Open-access Convenções sociais e suas modulações

Além da diversidade dos contextos nacionais abordados - Argentina, Brasil, Colômbia, México e Panamá - os artigos deste número trazem significativas contribuições para a reflexão sobre o modo como gênero e sexualidade articulam-se aos temas da violência, da saúde e da cidadania.

Da perspectiva das epistemologias feministas, as relações entre violência e gênero são exploradas em dois distintos contextos nacionais através das pesquisas de Álvarez e Arroyo e da de Barreto Ávila. A primeira diz respeito à naturalização das violências nos relacionamentos conjugais e nos espaços de sociabilidade do ponto de vista de mulheres e meninas na cidade de Medellín. Considerando os efeitos do conflito armado interno da Colômbia, particularmente em termos da exacerbação da concepção dos corpos femininos enquanto “territórios de disciplinamento e controle”, a análise se volta para as desigualdades identificadas pelas próprias mulheres e meninas no seu cotidiano. Apesar da reprodução de estereótipos de gênero, ilustrada pela carga de trabalho doméstico, pelas interdições nas atividades de lazer, pelas limitações simbólicas e estruturais no acesso à educação e, finalmente, pelas práticas violentas dos parceiros, as autoras observam as resistências e os agenciamentos das mulheres que questionam os estereótipos e atribuem novos sentidos às relações conjugais e familiares. A pesquisa busca problematizar as narrativas que perpassam a gramática emocional do medo e da dependência, tendo como horizonte a construção de “relacionamentos mais pacíficos, equitativos e democráticos”, muito além do processo de resolução do conflito armado em vigor.

Por sua vez, Barreto Ávila reflete sobre violência de gênero em contexto universitário, a partir de uma denúncia de estupro ocorrido na Universidad Nacional Autónoma do México e que se torna um caso emblemático. A argumentação principal é tecida em torno do acionamento do “testemunho” como forma de reparação individual e coletiva em situações em que respostas jurídicas e/ou institucionais insistem em acionar elementos de culpabilização e estigmatização da vítima. O artigo coloca em relevo as disputas travadas no âmbito da ressignificação de antigas categorias jurídicas relativas ao estupro e, dialogando com trabalhos de Boltanski (1993), Jimeno (2010), Ross (2000), entre outros, explicita também as dinâmicas provocadas pela repercussão do caso em diferentes espaços e instâncias através da publicização e coletivização do testemunho do sujeito denunciante. Por meio de uma linguagem político-emocional, o ganho de empatia e a legitimação da denúncia produzem efeitos de deslocamentos diversos.

Tendo como pano de fundo a conjuntura mais ampla do fortalecimento de forças conservadoras na América Latina, tanto no nível local quanto no nacional, dois outros artigos contribuem para a reflexão sobre o processo mais geral de reconhecimento da cidadania LGBT na região. Apoiados em fontes documentais diversas - produções acadêmicas, documentos governamentais e notícias divulgadas em portais virtuais - Aragusuku e Lopes realizam uma leitura das iniciativas voltadas para a população LGBT no âmbito de políticas públicas no estado brasileiro de Mato Grosso entre os anos de 2007 e 2017, relacionando-as ao cenário político mais geral do estado e à atuação dos movimentos LGBT locais.

Já Galindo e colaboradoras apresentam as vivências de moradores da cidade de Tunja, na Colômbia, caracterizada pelo conservadorismo e onde tradicionalmente a igreja católica exerce especial controle. Considerado como “território tabu para a expressão da diversidade sexual”, a cidade de médio porte é cenário de tensão entre tradição e ruptura. Assim, através das vozes das pessoas entrevistadas são retratadas cenas de homofobia nos âmbitos público e familiar, mas que têm como contraponto narrativas de participação social e política da comunidade LGBT nos poucos espaços civis e de sociabilidade já constituídos.

As diferentes formas de “habitar a norma” (Butler, 1999, 2003) ou a convenção social relativa à masculinidade aparecem com especial ênfase em cinco dos artigos deste número. Etnografando “festas de orgia para homens” realizadas no Rio de Janeiro, a reflexão de Barreto dialoga com um rol de pesquisas que, nos últimos anos, têm lançado um olhar antropológico sobre a sexualidade e suas expressões consideradas abjetas (ver, entre outros, Díaz-Benítez, 2015; Pelúcio, 2009). O autor apresenta um contexto em que a homossexualidade surge como espécie de modulação da própria masculinidade. Aborda questões ligadas ao desejo, ao erotismo e à performance de uma virilidade que, representada na figura do “macho”, estabelece quem pode ou não participar daqueles espaços.

Voltando-se para a documentação referente a julgamentos militares, entre os anos 1960 e 1980, Fernandez explora simultaneamente as investidas no sentido de coibir a homossexualidade através de sua codificação como “delito contra el honor militar”, e as brechas regulamentares e conceituais pelas quais relações afetivo-sexuais entre homens perduravam e, em alguns contextos, até se justificavam.

Por seu lado, Navone analisa as representações sobre a masculinidade de homens com deficiência física, veiculadas por discursividades produzidas em torno do escritor Nick Vujicic e de Josito, conhecido ator pornô com deficiência física, além de outros materiais oriundos tanto de produções culturais quanto de saberes médicos. A discussão situa-se na interseção entre os estudos de gênero, a teoria queer, os estudos sobre deficiência (disability studies) e a teoria crip. O autor desenvolve uma crítica à produção de uma “pedagogia para a normalidade”, constituída tanto em relação aos sentidos acionados sobre o corpo com deficiência quanto à normatividade heterossexual masculina.

Em seu artigo, Passamani e Saggese abordam o documentário “Bailão”, de 2009, cujo foco é um tradicional espaço de sociabilidade masculina situado na cidade de São Paulo. A análise centra-se na interseção de homossexualidade masculina e geração, descrevendo as intensas transformações por que passou a experiência dos sujeitos que frequentaram o espaço ao longo das últimas décadas e que compõem o quadro mais amplo de transformações a partir do qual emerge uma gaycidade, como propõe o sociólogo argentino Ernesto Meccia (2011).

Finalmente, ainda na chave das convenções relativas à masculinidade, temos o instigante texto de Madi Dias, baseado em longo trabalho de campo entre o povo Guna do Panamá. Nele, o autor aborda a experiência ou a perspectiva das omeggids. Tratadas de modo pejorativo na literatura antropológica como “berdaches”, as pessoas two spirit como as omeggids gunas vêm provocando a reflexão (mais frequentemente a curiosidade) de viajantes e etnógrafos desde a “descoberta” do Novo Mundo. Mais do que insistir, como fizeram autores clássicos (Clastres, 1978), sobre o modo particular como a pretensa “homossexualidade” dessas pessoas encontra-se socialmente integrada nesses povos, Madi Dias lança um olhar renovado e profundamente implicado sobre essa experiência e, acionando as elaborações foucaultianas em torno da amizade e das teorias feministas em torno do cuidado, reconsidera a partir dela processos contemporâneos de cidadanização da diversidade sexual e de gênero.

Como dito no início deste editorial, parte importante deste número é dedicada às conexões entre gênero, sexualidade e saúde. A temática encontra-se no artigo de Ricardo Coitinho Filho, que etnografou redes de sociabilidade de jovens vivendo com HIV/AIDS no Rio de Janeiro. Os resultados de seu trabalho concentram-se na análise de um evento conhecido nessas redes como “encontro” e que circunscreve espaços de sociabilidade e acolhimento. Em diálogo com o aporte da antropologia das emoções, o autor analisa a dimensão política das gramáticas emocionais presentes em narrativas sobre o sofrimento.

Além do artigo de Coitinho Filho, este número de Sexualidade, Saúde e Sociedade divulga o primeiro de dois dossiês especiais sobre HIV/AIDS no Brasil previstos para o ano de 2018. A preparação de tais dossiês justifica-se pelo interesse de pesquisadores e pesquisadoras de diferentes disciplinas das ciências humanas e sociais - Saúde Coletiva, Sociologia, Antropologia, Psicologia Social - em revigorar os debates e as contribuições geradas desde uma perspectiva sociocultural sobre a epidemia. As práticas e as políticas de enfrentamento à aids na última década têm sido marcadas por mudanças no perfil epidemiológico, afetando particularmente jovens e “homens que fazem sexo com homens”, e pela aposta do governo brasileiro na abordagem baseada na chamada “prevenção combinada” (Brasil, 2017). Dita abordagem pressupõe o uso de insumos de cunho biomédico, como as profilaxias pré e pós-exposição, somado à articulação entre intervenções biomédicas, estruturais e comportamentais. A despeito dos avanços nas alternativas biomédicas de prevenção, é preciso reconhecer que estamos diante de uma conjuntura de enfraquecimento da resposta social à epidemia e de redução progressiva de espaços para vocalizar as questões de gênero e sexualidade que a atravessam.

O dossiê ora publicado decorre das discussões que tiveram lugar no Grupo de Trabalho “Articulações entre gênero, sexualidade e outras diferenças no cotidiano da prevenção de HIV/aids: olhares a partir de processos de mudança social”, organizado no âmbito do 11º Fazendo Gênero, que ocorreu na cidade de Florianópolis, entre 30 de julho a 4 de agosto de 2017. Os organizadores, Regina Facchini (Pagu/Unicamp), Thiago F. Pinheiro (Nepaids/USP) e Gabriela J. Calazans (Nepaids/USP), apresentam um conjunto de trabalhos cuja ênfase recai sobre a relação da epidemia com a produção de diferenças sociais, seja quanto à sua distribuição epidemiológica, seja quanto à construção discursiva da doença.

A ser publicado no próximo número da revista, o segundo dossiê é organizado por Monica Franch (UFPB), Ivia Maksud (Fiocruz), Felipe Rios (UFPE) e Claudia Mora (IMS/UERJ) e reunirá pesquisas debatidas no Grupo de Trabalho “DST/HIV/AIDS, Políticas e Subjetividades”, organizado no âmbito das edições de 2013 e 2016 do Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas em Saúde (Abrasco). Este segundo dossiê reúne pesquisas que abordam as interações sociais e sexuais que envolvem as pessoas vivendo e convivendo com o HIV/AIDS, e as percepções dos atores sociais sobre as novas tecnologias de testagem e prevenção.

Com o investimento editorial nestes dois dossiês temáticos, Sexualidade, Saúde e Sociedade almeja contribuir para delinear um panorama da quarta década da epidemia de HIV/aids, com foco nos desejos, nas identidades e nos ativismos no Brasil

Referências bibliográficas

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  • PELUCIO, Larissa. 2009. Abjeção e Desejo - uma etnografia travesti sobre o modelo preventivo de Aids 1. ed. São Paulo, SP: Editora Annablume.
  • ROSS, F. C., 2000. Bearing Witness: Women and the South Africa Truth and Reconciliation Commission Thesis of doctor Philosophy. University of Cape Town. Disponible en: https://open.uct.ac.za/handle/11427/361 [consultado el 10.06.18]
    » https://open.uct.ac.za/handle/11427/361

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2018
  • Data do Fascículo
    Ago 2018
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