Open-access Ativismo digital sobre paternidade gay no Instagram: a homoparentalidade masculina em cena

Resumo

No Brasil contemporâneo tem sido expressivo tanto o número de homens-pais assumindo o cuidado de seus filhos e filhas, quanto das iniciativas de produção de conteúdo sobre paternidades no Instagram. Este artigo visa analisar as concepções que sustentam o ativismo digital da homoparentalidade no Instagram, a partir dos estudos de gênero com homens. Para tal, realizou-se um estudo qualitativo em ambiência digital, utilizando o método das narrativas de vida. Os resultados foram analisados e divididos nas seguintes seções: projeto de parentalidade; experiência pessoal de paternidade; articulação de agenda política LGBT; quando a paternidade vira um “negócio”; e haters, críticas e reações negativas. Conclui-se que a reflexão sobre a própria experiência de paternidade/masculinidade, atravessada pelo marcador social da diferença orientação sexual e o ativismo por direitos que sustentam a produção de conteúdo. Assim, ressalta-se a singularidade de cada paternidade, pois o fato de ser gay constrói a experiência de paternidade particular para cada homem. Apesar das iniciativas expostas, mudanças ainda são incipientes, visto que o ativismo por direitos coexiste com o avanço de forças conservadoras, que limitam as expressões das alteridades sexuais e de gênero.

Palavras-chave: Paternidade; Masculinidade; Homossexualidade Masculina; Ativismo Político; Mídias Sociais

Abstract

In contemporary Brazil, the number of male fathers taking care of their sons and daughters and the initiatives to produce content about fatherhood on Instagram have been significant. This article aims to analyze the concepts that support the digital activism of homoparenting on Instagram, based on gender studies with men. To this end, a qualitative study was conducted using the life narrative method in a digital environment. The results were analyzed and divided into the following sections: parenting project, personal experience of fatherhood, articulation with LGBT political agenda when parenthood becomes a “business”, and haters, criticism, and adverse reactions. It was concluded that the reflection on the experience of fatherhood/masculinity itself is crossed by the social marker of the difference in sexual orientation and the activism for rights that sustain content production. Thus, the uniqueness of each fatherhood is highlighted since the fact of being gay constructs the fatherhood experience for each man. Despite the initiatives brought forth in this study, changes are still in progress, as rights activism coexists with the advancement of conservative forces, which limit the expressions of sexual and gender otherness.

Key words: Paternity; Masculinity; Homosexuality Male; Political Activism; Social Media

Introdução

Na sociedade contemporânea, embora cada vez mais homens assumam funções de cuidado de seus filhos e filhas, as mulheres ainda são as protagonistas do trabalho do cuidado1. No Brasil, apesar de o papel de provedor da família ser ainda presente, observa-se que uma parcela de homens tem escolhido enfrentar o desafio que toda mudança impõe, ao exercer atitudes mais equitativas de gênero, revelando que os pais podem e devem ser estimulados a realizar o trabalho do cuidado2.

No tocante a políticas públicas, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (PNAISH), criada em 2009, tem como dois dos eixos principais que dialogam com a questão da parentalidade: o de “Saúde Sexual e Reprodutiva” e o de “Paternidade e Cuidado”. No documento “Guia do Pré-Natal do Parceiro para Profissionais de Saúde”, destaca-se a necessidade de pensar na diversidade de arranjos familiares, na articulação da paternidade com cor/raça, orientação sexual e identidade de gênero3. Embora o planejamento reprodutivo e as ações em saúde, relacionadas ao período da gestação, parto e puerpério contemplem as mulheres, com enfoque no binômio mãe-criança, há um movimento crescente que defende que os homens podem e devem ser implicados integralmente no que se refere à tomada de decisão reprodutiva, desde a escolha de ser pai à participação solidária na gestação, no parto e no cuidado das crianças3. Contudo, existem desafios como a ampliação da licença paternidade de cinco dias, que somente pode chegar a vinte dias para trabalhadores de empresas cidadãs4.

Observa-se que a presença de homens-pais é crescente nas mídias digitais, espaço em que iniciativas de produção de conteúdo sobre paternidades e cuidado têm sido expressivas e diversas, com perfis que abordam experiências de paternidades socialmente marcadas como a homoparentalidade, as paternidades negras ou as atípicas5. E, embora a paternidade ainda seja vista socialmente como uma prerrogativa de homens heterossexuais, é crescente a visibilidade da paternidade de homens gays e homens trans que enfrentam os desafios de serem reconhecidos nesse papel em uma sociedade com mandatos culturais cisheteronormativos6.

É necessário recordar que a relevância dada à família nuclear formada por pai, mãe e filhos, e à filiação baseada no casal heterossexual é uma produção histórica. A naturalização desse modelo de família produz a crença de que a criança só pode ter um pai e uma mãe que encerrem na mesma pessoa o biológico, o parentesco, a filiação e os cuidados de criação. Refletir sobre as diferenças, considerando uma perspectiva interseccional7, pode auxiliar na compreensão de como e porque diversos grupos subalternizados - homens-pais pretos, homossexuais, transexuais - têm reivindicado atenção diferenciada a suas demandas identitárias de acesso a direitos e garantia de cidadania8.

Nesse sentido, observa-se o crescente uso de mídias como o Instagram como um lócus de ativismo político, em que pautas como os arranjos possíveis para a concretização de um projeto de paternidade e suas experiências singulares, bem como os desafios sociais enfrentados e pistas para a promoção do cuidado de crianças entre casais de homens são compartilhadas. Portanto, esse artigo, de forma inédita, visa analisar as concepções que sustentam o ativismo digital da homoparentalidade no Instagram, a partir dos estudos de gênero com homens.

Ativismo digital e paternidades: uma realidade contemporânea

Vivemos em uma realidade onde não cabe mais separações entre o real e o virtual, on-line ou off-line; supor desse modo dicotômico é permanecer “vivendo no século XX”9. Fala-se sobre uma era do pós-digital, em que tudo está conectado e interligado, não havendo, dessa maneira, mais fronteiras que impossibilitem a interação entre diferentes sociedades.

Vivenciamos um período em que todos somos atores em potencial da ação política digital, bastando apenas que nos identifiquemos com uma causa. A ação política não compete mais aos grandes centros regionais, tampouco são centralizadas, visto que qualquer cidadão pode fazer suas reivindicações9. Dessa maneira, o ativismo digital possui a capacidade de agregar, convocar as massas, atuar nas ruas e tem um caráter complementar ao ativismo presencial, além de possibilitar a congregação de diferentes frentes de luta simultaneamente, numa transversalidade de interesses e pautas, permitindo a conectividade de uma rede de agendas10.

O acesso a informações que anteriormente não tinham espaço para circular nas mídias dominantes possibilita a elevação e qualificação do debate político, além de permitir o trânsito de expressões identitárias, modos de vivenciar a sexualidade e a corporalidade distintos de padrões morais já estabelecidos, propondo outras agendas micro e macropolíticas em saúde, em que pessoas, grupos, algoritmos se articulam em uma trama complexa10. Dessa forma, temos uma conjuntura social, cultural e tecnológica que favorece a participação dos sujeitos. Participar passa a estar associado a mostrar-se, a romper com a dicotomia entre público e privado11. De modo geral, esse é o contexto que sustenta o surgimento de novos perfis profissionais como o de blogueiro e, posteriormente, o de influenciador digital12.

Influenciador digital é um termo extensivamente disseminado pela mídia e presente nas discussões cotidianas, indicando também a existência de enunciados em circulação, embora notoriamente dispersos. Sendo assim, cada uma dessas transformações, retrata práticas e dinâmicas, mudanças no mercado em que os influenciadores estão inseridos. Além disso, representa o capital social de suas relações e o poder de influência sobre a mídia tradicional12.

No caso específico da paternidade, há redes nacionais e internacionais que fomentam discussões sobre masculinidade, paternidades e cuidado13,14. Essas redes enfatizam que a paternidade, assim como a maternidade, é uma construção social que acompanha o caráter fluido de diversas posições identitárias articuladas a marcadores sociais da diferença como idade, cor/raça, orientação sexual, identidade de gênero, dentre outras.

Embora se reconheça a diversidade de masculinidades, como postula Connell15, o modelo da masculinidade hegemônica, ou seja, a do homem branco, heterossexual, viril, de camada média, provedor da família, ainda grassa no imaginário social, e os homens que escapam desse modelo têm sua masculinidade subalternizada. De igual maneira, a concepção de paternidade vigente ainda diz respeito ao marco da heterossexualidade e pais não heterossexuais, em muitos casos, têm sua paternidade invisibilizada, sob suspeição de não saberem cuidar, de possíveis transtornos às crianças ou ainda de pedofilia16. Nesse sentido, essas posições masculinas em relação à paternidade se expressam também nos ativismos digitais presentes nas mídias sociais.

Percursos metodológicos

O presente artigo é um recorte de uma pesquisa mais ampla de mestrado em Saúde Coletiva. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, de abordagem socioantropológica em ambiente digital, com homens-pais que produzem conteúdo digital sobre paternidade no Instagram, visando compreender as concepções de paternidade e cuidado que sustentam a criação de conteúdo, a partir de suas experiências e o desejo e desafios de serem ativistas em relação a esse tema.

O método escolhido foi o da narrativa de vida, posto que o seu intuito é estudar um fragmento particular da realidade sócio-histórica, com uma exploração do campo, sendo realizadas entrevistas individuais e/ou em dupla. O critério de inclusão na pesquisa foi ser homem, pai - biológico ou não -, com 18 anos ou mais, produtor de conteúdo sobre paternidade na mídia social Instagram. A seleção dos participantes se deu pelas produções de conteúdo que discutissem paternidades, a partir dos marcadores sociais de orientação sexual, cor/raça e deficiência. A pesquisa contou com a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da instituição, com CAAE no 52206221.9.0000.5269.

Os interlocutores foram contactados por mensagem privada às suas contas no Instagram e aceitaram prontamente participar da pesquisa. Um dos perfis era administrado pelos dois pais, tendo optado por participarem juntos da entrevista. As entrevistas foram realizadas a partir das seguintes questões disparadoras: me conta um pouco sobre sua história de paternidade? Como surgiu a ideia de criar um perfil no Instagram sobre paternidade? Que dificuldades você enfrenta por ser um homem gay e como você lidava com elas antes e depois da paternidade? Buscou-se atentar-se para questões acerca da organização da rotina de trabalho, o público-alvo do perfil, e a relação com esse público e a produção de conteúdo. Com base em Bertaux17, procedeu-se a eleição de subcategorias à luz da análise comparativa das entrevistas, apresentadas na próxima seção.

O trabalho de produção de dados ocorreu entre 2021 e 2022. As entrevistas foram realizadas pela plataforma Google Meet de maneira individual ou em dupla. Nenhum dos participantes solicitou anonimato de sua identificação. Todas as entrevistas foram gravadas em áudio e transcritas na íntegra para posterior análise. Para esse artigo, partimos das reflexões sobre dois perfis públicos criados por homens-pais que produzem conteúdo sobre homoparentalidade, são eles: @papai_e_papia (André) e @2depais (Gustavo e Robert). André, de 46 anos, um filho de 12 e uma filha de 11 anos, e Gustavo e Robert, de 31 e 29 anos, um filho e uma filha com 29 semanas de gestação, à época.

Discussão

A partir da análise das entrevistas, foram elencadas as seguintes categorias: projeto de parentalidade; dificuldades enfrentadas por ser um homem gay; experiência pessoal de paternidade; articulação com a agenda política LGBT; a paternidade como “negócio” e haters, críticas e reações negativas.

Projeto de parentalidade

Existem diversas formas de alcançar a parentalidade e a análise da literatura revela que a escolha do método é diretamente influenciada pelo contexto social e legislações vigentes nos países em que os casais vivem. No Brasil, gays e lésbicas podem ter filhos através da adoção, de relações heterossexuais, de técnicas de reprodução assistida e em acordos coparentais18. Para os interlocutores deste artigo, o desejo de ter filho(s) estava vinculado ao exercício conjunto da parentalidade, resultando na adoção e na fertilização in vitro (FIV) como os métodos escolhidos.

A paternidade emerge como um desejo, marcado pelo peso da responsabilidade e com uma visão de cuidado para além do provimento financeiro; vale a pena destacar que tornar-se pai é visto como um processo a ser vivido e adquirido ao longo da experiência de paternagem. André conta que “sempre quis ter filhos... meu companheiro também sempre quis ter filhos...”.

Sobre o início do processo de adoção vivido por André e seu companheiro, ele recorda que não eram casados na época, por isso foi preciso escolher quem daria entrada no processo:

Foi em junho de 2010, nós demos entrada ao processo de adoção [...] o STF não havia declarado a legalidade do casamento homossexual, então nós tínhamos aquele documento de união estável, mas aquilo não serve como certidão de casamento, é um contrato de convivência mútua, que posso fazer entre mim e você [...] nós entramos com nome do meu companheiro, por diversos motivos, entre eles, a questão de renda.

André expressa que o reconhecimento social da paternidade se revela na capacidade de prover financeiramente, corroborando um dos mandatos da masculinidade hegemônica15 que cabe aos homens a responsabilidade financeira da família. Em se tratando de um casal gay, isso ainda é mais valorizado como uma prerrogativa positiva para a adoção.

Entretanto, com a aprovação da resolução nº 175/2013 do Conselho Nacional de Justiça19, que obriga os cartórios a celebrarem o casamento civil homoafetivo no Brasil, André e o parceiro se casam e logo em seguida, o último é habilitado no processo de adoção. André conta que:

No meio do processo todo, a gente acabou fazendo amizade com a assistente social do Fórum, que nos apresentou ao juiz e a gente acabou não precisando ratificar o processo todo. Porque como nós já éramos casados, o juiz aceitou, então ele emitiu a guarda definitiva das crianças no nome dos dois, mesmo que o processo inicial tenha sido só no nome do meu marido, no final a emissão da guarda definitiva foi em nome dos dois.

Em relação as restrições na ficha de adoção, André afirma que:

Colocaram uma única restrição, que era algo que tanto para mim, quanto para meu marido, nós não sabemos lidar com isso... que era se tivesse uma criança com HIV positivo, tá? [...] Eu não sei se eu teria estrutura emocional para lidar com isso e não para lidar com a doença [...] eu não ia saber lidar bem com a situação do meu filho ter o vírus, que iria causar a ele sofrimento, preconceito.

Devido ao desconhecimento da realidade de criação de uma criança ou adolescente com deficiência ou com alguma doença, o preconceito existe até mesmo vindo dos pretendentes à adoção20. Embora a lei atual assegure que as necessidades das crianças devam ser priorizadas em desfavor às dos adultos, as adoções são definidas pelos desejos e expectativas dos adotantes - que solicitam bebês com determinadas características almejadas (saudáveis, brancos, recém-nascidos, entre outras). Ao passo que, crianças mais velhas permanecem institucionalizadas, sem perspectiva de voltarem para suas famílias de origem ou de irem para famílias substitutas, por possuírem características pouco valorizadas - negras, maiores de dois anos, com deficiências ou problemas de saúde ou que formam grupos de irmãos21.

André faz uma comparação, a nível emocional, entre o processo de adoção e a gestação. Para André, ambos passam por um processo gradativo de reconhecimento e empolgação. Ele relata que:

Por motivos óbvios, qualquer casal, seja ele heterossexual, homossexual ou homem sozinho ou uma mulher sozinha, quando adota, não vai passar, obviamente pelos processos fisiológicos da gravidez, mas todos os demais... a ansiedade, você passa pelo processo de ansiedade, de medo, de felicidade [...] todos aqueles processos que a mulher tem...

Durante sua analogia, André apresenta a ideia de que o sentimento de maternidade começa antes para a mulher do que para o homem, por ela viver essa experiência corporalmente. Acredita que um dos motivos para o abandono paterno seja essa diferença entre as experiências, já que ser pai é um processo “mais lento” e que se fortalece após o nascimento da criança. Se para alguns homens a paternidade é assustadora por conta da responsabilidade, para outros ela é vivenciada como um processo e marca importante da sua masculinidade, como aponta Connell15:

Conforme [a barriga] vai crescendo e o bebê vai mexendo, você é inundado com aquela sensação de tem um filho... para a mulher né, o homem não tem tanto disso... talvez esse seja... seja o fator muito importante... causador de tanto... desculpa a palavra... de tanto babaca abandonando mulher com filho no colo, porque [...] a mulher, ela se torna mãe, quando ela engravida... o sentimento de pai, muitas vezes, nem depois que a criança nasce.

André segue com sua comparação, afirmando que independentemente da orientação sexual do casal ou pessoa adotante:

O processo de adoção é equiparável, mental e psicologicamente e emocionalmente, ao processo biológico [...] quando você tá entrando com a documentação, é o equivalente ao da mulher que descobriu que tá grávida... quando você é chamado para a primeira entrevista com a psicóloga, é os três meses da barriguinha parecendo... E aí, a barriga começa a aparecer, e aí então, depois da primeira entrevista, você começa a ficar ansioso.

Já o projeto de paternidade de Gustavo e Robert foi concretizado como desejavam. Segundo eles, era um sonho construído por influência da heteronormatividade e da ideia de filiação biológica. Gustavo afirma que:

A gente criou o nosso próprio sonho [...] a gente ficava naquele momento, imaginando como seria um bebê que fosse a mistura de nós dois, se isso fosse possível, né? Eu acho que bem por uma influência da heteronormatividade mesmo né? Aquele sonho de ter um bebê com a genética do pai e da mãe, a gente tentava encaixar na nossa vida.

A resolução do Conselho Federal de Medicina nº 2.294, de 27 de maio de 202122, atualizou as regras para a utilização das técnicas de reprodução assistida no Brasil. Dentre as mudanças, destaca-se o conhecimento da identidade entre doadores e receptores, em caráter de exceção, na doação de gametas para parentesco de até 4º (quarto) grau, de um dos receptores (primeiro grau - pais/filhos; segundo grau - avós/irmãos; terceiro grau - tios/sobrinhos; quarto grau - primos), desde que não incorra em consanguinidade.

Foi a partir dessa modificação, que o casal pode realizar o projeto de paternidade como idealizado. A doação de óvulo foi feita pela irmã de Gustavo e a concessão temporária do útero foi de sua prima, sem caráter lucrativo e tendo em vista que a cedente deveria ter ao menos um filho vivo e pertencer à família de um dos parceiros em parentesco consanguíneo até o quarto grau. A fecundação foi feita com espermatozoide de Robert.

Dificuldades enfrentadas por ser um homem gay

A parentalidade desempenhada no terreno de configurações familiares, formadas por pessoas do mesmo sexo, tem sido nomeada de homoparentalidade. O termo emergiu no contexto francês, no final do século XX, referindo-se ao desejo de uma pessoa de orientação homossexual ser ou ter a intenção de ser pai ou mãe de uma criança23. Ao refletir sobre as dificuldades enfrentadas por ser um homem gay, André expõe:

A sociedade heterossexual tem esse preconceito com o homem gay muito enraizado no machismo estrutural e esse machismo não com a figura do homem gay, é com a figura da mulher. A sociedade heterossexual ela olha o homem gay como querendo ser mulher. Eu não quero ser mulher. [...].

A equivalência, apontada por André, na subordinação de mulheres e de homens gays é complexa. Certamente, ser um homem gay coloca sua masculinidade numa posição de subalternidade15, embora, como aponta Connell, homens gays com uma expressão de gênero reconhecida como masculina (“very straight gays”) podem usufruir dos privilégios da masculinidade hegemônica. Contudo, a noção do homossexual como “feminino” ou como uma expressão de desvio da masculinidade hegemônica permanece presente.

Mas é preciso ressaltar que a desigualdade de gênero é uma questão que afeta cotidianamente mulheres e meninas em todo o mundo e que ainda precisa ser enfrentada24:

O homem heterossexual tem dessa “porque se o homem [heterossexual], tiver amigo gay o homem vai dar em cima de mim!”. Uma masculinidade muito frágil... quando o homem que se torna pai, ele é provado duplamente: primeiro ele tem que provar que ele é tão homem quanto um homem heterossexual e segundo ele precisa provar que ele é tão pai quanto o pai heterossexual. Porque o homem gay, na cabeça do conservador, o gay quer ter um filho para abusar dessa criança!

Para uma parcela de homens heterossexuais, na convivência entre eles e homens homossexuais há a impressão de uma “demarcação de posições”. Essa demarcação tem o intuito de defendê-los de possíveis questionamentos sobre a sua masculinidade. A masculinidade - compreendida como identidade construída, reconhecida socialmente e que encontra o seu ideal de diferenciação no modelo hegemônico - é experimentada com suporte da homofobia como dispositivo regulador e de vigilância da masculinidade heterossexual15,25.

É muito comum você reconhecer esse discurso que eles têm sobre adoção homoafetiva, um paralelo com a pedofilia. [...] a maior porcentagem de estupros de crianças... de meninas, né, acontece dentro do seio familiar biológico, da família tradicional e normalmente é pai, tio ou padrinho que estupra essa menina ou esse menino. Nenhum deles é gay [...] então, quando o homem (gay) adota uma criança, ele precisa provar duplamente que ele é homem o suficiente para adotar uma criança e que ele é tão bom quanto qualquer outro pai.

A construção do pânico moral da pedofilia, a partir do enfoque de gênero, toma a figura do “abusador sexual”, de modo geral, relacionada aos homens. Quando a figura do “abusado” é “menino” o que se destaca não é uma interseção de vulnerabilidades (como no caso das “meninas”) e sim, uma justaposição de perversidades, posto que o entendimento dessa relação é atravessado, ao mesmo tempo, pelas concepções de homossexualidade e pedofilia15,26. Isso dissemina uma ideia que correlaciona a homossexualidade masculina com a pedofilia, apoiando-se na noção de “contágio”, convertendo-se em uma tática de reestigmatização e repatologização da homossexualidade26.

Além do receio de que a ausência dos dois sexos seja capaz de causar transtornos ao desenvolvimento psicológico das crianças, outras fantasias habitam o imaginário social, como perigo de abuso sexual e a definição da orientação homossexual da criança em razão da influência dos pais27. Ademais, um debate a respeito do direito de se submeter as crianças a mais preconceitos, posto que a sociedade ainda encara como anormal uma unidade familiar formada por um casal de pessoas do mesmo sexo.

Gustavo aponta que:

Eu vim de uma família cristã conservadora, bolsonarista de direita, então foi difícil crescer no meio que eles. Existia toda essa questão religiosa, esse peso religioso na minha vida como um todo assim, até chegar num ponto de empoderamento de eu falar “não a religião não vai mais dominar a minha vida e eu vou seguir a minha identidade” [...] então houve essas questões: escola, família, religião e vida profissional.

O cenário de reorganização conservadora em nível nacional trouxe efeitos para as experiências de sexualidade e famílias dissidentes do modelo heterossexual. Nos últimos vinte anos, importantes mudanças ocorreram no modo como a sociedade brasileira convive com as “sexualidades dissidentes”, especialmente a partir do avanço dos movimentos de lésbicas, gays, bissexuais, trasvestis, e homens e mulheres transexuais na cena contemporânea. Contudo, a abertura do poder público para as pautas LGBT move-se para um estreitamento cada vez maior nos dias atuais, sobretudo pelo antagonismo de setores conservadores da política brasileira, com ênfase nos grupos e lideranças do conservadorismo cristão, que conquistaram ainda mais espaço político depois do fortalecimento da crise política e econômica28.

Além disso, Robert aponta o bullying na escola e a permanência no emprego como outras dificuldades enfrentadas por ser um homem gay. Ele afirma que seu ambiente de trabalho era:

Muito homofóbico, eu tinha que trabalhar sem ninguém saber da minha sexualidade, porque muitas pessoas achavam que eu era casado com uma mulher, então, eu tinha que mentir no meu trabalho, entendeu?

Experiência pessoal de paternidade

Apesar de compartilhar sua experiência como homem-pai-gay, André afirma que a criação de seu conteúdo não tem um público-alvo:

Qualquer pessoa que se encontrar no momento de dúvida, de incerteza sobre ser pai ou ser mãe, dúvida sobre adoção ou que se identifique com o meu conteúdo, eu acolho e dou boas-vindas para que esse seja o meu público. Se você me pedir para mapear quem me segue hoje, via de regra são mulheres... ali entre os seus 18 e 35 [anos], sabe? A maioria. Mas a parcela masculina é muito pouca.

André refere que, mesmo que ele não faça um direcionamento específico ao público feminino, esse público é o que mais acessa as publicações acerca de sua experiência de paternidade e sobre adoção. Esse dado sugere uma dificuldade no engajamento de homens sobre as discussões em relação à paternidade e ao planejamento reprodutivo. A inclusão dos homens no debate sobre direitos reprodutivos tem ocorrido de forma muito incipiente quando em comparação ao que houve com as mulheres29.

Articulação com a agenda política LGBT

A pluralidade de pautas e a articulação de diversas agendas é destaque em todas as narrativas. Além da discussão sobre paternidade, também estão presentes nas redes sociais dos interlocutores pautas da agenda antiLGBTIfóbica.

Em relação ao perfil administrado por André, ele acredita que houve a inclusão de outros objetivos:

Compartilhar o nosso dia a dia, esse continua sendo o intuito principal... e em meio a isso, em meio a compartilhar esse dia a dia, eu pensei “por que não compartilhar informação útil também?”. Quando você compartilha sua história com alguém, é muito mais do que simplesmente a informação... informação por informação você entra no site e você consegue né? Você vai nos canais oficiais e as informações burocráticas você consegue. [...] quando eu compartilho nossa história com outro casal homossexual, o que eles estão vendo em mim é que é possível, entende?

Para André, as publicações feitas no perfil também são na intenção de ser um porta-voz de pessoas LGBT que têm medo de se manifestar, ao afirmar que:

Se eu posso dar voz para alguma coisa, eu dou essa voz, sabe? Eu já passei por inúmeras situações de preconceito, mas eu sempre me defendi, eu sempre tive como me defender... se eu faço isso [conteúdo um pouco mais polêmico], primeiro é porque eu estou seguro de mim o suficiente para fazer isso e tem quem não é...

Gustavo e Robet defendem que um dos objetivos de seu trabalho cumpre:

...uma função social muito forte em pessoas assim [...] pessoas muito jovens que estão no armário e querem sair do armário, querem se empoderar, querem descobrir que podem ser felizes ou ainda estão nesse momento de “meu Deus, será que eu posso ser feliz?”

O casal refere que outro objetivo de criar o perfil no Instagram foi:

Trocar experiências com pessoas que já passaram por esse processo. Então a gente gostaria de saber como que é na hora que esses pais gays levam os filhos à escola pela primeira vez, se os meninos sofrem alguma coisa de preconceito. Como é que é o crescimento? Como é que é área de alimentar?

A paternidade como “negócio”

A estrutura conectiva das mídias sociais favorece a circulação de informação, ao mesmo tempo que promove um redimensionamento dos repertórios políticos com o estabelecimento de uma visibilidade mediada e de uma fantasia de participação que tensiona ativistas e conduzem por repertórios mercadológicos e neoliberais via engajamento, empoderamento e protagonismos individuais30.

Após a criação do perfil @papai_e_papia, com o decorrer do tempo, surgiram algumas propostas inesperadas, como cita André:

Várias pessoas começaram a descobrir a gente... de querer que a gente participe de alguma live, de algum podcast, alguma coisa parecida e o intuito nunca foi de promoção... sempre foi de mostrar a nossa família, como ela é e acabou que tá começando a virar algo que a gente não esperava... começaram a aparecer por exemplo, Nexcare, a Sunglass. Algumas empresas começaram a nos olharem como potenciais parceiros.

Gustavo e Robert dedicam uma grande carga horária ao Instagram, isso porque produzem:

Dois IGTV, dois reels, TikTok por dia [...] duas horas pra fazer cada um [...] o Robert passa vinte e quatro horas por dia respondendo. Porque são milhares de mensagens [...] a gente recebe um volume enorme de mensagem das pessoas se abrindo, contando coisas tão íntimas da vida delas. Alegrias, frustrações, projetos futuros da vida deles, entendeu? Pedindo conselhos [...] dar um conselho, tentar orientar, porque esse é o objetivo do perfil no final.

É possível notar que o alcance dos influenciadores digitais tem aumentado à medida que se compartilha conteúdo na web. Atualmente, eles são grandes expositores de marcas e produtos, como também propulsores eficazes de vendas. A visibilidade concedida pelas plataformas sociais, somada à produção de conteúdo para seguidores instigados pela experimentação, transforma essas personalidades em canal de marketing31.

Os líderes de opinião adquirem um novo sentido por intermédio da propagação de produtos, ideias e comportamentos em ambiente on-line. As pessoas tendem a estarem mais atentas e confiantes às informações provenientes de contatos pessoais do que às informações enviadas através de mensagens vindas diretamente de empresas32. Os setores de marketing das organizações juntamente com as agências de publicidade estão investindo em maneiras de influenciar as recomendações entre pessoas, incluindo seus produtos e serviços dentro desse contexto.

Devido seu potencial de disseminar discussões e influenciar decisões, eles começam a ser patrocinados por empresas e marcas para criar publicidades em seus conteúdos, se profissionalizando como “influenciadores digitais”. Em princípio, qualquer pessoa com acesso às plataformas digitais é capaz de criar conteúdo na internet e, porventura, tornar-se um influenciador. Contudo, muitos daqueles que alcançam visibilidade têm mais recursos financeiros e reiteram padrões culturais e estéticos hegemônicos33.

Haters, críticas e reações negativas

Gustavo e Robert incitam um debate sobre direitos reprodutivos de pessoas não heterossexuais, ao compartilhar as perguntas que ouviram:

“Por que que não adotaram? Tanta criança precisando de adoção, por que que vocês não adotaram?”. Eles não sabem nem dos bastidores que a gente já tentou passar pela adoção e é o que a gente sempre fala. Casais LGBT não têm a obrigatoriedade da adoção. Quem fizer é mais uma forma de se alcançar a paternidade. Mas não é uma obrigação. Então, cada pessoa tem a sua escolha do jeito que quer se tornar pai, mãe.

Em países anglo-saxões, a filosofia individualista parece ter consagrado a noção do desejo de cada um. A liberdade de escolha, não muito diferente do direito de consumo, vem a ser a medida básica da moralidade34. Logo, pessoas não apenas escolhem quando e como vão ser pais, como também “encomendam” o tipo de filho que desejam ou “negociam” para obter o melhor modelo possível, sem indagar as implicações éticas e políticas dos métodos utilizados para concretizar sua vontade. É uma discussão ampla que escapa ao escopo do objetivo desse texto.

É incontestável que a parentalidade é um assunto político que extrapola as fronteiras de conflitos interpessoais e evoca a reflexão da coletividade. Em virtude de sua visibilidade, ela nos auxilia a evidenciar temas que requerem debate e implicações que se expandem para além da família gay ou lésbica. Enfim, auxilia na exposição das atuais formas familiares como “co-produções” que compreendem tanto valores culturais, quanto lei, tecnologia e dinheiro. Portanto, o parentesco se torna uma questão política e cultural15,34.

Conclusão

A partir dos resultados encontrados, pode-se depreender duas direções que sustentam a criação de conteúdo sobre paternidade nos perfis dos homens entrevistados. A primeira é a reflexão sobre a própria experiência de paternidade/masculinidade, atravessada pelo fato de serem gays. A segunda trata do ativismo por direitos, posto que os conteúdos produzidos pelos interlocutores representam a amplificação de vozes/discursos sobre paternidades, atravessadas por questões LGBT.

Ao mesmo tempo, o ativismo permite que os homens-pais mobilizem estratégias de resistência e enfrentamento a processos de exclusão, produzindo e articulando diálogos com essa agenda que é anterior à agenda da paternidade. Isso não acontece sem conflitos, tensões e disputas, com a presença de haters, críticas e tentativas de cancelamento, revelando-se a complexidade política no ativismo digital contemporâneo.

Referências

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Editado por

  • Editores-chefes:
    Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    Abr 2024

Histórico

  • Recebido
    21 Nov 2023
  • Aceito
    15 Dez 2023
  • Publicado
    18 Dez 2023
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