DEBATEDORES DISCUSSANTS
Interface da ciência e tecnologia com a área de saúde
Science and technology for the health area
Wanderley de Souza
Secretário de Estado de Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro. wsouza@bio.ufrj.br
No artigo "A pesquisa em saúde e os objetivos do milênio: desafios e oportunidades globais, soluções e políticas nacionais", Carlos Morel apresenta um conjunto de tópicos relevantes e sempre atuais. Uma discussão dessa natureza é extremamente oportuna no momento em que se inicia o trabalho de uma nova equipe governamental, comprometida com a necessidade de mudanças. Ressalto ainda que cabe ao Ministério de Ciência e Tecnologia comandar a implantação de dois novos fundos setoriais, os de Saúde e Biotecnologia, com vinculação estreita com os tópicos abordados. Aproveito esta oportunidade para externar minha opinião sobre alguns temas que julgo relevantes para a presente discussão.
Na introdução de seu artigo, Morel se refere ao Relatório sobre a Saúde do Mundo em 2004, da Organização Mundial de Saúde, relacionando uma série de requisitos considerados importantes para o desenvolvimento econômico e social. Entre esses requisitos, inclui-se o item educação, que considero a base fundamental para que os outros tenham sucesso. Não há exemplo de países que alcançaram pleno êxito, com um desenvolvimento econômico e social sustentável, sem que houvesse significativo investimento em todos os diferentes níveis da educação. É impossível pensarmos em um desenvolvimento científico e tecnológico sem que as escolas técnicas, as universidades, os centros de pesquisa e os centros tecnológicos não gozem de excelente infra-estrutura e equipe de alto nível com acesso permanente às novas informações.
Um segundo tópico que me parece relevante se refere a uma indagação sempre presente para aqueles que têm a responsabilidade de tomar decisões sobre áreas a serem priorizadas. Que áreas são prioritárias para a ciência brasileira no campo da saúde? Inicialmente, Morel enfatiza o fato de que a pesquisa mundial em saúde está centralizada nas doenças mais gerais e que afetam a maior parte das populações que vivem em países desenvolvidos. Aqui, mais do que nunca, prevalece a lógica do mercado. As grandes indústrias farmacêuticas preferem investir no desenvolvimento de drogas que atuem em doenças como a hipertensão arterial, diabetes, câncer, doenças degenerativas do sistema nervoso, etc. Há por trás de tudo a garantia de um mercado consumidor que pode pagar o custo crescente desses novos medicamentos. Como ressaltado menos de 10% dos recursos para a pesquisa em saúde se destinam às doenças ou condições responsáveis por 90% da carga global de doenças.
Coloco-me entre aqueles que acham que a comunidade científica brasileira deve desenvolver pesquisas de elevado nível em todas as áreas do conhecimento. Justamente por isso, defendo a existência dos programas de apoio a pesquisas por demanda espontânea, uma tradição do CNPq e das Fundações de Amparo à Pesquisa existentes nos estados. É a única forma de mantermos a condição de estarmos aptos a entender os avanços da biologia moderna nas mais diferentes áreas e estarmos em sintonia com o mundo. Tal posição, no entanto, não entra em choque com a convicção de que temos de priorizar determinadas áreas e nelas concentrar a maior parte dos recursos disponíveis.
Não tenho dúvida em afirmar que, na definição de uma matriz para a priorização da pesquisa em saúde no Brasil, deve ser dada atenção especial a uma série de doenças causadas por agentes infecciosos e parasitários que afetam parte significativa da população brasileira. Não exclusivamente, mas sobretudo os que vivem em áreas menos desenvolvidas. Nesse contexto, vejo que houve retrocesso nas políticas de C&T em saúde na última década. Um programa de elevado êxito, como o Programa Integrado de Doenças Endêmicas (PIDE), responsável pela eliminação quase que completa da transmissão vetorial da doença de Chagas, não teve continuidade. Na realidade, o programa foi extinto no momento em que doenças como a leishmaniose e a malária aumentavam seus níveis de incidência, tornando-se sérios problemas de saúde pública, muitas vezes nas periferias de grandes cidades. Os estudos sobre os protozoários, fungos e vírus que afetam animais nas nossas florestas vêm sendo relegados a um segundo plano, mesmo sabendo-se que muitos destes se adaptam ao homem com certa freqüência, trazendo à tona as chamadas doenças emergentes. A falta de atenção é tão grande que o recente programa dos Institutos do Millenium não apoiou nenhum projeto nessa área. É importante ressaltar que os agentes infecciosos não se concentram apenas nas regiões menos habitadas do país. Um bom exemplo é o dengue, que vem de forma crescente infectando milhares de habitantes de cidades de grande porte, como é o caso do Rio de Janeiro. Qual a resposta do sistema nacional de C&T em saúde a estes problemas? É fundamental que haja estreita sintonia entre o Ministério da Saúde e o Ministério da Ciência e Tecnologia na abordagem desses problemas.
Algumas experiências brasileiras mostraram que é possível utilizar um modelo biológico brasileiro para transformar a nossa ciência. Cito inicialmente a idéia de Carlos Chagas Filho de organizar uma instituição científica tomando como base um modelo biológico que pudesse ser analisado de forma multidisciplinar. Assim, tendo como modelo o peixe elétrico ou poraquê da Amazônia, o Electrophorus electricus, nasceu o que é hoje o Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, uma das mais importantes instituições brasileiras de pesquisa na área biomédica. Mais importante ainda, junto com a nova instituição, era introduzida no país uma série de importantes técnicas como a eletroforese, cromatografia, cultura de tecidos, microscopia eletrônica, eletrofisiologia, uso de substâncias radioativas, etc., bases da biologia moderna. Nesse mesmo contexto, e agora diretamente ligado ao tema em discussão, cito a experiência realizada no final da década de 1970 e ao longo da de 1980, de estimular o uso de tripanossomatídeos como modelo biológico para o estudo da doença de Chagas. Podemos afirmar que a moderna biologia molecular brasileira é conseqüência direta do PIDE, já referido acima. Estas experiências de sucesso devem estar na base de futuras reflexões sobre a política de C&T em saúde nos próximos anos.
Finalmente, gostaria de destacar a necessidade de intensificarmos os estudos relacionados com a produção, transporte e preservação de alimentos. Certamente a ciência brasileira está pronta para dar contribuições importantes nesta área, como aliás já demonstrou ao ampliar a produção de grãos no cerrado brasileiro partindo de experiências básicas com bactérias fixadoras de nitrogênio.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
05 Jun 2007 -
Data do Fascículo
Jun 2004