Open-access Multimorbidade e utilização de serviços de saúde no município de São Paulo, Brasil: prevalência e fatores associados

Multimorbidity and utilization of health services in the city of São Paulo, Brazil: prevalence and associated factors

Resumo

O objetivo foi estimar a prevalência de multimorbidade no município de São Paulo e verificar os fatores associados à utilização de serviços de saúde. Estudo transversal de base populacional a partir do Inquérito de Saúde do Município de São Paulo (ISA-Capital 2015), em que foi realizada análise descritiva e foram elaborados modelos de regressão logística utilizando como desfecho a multimorbidade e variáveis independentes sociodemográficas, de condições de vida e utilização de serviços de saúde. Participaram 3.184 indivíduos com 20 anos ou mais, idade média de 43,8 anos. A prevalência de multimorbidade foi de 50,7% entre as mulheres, 62,5% entre os que relataram algum problema de saúde e 55,1% entre os que utilizaram serviços de saúde nas duas últimas semanas. Foi identificada maior prevalência nos indivíduos que usaram serviço de saúde por problema de saúde mental (66,1%) e que informaram maiores despesas com saúde no último mês (55,4%). A multimorbidade foi mais frequente com o envelhecimento, na população com nível econômico mais elevado, com pior autoavaliação de saúde, que utilizou serviços de saúde há seis meses ou menos, que relatou problema de saúde, que tinha plano de saúde e fazia uso da polifarmácia.

Palavras-chave: Multimorbidade; Acesso aos serviços de saúde; Inquéritos epidemiológicos; Polimedicação

Abstract

The scope of this paper was to estimate the prevalence of multimorbidity in the city of São Paulo and to verify the factors associated with the utilization of the health services. It involved a population based cross-sectional study based on data from the Health Survey in the city of São Paulo, in which descriptive analysis was conducted, and logistic regression models were developed using multimorbidity and sociodemographic independent variables, living conditions and use of health services as the outcome. A total of 3,184 individuals aged 20 years or older participated, with a mean age of 43.8 years. The prevalence of multimorbidity was 50.7% among women, 62.5% among those who reported some health problem and 55.1% among those who had recourse to health services in the last 2 weeks. A higher prevalence was identified among those who used the health service due to a mental health problem (66.1%), and in those who reported higher health expenditures in the preceding month (55.4%). Multimorbidity was more frequently associated with aging, in the population with a higher economic status, with worse self-rated health, who frequented health services for 6 months or less, who reported a health problem, or who had a health plan and opted for polypharmacy.

Key words: Multimorbidity; Accessibility of health services; Epidemiological surveys; Polypharmacy

Introdução

As transições demográfica e epidemiológica geraram mudanças no perfil etário da população, com o envelhecimento e o aumento da prevalência de doenças crônicas não transmissíveis (DCNT)1,2. Esse cenário tem impacto também no aumento da prevalência de multimorbidade2,3, que consiste na presença simultânea de uma doença crônica com no mínimo outra doença, seja crônica ou aguda, ou fator biopsicossocial ou de risco somático4. O termo multimorbidade foi utilizado como sinônimo de comorbidade, com foco em determinada doença índice em coexistência com uma ou mais doenças ou fatores de risco, podendo sofrer influência ou agravamento do quadro de saúde do indivíduo em função desses outros5. Atualmente, a definição de multimorbidade se concentra no indivíduo que convive com duas ou mais condições de saúde simultaneamente, sem priorizar a importância de uma ou outra doença, os efeitos e a cronologia de ocorrência6.

Esse enfoque busca deslocar o foco apenas do biológico ou de determinada doença para destacar a importância dos fatores psicossociais na modificação dos efeitos na saúde dos indivíduos, o que pode proporcionar uma oferta de cuidado mais adequado às necessidades dos indivíduos com fragilidade, incapacidade e diminuição da qualidade de vida7.

Revisões sistemáticas indicam que a prevalência de multimorbidade varia entre 12,9% e 95,1%, dependendo de fatores como faixa etária, número de condições de saúde incluídas, local e forma de coleta de dados3,8,9. No Brasil, estima-se a prevalência de multimorbidade entre 16,8% e 24,2% na população com 18 anos ou mais, chegando a 67,8% entre os idosos10,11. A multimorbidade tem sido considerada um dos principais desafios para os sistemas de saúde em todo o mundo, devido aos efeitos na saúde dos indivíduos, resultando em piores avaliações do estado de saúde, incapacidades e dificuldades na realização de atividades cotidianas. Com isso, novas demandas para os profissionais e os serviços de saúde são geradas, bem como o aumento dos custos para os sistemas de saúde1,12.

Apesar do volume de estudos1,7,9,11 sobre a prevalência de diferentes doenças isoladamente, ainda há necessidade de aprofundamento nas pesquisas sobre multimorbidade e a utilização de serviços de saúde. São escassos os inquéritos locais, especialmente em países de média e baixa renda. Nesses países, os resultados poderiam contribuir para eliminar barreiras no acesso aos serviços de saúde e promover a equidade e a melhoria da saúde, principalmente para grupos que demandam maior atenção à saúde de forma articulada9,13. Não há estimativas de prevalência de multimorbidade e da utilização de serviços de saúde específica para a cidade de São Paulo. O estudo mais próximo fornece dados sobre a região metropolitana de São Paulo, com foco em consultas relacionadas à saúde mental14. Assim, há uma lacuna de conhecimento sobre a prevalência da multimorbidade e o acesso aos serviços de saúde da população que convive com multimorbidade na cidade de São Paulo.

É essencial conhecer a prevalência de multimorbidade em megacidades como São Paulo, cidade mais populosa da América Latina, de maneira a possibilitar a análise da magnitude do problema para os indivíduos e para os sistemas de saúde. Além disso, pode-se identificar a população em risco, organizar a oferta de serviços e ações em saúde e planejar o fluxo na rede de atenção à saúde para atender as necessidades dos indivíduos com multimorbidade. A síndrome respiratória aguda grave do coronavírus 2 (SARS-CoV-2) reforçou essas necessidades, uma vez que indivíduos com condições crônicas apresentaram risco aumentado de desenvolverem formas clinicamente graves de COVID-1915. Nesse sentido, o objetivo foi estimar a prevalência de multimorbidade no município de São Paulo e verificar os fatores associados à utilização de serviços de saúde.

Métodos

Trata-se de um estudo transversal de base populacional em que foram utilizados dados da população com 20 anos ou mais, do Inquérito de Saúde do Município de São Paulo (ISA-Capital 2015), que analisou as condições de vida e saúde, assim como a utilização de serviços de saúde pela população urbana não institucionalizada na cidade de São Paulo.

No ISA-Capital de 2015 foram feitas 4.043 entrevistas com indivíduos com 12 anos ou mais residentes na área urbana da cidade. Considerando a baixa prevalência de multimorbidade em adolescentes9, optou-se por utilizar a amostra de pessoas acima de 20 anos ou mais de ambos os sexos no presente artigo.

A coleta de dados no ISA-Capital 2015 foi efetuada por entrevistadores treinados diretamente com os indivíduos sorteados, com o uso de microcomputadores de mão (tablets) com um aplicativo desenvolvido especialmente para o ISA-Capital. As coletas ocorreram no decorrer do ano de 2015, de maneira a compensar eventuais variações na ocupação dos imóveis durante aquele ano. Os domicílios foram visitados pelo menos três vezes em dias e horários diferentes e o trabalho dos entrevistadores foi avaliado de perto pelos supervisores de campo. Essa estratégia possibilitou a identificação precoce de problemas e a realização de ajustes no plano amostral. Para verificação de consistência, 10% das entrevistas de cada entrevistador foram parcialmente replicadas pelos supervisores de campo.

Os participantes foram informados sobre os objetivos do estudo e, após concordarem, assinavam o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Foi garantida a confidencialidade, com a consolidação dos dados de forma a impossibilitar a identificação dos sujeitos. O presente estudo seguiu as diretrizes e normas emanadas pela Resolução do Conselho Nacional de Saúde nº 466/2012 e o projeto foi aprovado sob o Parecer nº 4.031.352/2020.

Para este estudo, utilizou-se como variável dependente a presença de multimorbidade, considerada a partir do autorrelato de diagnóstico por médico de duas ou mais condições de saúde (1 - hipertensão arterial; 2 - diabetes; 3 - angina; 4 - infarto do miocárdio; 5 - arritmia cardíaca; 6 - outra doença do coração; 7 - câncer; 8 - artrite, reumatismo ou artrose; 9 - osteoporose; 10 - asma ou bronquite asmática; 11 - enfisema, bronquite crônica ou doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC); 12 - rinite; 13 - sinusite crônica; 14 - alguma outra doença do pulmão; 15 - tendinite, lesão por esforço repetitivo (LER) ou distúrbio osteomuscular relacionado ao trabalho (DORT); 16 - varizes de membros inferiores; 17 - acidente vascular cerebral (AVC); 18 - outra doença de veias, artérias ou circulação sanguínea; 19 - colesterol elevado; 20 - doença de coluna ou problema de coluna; 21 - problema emocional ou mental, como ansiedade, depressão, síndrome do pânico, transtorno obsessivo compulsivo (TOC), esquizofrenia ou algum outro; e 22 - outra doença crônica além das citadas anteriormente). Foi realizada a conferência dos dados e a codificação das morbidades por especialistas na Classificação Internacional de Doença e Problemas Relacionados à Saúde, na versão 10 (CID-10).

Para determinação do tamanho amostral, foram utilizadas metodologias baseadas em amostras probabilísticas por conglomerados em dois estágios: setores censitários e domicílios, com ponderação para compensar probabilidades diferentes de seleção. A amostra foi dividida em 20 domínios, utilizando critérios demográficos (idade e sexo) e geográficos (regionais de saúde). Foram sorteados 150 setores censitários e, a partir de uma lista com todos os imóveis existentes em cada setor, foram sorteados conjuntos de domicílios de tamanhos suficientes para atingir a quantidade de entrevistas previstas para cada um dos domínios. Nos domicílios sorteados, todos os indivíduos que atendessem ao domínio indicado foram convidados a participar da pesquisa. Foram feitas pelo menos três visitas a cada domicílio sorteado, para a obtenção de dados sobre os residentes e realização das entrevistas com os elegíveis. Para fins de inferência estatística, foi associado um peso amostral a cada um dos indivíduos, calculado considerando peso de delineamento, ajuste de não resposta e pós-estratificação. As informações detalhadas sobre o plano de amostragem do ISA-Capital 2015 podem ser obtidas na literatura16.

As variáveis independentes consideradas neste estudo foram: faixa etária (20 a 29, 30 a 39, 40 a 49, 50 a 59, 60 a 69 e 70 anos ou mais), sexo (feminino e masculino), raça/cor (branca, parda, preta e outra), situação conjugal (com parceiro e sem parceiro), escolaridade (ensino fundamental I (0 a 4 anos), ensino fundamental II (5 a 9 anos), ensino médio ou técnico, ensino superior incompleto, ensino superior completo e/ou pós-graduação), renda média familiar da menor para a maior (1º quartil, 2º quartil, 3º quartil e 4º quartil), autoavaliação do estado de saúde (muito boa/excelente, boa, regular e ruim/muito ruim), utilização de serviço de saúde pela última vez (há menos de 15 dias, entre 15 dias e 1 mês, mais de 1 mês a 3 meses, mais de 3 meses a 6 meses, mais de 6 meses a 1 ano e mais de 1 ano), motivo de utilização de serviço de saúde na última vez (doença/problema de saúde, lesão, problema de saúde mental, consulta de rotina e outro motivo), problema de saúde nas últimas duas semanas (não e sim), hospitalizações nos últimos 12 meses (não e sim), visita de agente comunitário de saúde da estratégia de saúde da família (não e sim), utilização de serviços da estratégia de saúde da família (não e sim), tem ou já teve plano de saúde (não; sim, teve; e sim, já teve), despesas com saúde no último mês (zero ou nenhum gasto, 1ª metade dos gastos positivos, referente aos gastos abaixo da mediana amostral calculada considerando apenas os valores maiores do que zero; e segunda metade dos gastos positivos, com os gastos acima da mediana) e a utilização de cinco ou mais medicamentos ou polifarmácia (não e sim).

Para a análise de dados, foram obtidas frequências absolutas, porcentagens ponderadas, estimativas de prevalência e intervalos de confiança (95%) e utilizados os modelos de regressão de Poisson com variância robusta por meio do programa R. Essas análises foram executadas considerando-se a presença do peso amostral e os aspectos relacionados ao desenho complexo da amostra. As razões de prevalência (RP) foram estimadas por meio de modelos de regressão de Poisson. Inicialmente, foram elaborados modelos considerando e presença de multimorbidade para cada variável independente do estudo. Na sequência, foram selecionadas todas as variáveis independentes que apresentaram significância (p < 0,20) em pelo menos uma de suas categorias. A próxima etapa consistiu na retirada das variáveis com maior p-valor, uma a uma, pelo método stepwise backward, até restar no modelo final apenas variáveis com p < 0,05. O nível de significância adotado foi de 5%.

Resultados

Considerando os indivíduos com 20 anos ou mais de ambos os sexos, foram incluídos na amostra 3.184 participantes. A idade média foi de 43,8 anos (IC95%: 43,0-44,7) (dados não mostrados em tabela). Um terço da amostra (33,3%) relatou não apresentar nenhuma das condições incluídas no estudo. Enquanto 24,5% relataram o diagnóstico de apenas uma condição, e 42,2%, duas ou mais condições ou multimorbidade. Entre as mulheres, a prevalência de multimorbidade foi de 50,7%, e, entre os homens, 32,3%. As características da amostra do estudo, bem como as prevalências e as razões de prevalência brutas e ajustadas, que permaneceram no modelo final ajustadas pelas demais variáveis do modelo, são apresentadas na Tabela 1.

Tabela 1
Características sociodemográficas e de utilização de serviços de saúde, prevalência e razões de prevalência bruta e ajustada de multimorbidade no município de São Paulo, ISA-Capital, São Paulo, 2015.

A prevalência de multimorbidade entre os que relataram algum problema de saúde nas duas semanas anteriores à entrevista foi de 62,5% (IC95%: 58,0-66,9) e de 55,1% (IC95%: 50,4-59,6) entre os que utilizaram serviços de saúde no mesmo período. A maior prevalência de multimorbidade (66,1% (IC95%: 48,0-80,5)) foi identificada entre os que informaram um problema de saúde mental como motivo para a utilização de serviço de saúde. Entre os que informaram que não tiveram despesas com saúde no último mês, a prevalência de multimorbidade foi de 28,4% (IC95%: 25,5-31,6). Já entre os que apresentaram maiores gastos a prevalência foi de 55,4% (IC95%: 51,3-59,5), conforme mostra a Tabela 1.

Foram associadas à multimorbidade, no modelo final, as seguintes variáveis: idade avançada, maior renda, piores autoavaliações do estado de saúde, uso do serviço de saúde há seis meses ou menos, problema de saúde nas últimas duas semanas, quando um problema de saúde mental foi o motivo para procurar o serviço de saúde, ter plano de saúde, ter apresentado gasto com saúde no último mês e o uso de cinco ou mais medicamentos (Tabela 1).

Discussão

Por meio desse inquérito de base populacional periódico na megacidade de São Paulo, foi estimada uma prevalência de multimorbidade de 42,2% entre os indivíduos de 20 anos ou mais. Essa estimativa é superior a estudos nacionais, que estimaram a prevalência entre 16,8% e 24,2% na população10,11. A prevalência foi maior entre as mulheres e entre aqueles com idade avançada, semelhante a outros estudos que têm reconhecido o sexo feminino e o envelhecimento como variáveis determinantes de multimorbidade8,9,17-19.

Neste estudo foram identificadas maiores prevalências de multimorbidade entre as pessoas com maior renda familiar, assim como os resultados de pesquisa em países com renda média20. No entanto, estudos sobre multimorbidade realizados em países de renda elevada indicam que são as condições socioeconômicas desfavoráveis que estão associadas a uma maior prevalência de multimorbidade9. Em São Paulo, provavelmente, isso pode ter ocorrido em função do maior acesso a consultas médicas, por meio de planos de saúde ou desembolso direto, que permitiram o diagnóstico das condições de saúde. Corroborando essa suposição, as prevalências entre as pessoas que tinham ou já tiveram plano de saúde também foram 21% e 34% maiores, respectivamente.

Em contrapartida, as prevalências de multimorbidade foram menores à medida que aumentou o intervalo de tempo de procura por serviços de saúde públicos ou privados pela última vez, com significância estatística a partir dos seis meses. A prevalência também foi maior naqueles que apresentaram algum problema de saúde nas duas semanas anteriores à coleta de dados. Apesar de não haver consenso na definição de utilização frequente de serviços de saúde21, os estudos apontam para prevalências maiores de utilização de serviços entre as pessoas que convivem com multimorbidade e, entre essas, ocorre o aumento do uso de serviços à medida que se acrescenta uma nova condição de saúde9,19. O presente estudo não confirma essas informações, uma vez que não foi identificada associação da multimorbidade com as variáveis visita do agente comunitário de saúde, utilização de serviços na Estratégia de Saúde da Família (ESF) e hospitalizações.

Em relação ao motivo para utilização de serviço de saúde, foi identificada prevalência maior de multimorbidade entre aqueles que buscaram o serviço por um problema de saúde mental. Um painel de especialistas apontou a saúde mental entre os três fatores mais importantes a serem levados em consideração em estudos sobre a multimorbidade22. Com a fragmentação do cuidado entre os diferentes especialistas, os pacientes com doenças mentais ou emocionais estão mais susceptíveis a tratamentos insuficientes para uma de suas condições de saúde e a erros médicos23,24.

Os resultados também mostraram associação entre a multimorbidade e as despesas com saúde, similar à preocupação em outros países quanto aos impactos gerados pela necessidade de desembolsar recursos financeiros próprios para se ter acesso às ações e aos serviços de saúde, especialmente quando se trata da população mais vulnerável19,20. Essa constatação seria válida inclusive para os denominados gastos catastróficos em saúde, que são aqueles que consomem um percentual considerável da renda das famílias25. Em relação a esses gastos, foi identificado no Estudo Longitudinal da Saúde dos Idosos Brasileiros que 17,9% e 7,5% dos idosos com multimorbidade tiveram despesas com saúde iguais ou que excederam 10% e 25% da renda do domicílio, respectivamente. Entre os itens, os medicamentos foram os que mais pesaram, com proporção de 65,1%25. No presente estudo, a prevalência de multimorbidade também foi maior entre os que utilizavam cinco ou mais medicamentos (polifarmácia). Apesar da garantia de acesso a uma ampla lista de medicamentos no sistema universal de saúde do país, são recorrentes os relatos de indisponibilidade de determinados medicamentos na rede pública de saúde e a dificuldade de adquiri-los, em função dos custos2,20. Mesmo entre aqueles que têm planos de saúde ou utilizam, predominantemente, o desembolso direto para consultas e exames, é comum recorrer ao SUS para ter acesso aos medicamentos25. Além disso, para os indivíduos com multimorbidade, há problemas como baixa adesão aos medicamentos e o aumento do risco de efeitos adversos. Muitos pacientes com múltiplas condições de saúde recebem assistência de diferentes profissionais, o que pode levar ao desenvolvimento de multimorbidade por iatrogenia9.

Quanto ao autorrelato do estado de saúde, considerando como referência as pessoas que referiram o estado de saúde excelente, a prevalência de multimorbidade foi 32% maior naqueles que declararam estado de saúde bom, 88% maior nas que referiram como regular e 132% nas que relataram o estado de saúde como ruim ou muito ruim. Esses achados são consistentes com a literatura, que aponta forte associação entre a quantidade de doenças e o relato de pior estado de saúde, e deste com a utilização de serviços de saúde26.

O estudo apresenta limitações, que incluem a utilização de dados autorreferenciados e a exclusão de indivíduos que vivem em instituições de longa permanência ou hospitais, o que pode subestimar a prevalência de multimorbidade. Há ainda a desvantagem de atribuir peso igual a todas as condições de saúde, mesmo com diferenças de gravidade, duração e impacto na vida dos indivíduos. No entanto, essas abordagens são amplamente utilizadas em outras pesquisas27.

As características dos desenhos de estudos sobre multimorbidade apresentam heterogeneidade, em função de aspectos como o próprio conceito de multimorbidade, número e tipo de condições incluídas, local e forma de coleta de dados e métodos de análise7,17,28,29. Buscou-se atender às recomendações de revisões sistemáticas, de maneira a possibilitar a validade e a comparabilidade com outros estudos. Por exemplo, utilizou-se a definição de multimorbidade como a presença de duas ou mais condições a partir de uma lista extensa com mais de 22 condições.

Estudos que incluem a abordagem domiciliar, como o ISA-Capital e a Pesquisa Nacional de Saúde, apresentam vantagens, como a possibilidade de obter dados não apenas dos indivíduos que foram atendidos nos serviços de saúde, mas daqueles que procuraram os serviços e não conseguiram atendimento, e ainda sobre os que sequer procuraram os serviços. Ao estimar a prevalência de multimorbidade e os aspectos da utilização dos serviços de saúde, o estudo permitiu o preenchimento de lacunas não registradas rotineiramente nos sistemas de informações em saúde ou em outras pesquisas para a população. Além disso, deve-se destacar que a pesquisa foi executada na maior cidade da América Latina e uma das mais populosas do mundo, com amplas desigualdades internas no acesso aos planos de saúde e na utilização de serviços de saúde pela população.

Embora o Sistema Único de Saúde deva garantir o direito à saúde nas suas políticas e ações, a organização do sistema é marcada por oportunidades desiguais de acesso e utilização dos serviços de saúde. Isso ocorre mesmo em uma megacidade como São Paulo, que concentra os principais centros e profissionais de saúde no país. Esse fato torna-se especialmente problemático para os indivíduos que vivem com multimorbidade e necessitam de atenção coordenada de diferentes profissionais, atuando de forma interdisciplinar, e de um olhar diferenciado dos sistemas de assistência social e em saúde para aprimorar sua qualidade de vida30. Tais fatos fazem com que a atenção aos indivíduos que convivem com multimorbidade seja apontada como um dos principais desafios para os sistemas de saúde no mundo2,9.

O conceito de multimorbidade é relativamente recente e ainda não está incorporado na rotina de profissionais e nos serviços de saúde. O conhecimento da prevalência de indivíduos que convivem com um quadro de multimorbidade e a identificação dos fatores associados podem contribuir para um melhor entendimento das condições clínicas de diferentes combinações de doenças e favorecer a condução dos tratamentos nos indivíduos. No entanto, além do cuidado individual, é importante considerar o envelhecimento significativo da população brasileira, que estará mais susceptível a viver com multimorbidade2,9,27. Nesse cenário, torna-se fundamental que uma megacidade, como São Paulo, rompa com o modelo de assistência fragmentada, permitindo reorganizar o sistema de saúde no município com foco na promoção da saúde e na prevenção de doenças, coordenado pela atenção primária à saúde, que permita fornecer cuidados mais abrangentes e centrados na pessoa e em consonância com o preceito da equidade.

Referências

  • 1 Fortin M, Stewart M, Poitras ME, Almirall J, Maddocks H. A systematic review of prevalence studies on multimorbidity: toward a more uniform methodology. Ann Fam Med 2012; 10(2):142-151.
  • 2 World Health Organization (WHO). Multimorbidity: technical series on safer primary care [Internet]. 2016. [cited 2023 jun 11]. Available from: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/252275/9789241511650-eng.pdf?sequence=1
    » https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/252275/9789241511650-eng.pdf?sequence=1
  • 3 Nicholson K, Almirall J, Fortin M. The measurement of multimorbidity. Health Psychol 2019; 38(9):783-790.
  • 4 Prazeres F, Santiago LM, Simões JA. Defining multimorbidity: from English to Portuguese using a Delphi Technique. Biomed Res Int 2015; 1:1-4.
  • 5 Porta M, editor. A Dictionary of Epidemiology (DRAFT) [Internet]. 2014. [cited 2023 jun 11]. Available from: http://www.oxfordreference.com/view/10.1093/acref/9780199976720.001.0001/acref-9780199976720
    » http://www.oxfordreference.com/view/10.1093/acref/9780199976720.001.0001/acref-9780199976720
  • 6 Radner H, Yoshida K, Smolen JS, Solomon DH. Multimorbidity and rheumatic conditions - enhancing the concept of comorbidity. Nat Rev Rheumatol 2014; 10(4):252-256.
  • 7 Johnston MC, Crilly M, Black C, Prescott GJ, Mercer SW. Defining and measuring multimorbidity: a systematic review of systematic reviews. Eur J Public Health 2019; 29(1):182-189.
  • 8 Violan C, Foguet-Boreu Q, Flores-Mateo G, Salisbury C, Blom J, Freitag M, Glynn L, Muth C, Valderas JM. Prevalence, determinants and patterns of multimorbidity in primary care: a systematic review of observational studies. PLoS One 2014; 9(7):3-11.
  • 9 Skou ST, Mair FS, Fortin M, Guthrie B, Nunes BP, Miranda JJ, Boyd CM, Pati S, Mtenga S, Smith SM. Multimorbidity. Nat Rev Dis Primers 2022; 8(1):48.
  • 10 Rzewuska M, de Azevedo-Marques JM, Coxon D, Zanetti ML, Zanetti ACG, Franco LJ, Santos JL. Epidemiology of multimorbidity within the Brazilian adult general population: Evidence from the 2013 National Health Survey (PNS 2013). PLoS One 2017; 12(2):e0171813.
  • 11 Carvalho JN, Roncalli AG, Cancela MC, Souza DLB. Prevalence of multimorbidity in the Brazilian adult population according to socioeconomic and demographic characteristics. PLoS One 2017; 12(4):e0174322.
  • 12 Koné Pefoyo AJ, Bronskill SE, Gruneir A, Calzavara A, Thavorn K, Petrosyan Y, Maxwell CJ, Bai Y, Wodchis WP. The increasing burden and complexity of multimorbidity. BMC Public Health 2015; 15(1):415.
  • 13 Busse R, Van Ginneken E, Wörz M. Access to health care services within and between countries of the European Union. In: European Observatory on Health System and Policies, editor. Cross-border health care in the European Union. London: WHO; 2011. p. 47-90.
  • 14 Wang YP, Nunes BP, Coêlho BM, Santana GL, do Nascimento CF, Viana MC, Benseñor IM, Andrade LH, Chiavegatto Filho ADP. Multilevel analysis of the patterns of physical-mental multimorbidity in general population of São Paulo metropolitan area, Brazil. Sci Rep 2019; 9(1):2390.
  • 15 Nunes BP, Souza ASS, Nogueira J, Andrade FB, Thumé E, Teixeira DSC, Lima-Costa MF, Facchini LA, Batista SR. Multimorbidade e população em risco para COVID-19 grave no Estudo Longitudinal da Saúde dos Idosos Brasileiros. Cad Saude Publica 2020; 36(12):e00129620.
  • 16 Alves MCGP, Escuder MML, Goldbaum M, Barros MBA, Fisberg RM, Cesar CLG. Plano de amostragem em inquéritos de saúde, município de São Paulo, 2015. Rev Saude Publica 2018; 52:52-81.
  • 17 Holzer BM, Siebenhuener K, Bopp M, Minder CE. Evidence-based design recommendations for prevalence studies on multimorbidity: improving comparability of estimates. Popul Health Metr 2017; 15(1):9.
  • 18 Palladino R, Pennino F, Finbarr M, Millett C, Triassi M. Multimorbidity and health outcomes in older adults in ten European health systems, 2006-15. Health Aff 2019; 38(4):613-623.
  • 19 Pati S, Agrawal S, Swain S, Lee JT, Vellakkal S, Hussain MA, Millett C. Non communicable disease multimorbidity and associated health care utilization and expenditures in India: cross-sectional study. BMC Health Serv Res 2014; 14(1):451.
  • 20 Lee JT, Hamid F, Pati S, Atun R, Millett C. Impact of noncommunicable disease multimorbidity on healthcare utilisation and out-of-pocket expenditures in middle-income countries: Cross sectional analysis. PLoS One 2015; 10(7): e0127199.
  • 21 Mbuya-Bienge C, Simard M, Gaulin M, Candas B, Sirois C. Does socio-economic status influence the effect of multimorbidity on the frequent use of ambulatory care services in a universal healthcare system? A population-based cohort study. BMC Health Serv Res 2021; 21(1):202.
  • 22 Smith SM, Wallace E, Salisbury C, Sasseville M, Bayliss E, Fortin M. A core outcome set for multimorbidity research (COSmm). Ann Fam Med 2018; 16(2):132-138.
  • 23 Barnett K, Mercer SW, Norbury M, Watt G, Wyke S, Guthrie B. Epidemiology of multimorbidity and implications for health care, research, and medical education: a cross-sectional study. Lancet 2012; 380(9836):37-43.
  • 24 Xu X, Mishra GD, Jones M. Evidence on multimorbidity from definition to intervention: An overview of systematic reviews. Ageing Res Rev 2017; 37:53-68.
  • 25 Bernardes GM, Saulo H, Fernandez RN, Lima-Costa MF, Andrade FB. Gastos catastróficos em saúde e multimorbidade entre adultos mais velhos no Brasil. Rev Saude Publica 2020; 54:125.
  • 26 Perruccio AV, Katz JN, Losina E. Health burden in chronic disease: multimorbidity is associated with self-rated health more than medical comorbidity alone. J Clin Epidemiol 2012; 65(1):100-106.
  • 27 Ho ISS, Azcoaga-Lorenzo A, Akbari A, Black C, Davies J, Hodgins P, Khunti K, Kadam U, Lyons RA, McCowan C, Mercer S, Nirantharakumar K, Guthrie B. Examining variation in the measurement of multimorbidity in research: a systematic review of 566 studies. Lancet Public Health 2021; 6(8):e587-e597.
  • 28 Prados-Torres A, Calderón-Larrañaga A, Hancco-Saavedra J, Poblador-Plou B, van den Akker M. Multimorbidity patterns: a systematic review. J Clin Epidemiol 2014; 67(3):254-266.
  • 29 Simões D, Araújo FA, Severo M, Monjardino T, Cruz I, Carmona L, Lucas R. Patterns and consequences of multimorbidity in the general population: there is no chronic disease management without rheumatic disease management. Arthritis Care Res (Hoboken) 2017; 69(1):12-20.
  • 30 Goodman RA, Posner SF, Huang ES, Parekh AK, Koh HK. Defining and measuring chronic conditions: Imperatives for research, policy, program, and practice. Prev Chronic Dis 2013; 10:E66.
  • Editores-chefes:
    Maria Cecília de Souza Minayo, Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    Set 2024

Histórico

  • Recebido
    20 Set 2022
  • Aceito
    21 Ago 2023
  • Publicado
    23 Ago 2023
location_on
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Av. Brasil, 4036 - sala 700 Manguinhos, 21040-361 Rio de Janeiro RJ - Brazil, Tel.: +55 21 3882-9153 / 3882-9151 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cienciasaudecoletiva@fiocruz.br
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Acessibilidade / Reportar erro