está sempre sendo experimentada em seus limites e onde o sujeito escritor não cessa de desaparecer. A escritura, segundo Foucault (nesta época estava imerso na literatura e em suas experiências-limite), tem um parentesco com a morte, pois em um de seus modos de manifestação mais profanos, afeta o sujeito escritor, que se esquiva dos signos de sua individualidade; a marca do escritor é a sua ausência, a ele cabe o papel de morto no jogo dos signos.

Para decifrar o espaço deixado por este autor que se esquiva, definido por ele em sua ausência como a “função autor”, Foucault retomou a interrogação inicial, focado no nome do autor, que funciona para caracterizar um certo modo do discurso, indicando que este não é uma palavra cotidiana, imediatamente consumível, tratando-se de uma palavra que deve ser recebida de um certo modo, em uma dada cultura e que tem um determinado estatuto.

O nome do autor não está situado no estado civil dos indivíduos, tampouco está situado na ficção da obra; está situado na ruptura que instaura um certo grupo de discursos e seu modo singular

(FOUCAULT, 1999, p. 338, trad. livre do autor).5

Neste espaço, os discursos que não possuem “função autor” podem ser identificados: uma carta privada tem um signatário, não um autor; um texto anônimo, que está afixado em um muro, tem um redator. Entre uma série de restrições, Foucault presume como inerente da “função autor” um modo de circulação e de funcionamento de certos discursos no interior de uma sociedade. Em sua existência na cultura ocidental, os discursos, textos ou livros, que possuem “função autor”, podem ser identificados por quatro características: a primeira se refere à punição que se associou ao ato de escrever, a partir do momento em que o escritor é enquadrado em um sistema de propriedade. Com as regras sobre os direitos de autoria e de reprodução (entre os séculos XVIII e XIX) os textos transgressores passaram a ser passíveis de punição ao agente da transgressão, o autor.

Em segundo lugar, a “função autor” não se exerce de modo universal e constante sobre todos os discursos. Os textos literários, por exemplo, durante muito tempo eram postos em circulação e valorizados em seu anonimato, enquanto os textos da medicina, das ciências naturais ou da matemática não eram valorizados se não fossem identificados pelo nome do autor. Entre o século XVII e XVIII se produziu um quiasma: a “função autor” se apagou do discurso científico, enquanto o anonimato literário se tornou insuportável.

A terceira característica da “função autor” está ligada a um ser da razão cujo estatuto foi desenhado por Foucault com atributos: uma instância profunda, um indivíduo com poder criador, um projeto e um lugar originário da escritura. O autor é, igualmente, o princípio de uma certa unidade da escritura e um certo lugar de expressão; assim um texto pode reenviar ao autor através dos pronomes pessoais, dos advérbios de tempo e de lugar e das conjugações verbais. Estes signos não são usados da mesma maneira em discursos que possuem esta função e em textos desprovidos dela.

O quarto traço diz respeito à relação do autor com o indivíduo real. Para Foucault, a “função autor” não corresponde diretamente a um indivíduo real. Ela pode dar lugar a vários egos, várias posições. O ego que fala no prefácio de um tratado de matemática, por exemplo, não é idêntico, nem na sua posição, nem no seu funcionamento, ao ego que fala durante a argumentação, que aparece sob a forma “eu concluo”, ou “eu suponho”, e que ainda pode se realizar em um terceiro ego: aquele que fala sobre as dificuldades de seu trabalho. No entanto, a “função autor” não está relacionada a esses diferentes egos, pelo contrário, atua de forma a dar-lhes lugar na sua dispersão.

No reconhecimento do vínculo do jornalismo com a verdade, como correspondência objetiva do acontecimento representado, é possível traçar uma linha tênue de fronteira entre jornalismo e literatura para que se possa pensar sobre a existência de dois campos quase indissociáveis na dependência da linguagem e do sujeito. Em que a “função autor”, pensada por Foucault para a literatura, poderia ser aproximada ou distanciada do jornalismo a partir desta diferença artificialmente construída?

Não se trata, seguramente, de uma “função autor” nos moldes da literatura. No caso do jornalismo, propõe-se quatro traços para a “função autor”. No primeiro deles, o suporte do coletivo no processo de produção das notícias, que se desenha no âmbito social no caso da literatura, é uma necessidade das rotinas, onde o trabalho do repórter não se realiza sem a articulação direta com outros produtores, editores, revisores. Nestas condições de possibilidade, a disciplina do campo e os interesses da organização jornalística se sobrepõem, em diferentes graus, à figura do criador individual.

Laurindo, com base em Weber, valeu-se do “tipo ideal” para conectar a “função autor” no jornalismo ao testemunho de uma experiência singular de mediação que estabelece e explica as relações criadas com os acontecimentos. Esta segunda característica não é independente dos gêneros, na medida em que se desloca do sentido da escrita superficial e modélica ao trabalho complexo de apreensão e interpretação das dimensões concretas de particularidades e universalidades do pertencimento do sujeito ao mundo das coisas.

A questão da ética implica à “função autor”, pensada por Laurindo, o terceiro traço: a dimensão jurídica que se afasta dos controles jornalísticos e da profissão e pode ser desdobrada em dois aspectos: moral, que assegura ao criador o controle à menção do seu nome na divulgação da obra e o respeito à sua integridade, além dos direitos de modificá-la ou de retirá-la de circulação; e patrimonial, que regula a utilização econômica da obra, prevendo pagamento ao autor pela circulação e exploração da criação (CHRISTOFOLETTI, 2006, p. 7).

Para além destas dimensões já reconhecidas no jornalismo, a “função autor” pode ser vinculada à resistência que um certo grupo de discursos instaura em seu modo de fazer singular. Tem-se aí uma quarta característica, em que o autor se aproxima da literatura ao projetar-se no descolamento do nome do jornal e da autoralidade coletiva. Na dispersão de textos publicados nos jornais ou no livro se configura um espaço outro onde a experiência subjetiva combate o objetivismo jornalístico.

O livro e o repórter

O reconhecimento de Maingueneau de que a análise do discurso sofre de um déficit em matéria de reflexões sobre o autor continua mantendo atual a interrogação de Foucault de 1960: o que é um autor? Roselyne Ringoot vem aproximando este objeto ao jornalismo há mais de uma década, primeiramente com foco nos livros “didáticos”, que são vetores de prescrição e foram escritos por jornalistas franceses. Já no estudo sobre formas romanescas da ética jornalística, Roselyne Ringoot (2016) voltou-se para um romance sobre o jornalismo, escrito por um jornalista. Neste trabalho, a pesquisadora analisou a ideologia profissional a partir da ética. Com base em material ficcional, questionou a produção da verdade jornalística.

O foco de Ringoot, na sequência, foram os jornalistas reconhecidos por premiações e o romance do estudo anterior deu lugar às categorias: enquete, reportagem e reflexividade jornalística. Um censo dos livros de jornalistas na Biblioteca Nacional da França foi associado à problematização da autoralidade, em coautoria com o pesquisador francês Gilles Bastin (2011). Na retomada do objeto, Ringoot partiu da hipótese de que o livro de jornalista é um fenômeno editorial na França, principalmente o subgênero enquete, com o trabalho de dois jornalistas, Florence Aubenas e Roberto Saviano, que publicaram respectivamente Le quai de Ouistreham (2010) e Gomorra: dans l’empire de la camorra (2007).

Nesta brecha aberta por Ringoot no espaço conceitual da autoralidade individual, o “livro de repórter” pode ser pensado como um lugar de tensão entre os controles discursivos a que os jornalistas estão expostos e a resistência com que se opõem a eles (MAROCCO, 2015; 2016). Nada a ver com os relatos cronológicos, afirmativos, avessos à incerteza que resultam da degradação da experiência, a que Benjamin já se referia no ensaio O narrador (1987).

Como um exercício de crítica das práticas jornalísticas, o “livro de repórter” apresenta a ação subjetiva e de resistência de um “repórter-autor”. Daí conservarmos a expressão “livro de repórter”, enquanto essa designa um tipo de autoria individual afastada do ethos profissional e da autoria coletiva própria do tempo e do espaço do jornalismo. Esta prática em novas bases espaço-temporais não rompe com o jornalismo, embora o “repórter-autor” construa com seu trabalho um lugar de criação dentro do jornalismo, voltado ao exercício da crítica como reconhecimento do presente. Neste novo patamar epistemológico, o repórter aciona movimentos de investigação que projetam o acontecimento em sua complexidade, em um “poliedro de inteligibilidade”:

O poliedro possibilita compor, decompor e recompor acontecimentos, a partir do(s) ângulo(s) de entrada. Aí reside a riqueza, desencadear inúmeras possibilidades de compreensão da realidade. Transposto ao jornalismo, o “poliedro de inteligibilidade” pode auxiliar tanto na produção dos acontecimentos como na compreensão de como os acontecimentos discursivos se engendram, acionando e revelando uma rede discursiva que lhe é anterior e exterior. Para Foucault (1978), a análise dessas tramas busca reconstituir as condições de aparição de uma singularidade, a partir de múltiplos elementos determinantes, considerando que não é na natureza das coisas que se poderia encontrar o sustento, o suporte dessa rede de relações inteligíveis, é a lógica própria de um jogo de interações com suas margens sempre variáveis e de não certeza

(MAROCCO; ZAMIN ; BOFF, 2012, p. 4).

No “livro de repórter”, em sua diferença, o repórter faz-se intérprete crítico das leis do jornalismo e/ou de criador de um certo campo de coerência conceitual ou teórica relativo a um devir jornalismo. Pensado desde uma perspectiva foucaultiana, na contraposição ao modo de objetivação jornalística, o “livro de repórter” instala uma dissimetria nas relações de poder. Basicamente, segundo Garcia (2008), a resistência, pensada por Foucault como dissimetria nas relações de poder, é experiência de subjetivação, de autonomia, de quem não afronta o inimigo para infligir uma derrota, o que pretende é enfraquecê-lo e bater em retirada. No caso do repórter-autor, a resistência tem como objeto as práticas jornalísticas que caracterizam uma autoralidade coletiva ligada às mídias dominantes.

Em sua forma singular, o relato amarrado no tempo da atualidade e na objetividade reproduz leis que predeterminam a sua significação, tornando a experiência calculável e certa. No “livro de repórter”, ao contrário, a experiência parece apontar para o desejo ativo de escutar e dar atenção às possibilidades alternativas. Segundo Antunes, para se abrir como elemento de compreensão da experiência, o texto jornalístico, em alguma medida,

precisaria se problematizar, construir formas de abordagem que dessem conta de aspectos como a complexidade, a indeterminação e a multiplicidade contextual que um texto apresenta. [...] Ou seja, seria preciso um texto que encarnasse dúvida, hesitação, perplexidade também como objetivos desta comunicação jornalística, um texto que configurasse uma situação problemática

(ANTUNES, 2010, p. 156).

Nas entrevistas com 17 jornalistas, feitas ao longo da pesquisa “Os controles discursivos e o saber jornalístico que circula nas redações” (MAROCCO, 2012), foram obtidas as primeiras pistas do modo de objetivação jornalística próprio do “livro de repórter”. Na escuta da consciência discursiva dos agentes (GIDDENS, 2009) foi possível delinear o exercício da crítica ao jornalismo com a recomposição do acontecimento em sua complexidade e quatro elementos presentes na experiência singular de um “repórter-autor”, que deram ferramentas de prospecção para a continuidade da pesquisa. Para este artigo, um pequeno arquivo foi formado com duas destas entrevistas e os livros Viagem à Palestina e O olho da rua. As entrevistas apontaram regularidades nas ações das repórteres e estas formalizaram um protocolo de análise aplicado na leitura crítica dos livros.

a) O “repórter-autor” rompe com a produtividade da fonte do jornalismo industrial. Em entrevista concedida à pesquisadora, Eliane Brum contou que em seu trabalho desloca-se da relação objetiva e efêmera entre jornalista e fonte, sem, no entanto, ocupar o lugar de amiga; como “escutadeira” incorpora a repórter, a ponto de a fonte, ao longo da apuração, ser surpreendida com a ideia de que a repórter se dedique a outra coisa que não seja ouvir a vida dela.

Alexandra Lucas Coelho, em entrevista à pesquisadora durante a mesma pesquisa, contou que se coloca frente ao outro e pensa: “Esta pessoa sou eu, pode ser eu”. Este giro identitário, segundo a repórter, torna mais sólida a percepção de que esta pessoa podia ser ela, ao mesmo tempo que auxilia a construção do respeito ao outro, auxilia a compreensão da diferença que existe entre regiões geográficas tão dispares como os Estados Unidos e o Afeganistão, a África e o Brasil. Tal perspectiva permite que Lucas Coelho considere a história diferente que cada fonte representa.

Este é o grande lance: a dignidade. Da inteireza e da dignidade de uma pessoa que está a nossa frente. E isso tem a ver com o que? Tem a ver com o som da voz, tem a ver com os gestos, detalhes, tudo isso me interessa, que essa pessoa possa se destacar em todas suas diferenças, particularidades

(MAROCCO, 2012, p. 163).

b) O “repórter-autor” se apropria do corpo como dispositivo da experiência sensorial que move a sua prática. Não interessa ouvir somente declarações das fontes para cumprir a pauta, mas fazer funcionar os sentidos do tato, da visão, da audição em uma relação de cognição afetiva entre seres humanos, como se o jornalista fosse um corpo do leitor, que ele ali estivesse como enviado especial do leitor.

Neste papel, Alexandra Lucas Coelho disse que

o corpo do jornalista é para ser trespassado por uma experiência sensorial, cognitiva, com o cheiro, com o quê vê, com o que ouve. E esta experiência sensorial deve ser depois transmitida através do texto

(MAROCCO, 2012, p. 163).

Eliane Brum costuma provocar em si mesma um movimento de esvaziamento: dos preconceitos, das visões de mundo, dos julgamentos, afinal, jornalista não é juiz para, em outro estado, deixar-se preencher pela história do outro. “Se vais cheia, não tens como ser preenchida” (MAROCCO, 2012, p. 77). A repórter deu visibilidade a este movimento na reportagem A mulher que alimentava, em que acompanhou os últimos quatro meses de vida de Ailce de Oliveira Souza. As duas se viam toda a semana, todos os dias falavam por telefone. Brum descobriu-se “um terceiro fio na vida dela” e que, “na condição de narradora de uma vida”, era uma casa vazia. “Eram suas as palavras que me enchiam com história” (BRUM, 2008, pos. 3836).

Nunca tivera a oportunidade de falar muito de si mesma. Desse dreno de palavras ela gosta. ‘A gente fica guardando coisas por toda a vida. Quando eu falo, parece que elas vão se soltando dentro de mim. Me liberto’. Na outra ponta deste fio, eu também me sinto presa

(Brum, 2008, pos. 3584-3589)

Sobre a chegada ao aeroporto Queen Alia, em Amã, capital da Jordânia, Adriana Mabília trocou as informações geográficas pela descrição da sensação de distância que materializa na imagem do astronauta:“o cabo se rompe, ele se desprende da nave e se perde na escuridão do espaço?” (MABÍLIA, 2013, pos. 85). Não recorreu a verdades panorâmicas, somente a percepções sobre o lugar desconhecido e suas diferenças, como se ocupasse a posição de um corpo a ser preenchido a partir daquele momento.

Passo pela porta. O corpo ainda não parou de tremer. O saguão de desembarque está lotado de pessoas aguardando a chegada de parentes, amigos. Muitas mulheres de preto da cabeça aos pés. De fora, os olhos, mas só o suficiente para que elas consigam enxergar o caminho

(ibidem, pos. 195).

c) O momento da escrita é concebido por Alexandra Lucas Coelho desde a entrevista em que a inteireza e a dignidade da pessoa que está a sua frente tem a ver com sua atenção voltada para o som da voz, os gestos e os detalhes que destacam diferenças e particularidades individuais. Essa complexidade na relação de entrevista leva à produção de um texto de cinema, em que o leitor, além de ler, vai ouvir e ver, para criar imagens, som e movimentos.

O texto tem muito do cinema, para mim é muito cinema. Então é um cinema com todos estes elementos, e o fascínio está em construir um cinema, mas apenas com palavras

(MAROCCO, 2012, p. 163).

Eliane Brum não diferencia os momentos de apuração e escrita. Ao longo dos dias de apuração, a repórter reconhece que escreve dentro de si quando está acordada e quando está dormindo.

Costumo dizer que fico grávida da matéria, o que altera meu humor e meu metabolismo. Não é fácil me aguentar dentro de casa nesses dias de gestação da reportagem. Fico quieta, sorumbática. Passo uma semana num asilo ou vinte dias no meio do mato e quando volto não conto nada. Respondo às perguntas que me fazem com um olhar vago. Só consigo falar depois do parto do texto

(BRUM, 2008, pos. 1146).

d) A figura do “repórter-autor” salienta certas informações que o discurso cotidiano e o domínio midiático da ideologia dominante muitas vezes esquecem e escondem sob uma ordem do discurso. Neste sentido, a informação é usada como arma e os argumentos se referem à história e às experiências partilhadas com nossos semelhantes, para além de referir-se às evidências materiais (VATTIMO, 2016).

Mabília buscou evidências de que a mídia brasileira não informa sobre o que acontece na Palestina, mais particularmente ela quis contar no livro o cotidiano das mulheres palestinas que só ocupa o noticiário quando uma delas se torna mulher-bomba e se explode, depois de perder mãe, pai, irmãos e ter sua casa destruída pelo exército judeu.

Elas são revoltadas com tudo isso, não têm mais nada a perder. Nem armas para lutar e se defender. Também não tem ninguém que as defenda. Nenhum país, nem as Nações Unidas defendem os palestinos. O mundo cruzou os braços e assiste aos israelenses todos os dias matando crianças e jovens, derrubando casas, cortando água e luz

(MABÍLIA, 2013, pos. 695).

Quando esteve na Praça Tahir, nos dias da Revolução do Egito, em 2011, Lucas Coelho optou por usar o Facebook, em que postou muitas fotos e pouca coisa escrita. Foi uma experiência “completamente nova”, em que o mesmo meio usado para fazer revolução, foi usado para fazer jornalismo e provocar uma ação política no Ocidente. Através da imagem, ela queria operar sobre o estereótipo que os jovens muçulmanos recebem no Ocidente, que eles fossem vistos como indivíduos que se vestem iguais a nós, ouvem as mesmas músicas, são sedutores, bonitos.

Que eles vissem aqueles jovens com seus Macintoshes e seus i-Phones [...]. Eu queria que os vissem sentados no chão, fumar com suas guitarras [...] Queria que tivessem intimidade com a revolução, os abraços. [...] Houve um momento em que um amigo me deixou uma mensagem: “Mas estas pessoas são lindas e são como nós!”

(MAROCCO, 2012, p. 173).

Eliane Brum vê grandeza “até nos pequenos feitos de pessoas despercebidas”. É desde esta perspectiva, que ela descobre e conta histórias de um “mundo em dissonância” (BRUM, 2008, pos. 61). Na reportagem sobre o garimpo, publicada em O olho da rua, ela constatou que o garimpeiro é o brasileiro pobre que se recusou a desistir; no mesmo livro, disse que a expressão casa de repouso foi inventada para abrigar velhos supostamente cansados da vida, quando é o mundo que se cansou deles; sobre as parteiras da Floresta Amazônica, disse que elas são chamadas nas horas mortas da noite para povoar o mundo (BRUM, 2008, pos. 61).

Considerações finais

Há autor na literatura, assim como há autor no jornalismo. Os argumentos mobilizados nas linhas anteriores sugerem que a construção da autoralidade individual no jornalismo está ligada, primeiramente, à “função autor”, ou seja, não se define por um discurso espontâneo, mas sim pela singularidade de um campo do conhecimento e por operações jornalísticas que são mobilizadas para produção do acontecimento em questão. A observação, a escuta, as indagações, as presenças físicas ativas acionam procedimentos regidos por princípios éticos que configuram o discurso como arma.

Quer seja no jornal, quer seja no livro, a autonomia do jornalista como criador não foi reconhecida por Maingueneau. Ringoot se desvia desta posição. Foucault, mesmo tendo se declarado jornalista nas viagens que fez ao Irã, planta os critérios que Maingueneau atribui à personagem do auctor restrita ao campo da literatura (FOUCAULT, 1999). Mesmo assim, não há como destituir Foucault do estatuto autoral e de seu desenvolvimento nas reportagens que fez no Irã e nas unidades de sua obra, nem a repórter que, sem reconhecê-lo nos propicia, igualmente, um conjunto de discursos resultantes de suas ações para dar conta dos procedimentos de acontecimentalização que fazem aparecer o acontecimento em sua complexidade e, deste, as informações que muitas vezes a ideologia dominante esquece e esconde.

Neste final, gostaria de articular o conceito de autor individual no jornalismo ao estatuto de auctor, que se insinua, neste caso, nas ações dos repórteres de reconhecimento do presente, empreendidas originalmente por Kant, reconhecidas por Foucault no conceito de “acontecimentalização” (FOUCAULT, 2006, p. 339). No caso de Eliane Brum, Alexandra Lucas Coelho e Adriana Mabília, além desta diferença em relação ao campo do jornalismo, haveria entre elas um “forte coeficiente de auctoralidade” graças ao reconhecimento público de seu trabalho, aos prêmios recebidos, inclusive no campo da literatura, e à imagem de autor que isso proporciona e que compartilham. Segundo Maingueneau, bem menos que que isso, “[...] um ensaio publicado por um grande editor, citado por diversas revistas de prestígio e que leva seu autor a um programa de televisão” (MAINGUENEAU, 2010, p. 32), já confere um forte coeficiente de auctoralidade.

No exame da cotidianidade das práticas jornalísticas, o pensamento de Maingueneau pode, igualmente, perder força se à efemeridade do texto “proveniente de atividades verbais rotineiras” (2010, p. 31) forem acrescentadas as sucessivas edições que compõem uma coleção de jornais. No ambiente do arquivo, formado por um conjunto de textos atribuídos a um nome próprio, a regularidade de certas características da escritura poderá apontar, em uma operação analítica, para a existência de um nível em que se pode circunscrever, no conjunto de enunciados, a expressão da personalidade singular de um “potencial autor-auctor” e de um auctor mesmo que este siga vinculado à produção coletiva midiática, que tem a crítica das práticas jornalísticas como sinal de nascença. Para reforçar esta suspeita a ser continuamente testada em outros livros, recorremos à Gianni Vattimo, que em seu pensamento sobre o papel novo e ainda por se definir do intelectual, desenha uma figura que se ocupa do oculto, que tende a escapar na especialização das ciências e que, “na era da democracia desvela a integralidade da experiência individual e social que se subtrai à esquizofrenia tecnológica e ao consequente autoritarismo” (VATTIMO, 2016, p. 36).

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    Na concepção de Ringoot, autoralidade equivale à palavra autoria (anotações da autora da conferência de abertura do VI Seminário Aberto de Jornalismo, promovido pelo GPJor/Unisinos-CNPq, em maio de 2017). Para os linguistas, a autoralidade ultrapassa a estrita comunicação linguística e se abre para considerações que associam intimamente o jurídico e o textual no interior de configurações históricas singulares. Neste sentido, segundo Maingueneau, a autoralidade tende a aparecer como uma categoria confusa que vem embaraçar a transparência da linguagem (2014, p. 27). Neste texto o uso do termo considera o ethos de autor e os limiares estabelecidos por Maingueneau para a auctoralidade, que diferenciam o autor de textos dispersos e efêmeros do “auctor maior” (2014, p. 31-32), para além dos limites do termo autoria em seu sentido de “qualidade ou condição de autor” (Michaelis, disponível em: http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=autoria
  • 2
    Progressively, the journalistic discourse became a distinctive class of texts: agents in the journalistic field developed their own discursive norms and values, such as objectivity and neutrality. The journalistic mode of writing became characterized by particular discursive strategies and practices, neither literary nor political in character. Journalistic texts began to possess distinctive philological characteristics, and the same discursive phenomena could be identified in the texts, which formed the journalistic discourse (1996, p.304).
  • 3
    La discontinuité étayée par Jean Chalaby dans le cadre conceptuel de la formation discursive se situe au niveau du discours, alors que la continuité défendue par Jean Charron et Jean de Bonville se situe au niveau du journal. De mon point de vue, il s’agit d’une part de l’auctorialité générique professionnelle […] et il s’agit d’autre part, de l’auctorialité collective du journal […]. La thèse continuiste privilégie l’auctorialité collective du journal dans le sens où le journalisme est rapporté à l’apparition du journal, au détriment de l’auctorialité professionnelle (RINGOOT, 2012, p. 100).
  • 4
    Que le es exterior y anterior, aparentemente por lo menos” (FOUCAULT, 1999, p. 332).
  • 5
    El nombre de autor no está situado en el estado civil de los hombres, tampoco está situado en la ficción de la obra, está situado en la ruptura que instaura un cierto grupo de discursos y su modo de ser singular (FOUCAULT, 1999, p. 338).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    13 Ago 2017
  • Aceito
    05 Nov 2017
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