Open-access Estrutura de pensamento social de agentes comunitárias de saúde sobre violência doméstica contra a mulher

Resumo

Este estudo objetivou descrever a estrutura representacional de agentes comunitários de saúde sobre violência doméstica contra a mulher. Pesquisa quanti-qualitativa fundamentada na Teoria das Representações Sociais na abordagem estrutural. Participaram 107 agentes comunitárias de saúde vinculadas a 18 Unidades de Saúde da Família de um município do interior da Bahia, Brasil, durante os meses de maio a agosto de 2019. A coleta de dados ocorreu por meio das técnicas de evocações livres e de centralidade: choix-par-bloc, constituição de pares de palavras e mise-en-cause. Para a análise dos dados, utilizou-se o software EVOC (Ensemble de Programmes Permettant I’analyse des Evocations), análise de similitude e análise do mise-en-cause. A estrutura representacional das profissionais se organiza a partir dos elementos centrais desrespeito e tristeza, que atribuem à representação sentidos negativos relativos a seus posicionamentos e suas repercussões. Conclui-se que a organização do pensamento social das agentes comunitárias sobre o fenômeno apresenta uma dimensão atitudinal e afetiva que fortalece a elaboração de estratégias de enfrentamento a situação de violência contra mulheres, agressores e comunidade.

Palavras-chave: Violência contra a mulher; Violência doméstica; Gênero e saúde; Agentes comunitários de saúde; Estratégia Saúde da Família

Abstract

This study aimed at describing community health agents’ representational structure on domestic violence against women. A quantitative-qualitative research study based on the Theory of Social Representations in its structural approach and carried out in a municipality from inland Bahia, Brazil. The community health agents participated through free evocation and centrality techniques: choix-par-bloc, constitution of word pairs and mise-en-cause, from May to August 2019. Data analysis was carried out by means of the EVOC software (Ensemble of Programs Permettant I’analyse des Evocations), similarity analysis and mise-en-cause analysis. These professionals’ representational structure is organized from the central elements of disrespect and sadness, which attribute negative meanings to the representation regarding their positions and repercussions; the other elements integrate specific information to the structure of the representations, justifying them. It is concluded that the understanding regarding organization of the community agents’ social thinking about the phenomenon allows its problematization, as well as the elaboration of prevention and coping strategies for women in situations of violence, the aggressors and the community.

Key words: Violence against women; Domestic violence; Gender and health; Community health agents; Family Health Strategy

Introdução

A violência doméstica contra a mulher (VDCM) vem despertando interesse tanto de ordem pública quanto científica por configurar um problema de magnitude que atinge as famílias e a sociedade de forma multifatorial. Trata-se de um fenômeno com raízes histórico-culturais, permeado por crenças, tradições e valores que fundamentam sua interpretação e enfrentamento inclusive na área da saúde1.

A construção social marcada pelas desigualdades entre homens e mulheres naturalizou o poder, a força, a figura do homem e a dominação à mulher2. A relação assimétrica de poder torna-se um fator propulsor da violência por reforçar o modelo dominante de masculinidade que minimiza a mulher à ideia de passividade e vitimização3.

Nesse cenário, a VDCM constitui uma forma de violência direcionada à mulher, praticada em sua maioria por parceiro íntimo3. A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que, em todo o mundo, uma a cada três mulheres já sofreram violência física e/ou sexual em algum momento de sua vida4.

Pesquisa realizada pelo Instituto DataSenado sobre a VDCM no Brasil apontou que em 2019 o percentual de mulheres que sofreram algum tipo de violência correspondeu a 27% das entrevistadas, sendo que os responsáveis pelas agressões relatadas são companheiros e ex-companheiros em 37% dos casos5.

Os serviços de saúde fazem parte do primeiro contato das mulheres em situação de violência e devem apresentar abordagem ética, segura e respeitosa, com implementação de ações de busquem minimizar as consequências do agravo6. Considerando que a Estratégia Saúde da Família (ESF) conta com profissionais que vivenciam as necessidades da comunidade e mantém o vínculo, acredita-se ser uma grande aliada na identificação, prevenção e enfrentamento da VDCM7.

Entre os profissionais que fazem parte da equipe de saúde da família, o agente comunitário de saúde (ACS) apresenta a possibilidade de conhecer a dinâmica familiar e criar vínculos, sendo atores fundamentais no enfrentamento de situações de VDCM8. Estudo realizado no município de São Paulo mostrou que há uma invisibilidade da VDCM na atenção primária à saúde (APS) e apontou que os ACSs são os profissionais que primeiro identificam os casos de VDCM no território, e que a partir disso compartilham a situação com a equipe9.

Nesse contexto, as representações que os profissionais de saúde apresentam sobre a VDCM podem influenciar o direcionamento de suas condutas10. As representações sociais (RS) constituem um conjunto de conceitos, afirmações e explicações das interações cotidianas, e devem ser consideradas como uma teoria do senso comum, pois não são criadas isoladamente, são compartilhadas e, uma vez criadas, adquirem vida própria e transformam a realidade11.

Acredita-se que descrever a estrutura do pensamento social de ACSs sobre a VDCM traz um aprimoramento do conhecimento por possibilitar compreender como estão alicerçadas as suas representações, ideias, imagens, valores e experiências, que se relacionam entre si e que influenciam o planejamento de ações e a forma de propor práticas sociais de enfrentamento sobre o agravo.

Dessa forma, o presente estudo teve como objetivo descrever a estrutura representacional de agentes comunitários de saúde sobre a violência doméstica contra a mulher.

Métodos

Trata-se de um estudo descritivo e exploratório de natureza quanti-qualitativa com suporte teórico e metodológico da Teoria das Representações Sociais, com enfoque na sua abordagem estrutural ou Teoria do Núcleo Central (TNC)12. A TNC propõe que as RS são um duplo sistema formado pelo núcleo central, que define, organiza e dá sentido aos elementos da representação, e pelo sistema periférico, que compreende as representações de natureza condicional, tem caráter mais flexível, prático e constitui um conteúdo essencial da representação12,13.

O cenário do estudo foi composto por 18 Unidades de Saúde da Família (USFs) da zona urbana do município de Jequié, Bahia, Brasil. Utilizou-se como critério de inclusão unidades da zona urbana, com equipes dupla ou única e com equipes completas segundo a Política Nacional da Atenção Básica14 no período da coleta de dados.

As participantes da pesquisa foram as ACSs das referidas USFs. A seleção das participantes foi realizada por conveniência, por meio de contato por telefone com a enfermeira supervisora, quando foi solicitado um encontro com todas as ACSs de cada uma das equipes da ESF, para que a pesquisadora pudesse convidá-las a participar do estudo.

A primeira etapa ocorreu no mês de maio de 2019, em sala disponibilizada em cada USF. Participaram 107 ACSs que concordaram e assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido. Os dados foram coletados pela pesquisadora de forma individual. Assim, as participantes responderam ao formulário contendo aspectos sociodemográficos (idade, sexo, estado civil, renda familiar, entre outros) e ao questionário da técnica de evocações livres. Trata-se de um teste projetivo/associativo e busca acessar a organização e estrutura internas da representação15. Foi solicitado que as participantes evocassem cinco palavras ou expressões que viessem à sua mente após ouvir o termo indutor “violência doméstica contra a mulher”.

Como critério de inclusão, a ACS deveria estar em atividade funcional e ter mais de seis meses de atuação na USF, e como critério de exclusão, as ACSs que estivessem de férias, licença prêmio ou tratamento de saúde. Os dados foram coletados no período de maio a agosto de 2019 em duas etapas.

Para análise das evocações, utilizou-se o software EVOC (Ensemble de Programmes Permettant I’analyse des Evocations) - versão 2005, que possibilita efetuar análise prototípica a partir da organização dos termos evocados em função da frequência e ordem de evocação; o cruzamento desses dois critérios produz o quadro de quatro casas13,16.

O quadro corresponde a quatro quadrantes que organizam os termos da seguinte forma: no quadrante superior esquerdo está o provável núcleo central da RS, são os termos mais significativos para os sujeitos, uma vez que apresentam uma alta frequência e o menor rang (ordem média de evocação). As palavras localizadas no quadrante superior direito constituem a primeira periferia (possuem alta frequência e rang também elevado), enquanto o quadrante inferior direito representa a segunda periferia, palavras com baixa frequência e alto rang. No quadrante inferior esquerdo estão os elementos de contraste, que apresentam baixa frequência e baixo rang13,16.

Na segunda etapa da coleta de dados, que ocorreu de junho a agosto de 2019, solicitou-se ao mesmo grupo de ACSs que contribuiu na primeira etapa que participasse de outras técnicas de coleta de dados. Neste segundo momento, 60 ACSs colaboraram.

De acordo com a TNC, existem métodos de identificação dos elementos que pertencem efetivamente ao núcleo central, e estes devem conduzir a uma apreensão final mais consistente da estrutura da representação, que é tão necessária quanto a apreensão do conteúdo das RS13. Nessa etapa da pesquisa, utilizaram-se os testes para confirmação de centralidade dos elementos e a ligação entre eles: o choix-par-bloc, a constituição de pares de palavras e o mise-en-cause. Esses testes foram planejados a partir do resultado anterior, ou seja, as palavras foram organizadas a partir da análise prototípica, para que os candidatos ao núcleo central fossem testados.

O choix-par-bloc, ou escolha sucessiva por blocos, permite uma abordagem quantitativa para os elementos da representação. Com sua utilização, evidenciam-se as relações de similitude no interior da representação, bem como aquelas de antagonismo ou exclusão, permitindo comparar a importância relativa de certos elementos13. Assim, elaborou-se uma lista com os 15 elementos do quadro de quatro casas relacionados ao termo indutor “violência doméstica contra a mulher” e solicitou-se que as participantes escolhessem as cinco palavras que mais caracterizavam o objeto, as cinco que menos o caracterizavam, anotando também as cinco palavras restantes.

A constituição de pares de palavras consiste na identificação da propriedade quantitativa do elemento central por meio de sua conexidade. O método requer solicitar ao sujeito que constitua, a partir de um corpus (neste caso as evocações sobre VDCM), um conjunto de pares de palavras que parecem “ir juntas”13.

O mise-en-cause, ou técnica do questionamento, é um método qualitativo de verificação da centralidade do núcleo central por meio da saliência dos itens constituintes do objeto de representação13. Dessa forma, parte-se do pressuposto de que os elementos centrais de uma representação são inegociáveis, ou seja, através de uma pergunta negativa, tendo como resposta sim, não e talvez; toda vez que, sem a presença de um dos cognemas, os sujeitos considerarem o objeto irreconhecível, é porque este cognema é central17. Assim, foi apresentado o questionamento: pode existir VDCM sem agressão física? E assim sucessivamente com as palavras desrespeito, xingamento, falta de amor, tristeza, abuso sexual, covardia, maus-tratos e raiva.

A análise dos dados dos testes de centralidade ocorreu em três momentos. No primeiro realizou-se a análise do choix-par-bloc, ou teste de escolha sucessiva por blocos: para cada cognema, pontuou-se o valor, que variou de +1 a -1, sendo +1 para as palavras do bloco mais característico, -1 é para o menos característico e 0 para o restante. Para cada grupo, calculou-se o destaque médio de cada item, somando o total de valores conferido pela soma das relações entre dois elementos e dividindo-o pelo número de indivíduos, encontrando-se o índice de distância13,18. A operação é executada para cada par de cognemas e permite desenvolver a “matriz de similitude”, e o resultado é disposto na árvore máxima de similitude13. Os dados da constituição de pares de palavras foram analisados por meio da técnica de análise de similitude, sendo calculado para cada par de palavras um índice de similitude (número de co-ocorrências dividido pelo número de sujeitos), esses dados foram dispostos na matriz de similitude e, para facilitar a compreensão, construiu-se a árvore máxima13.

O mise-en-cause é uma técnica de dupla negação que define o cálculo percentual para identificar a resposta mais escolhida de cada cognema (sim, não e talvez). A confirmação de um cognema como núcleo central da representação é pautada nas respostas negativas, ou seja, se mais de 75% das respostas são negativas negativa, pode-se dizer que esse cognema é núcleo central19.

Este estudo atende às resoluções nº 466/2012 e nº 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde, que normatizam a pesquisa envolvendo seres humanos, e foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, sob parecer nº 3.233.780/2019 e CAAE: 07558718.1.0000.0055.

Resultados

Participaram das evocações livres 107 ACSs, das quais 103 eram do sexo feminino, a idade variou entre 29 e 67 anos, com predominância (48) para a faixa etária entre 36 a 45 anos, cor parda (68) e casadas (62), o tempo de atuação como ACS variou de 10 a 23 anos, sendo que a maioria apresentava de 20 a 23 anos de atuação (52). Dos testes de centralidades participaram 60 ACSs, das quais 57 eram do sexo feminino, 37 eram evangélicas e apresentavam renda familiar variando de um a três salários-mínimos (46).

O corpus formado pelas evocações das ACS frente ao termo indutor “violência doméstica contra a mulher” totalizou 523 palavras, sendo 99 diferentes, a ordem média de evocações (rang) foi de 2,60, a frequência mínima foi de 11 e a frequência média de 21. A análise dos dados resultou no quadro de quatro casas (Quadro 1).

Quadro 1
Quadro de quatro casas formado pelas evocações das agentes comunitárias de saúde frente ao termo indutor “violência doméstica contra a mulher”. Jequié, Bahia, Brasil, 2019 (n = 107).

No quadrante superior esquerdo estão os termos mais relevantes e significativos, constituindo provavelmente o núcleo central da representação15. Observa-se que as palavras agressão física, desrespeito e xingamento apresentaram frequência maior e foram evocadas mais prontamente, justificando a presença no núcleo central13. Agressão física foi o termo mais evocado e com a menor ordem média de evocação, xingamento apresentou alta frequência, entretanto o elemento desrespeito, apesar de não apresentar frequência tão alta como os termos agressão física e xingamento, apresentou uma ordem média de evocação menor do que xingamento, o que explica também sua importância como provável núcleo central.

Nos quadrantes superior e inferior direitos estão situados os elementos de primeira e segunda periferia. Na primeira periferia encontramos os termos falta de amor e tristeza colocados como elementos periféricos mais importantes, em função de suas elevadas frequências, que podem revelar-se centrais15. No quadrante inferior direito estão os elementos mais instáveis às mudanças, associados ao contexto de vida e às práticas sociais15, são eles: ciúmes, dependência financeira, drogas, machismo, medo e morte.

No quadrante inferior esquerdo, ou zona de contraste, temos os elementos abuso sexual, covardia, maus-tratos e raiva, que apresentam baixas frequências e foram prontamente evocados, são termos evocados por poucos participantes mas que podem reforçar as ideias da primeira periferia, complementar e discutir o núcleo central ou ainda revelar a existência de um subgrupo com representação diferente10.

Desse modo, serão apresentados os resultados dos testes de centralidade, a fim de aprofundar as hipóteses de centralidade das representações das ACSs sobre a VDCM.

No método choix-par-bloc, as ligações estabelecidas entre os elementos apresentaram a conformação verificada na Figura 1.

Figura 1
Árvore máxima de similitude a partir do choix-par-bloc para os elementos do termo violência doméstica contra a mulher. Jequié, BA, Brasil, 2019 (n = 60).

O termo desrespeito aparece ligado apenas à palavra agressão física, sendo esta a ligação mais forte dos cognemas. Agressão física apresenta quatro ligações. Além de desrespeito, ligou-se a outros elementos da segunda periferia, como machismo, que por sua vez se ligou à covardia; aparece também outro elemento ciúmes, bem como maus-tratos. O cognema maus-tratos se ligou a três elementos; além de agressão física, possui conexidade com o termo da zona de contraste abuso sexual e apresenta forte ligação com o elemento do provável núcleo central xingamento. Este se ligou a tristeza, elemento da primeira periferia que foi o cognema que mais fez ligações. além de xingamento, faz laços com falta de amor, dependência financeira, raiva e medo, sendo que medo se ligou a outros elementos da segunda periferia: morte e drogas.

Dessa forma, além do termo agressão física já ter sido apontado na análise do quadro de quatro casas como provável elemento central, pode-se considerá-lo também na análise do choix-par-bloc e incluir outros elementos como prováveis termos centrais, como maus-tratos e tristeza.

Outro teste de confirmação de centralidade utilizado foi a constituição de pares de palavras, e como resultado da aplicação do instrumento, produziu-se outra árvore máxima considerando o cálculo do índice de similitude, conforme apresentado na Figura 2.

Figura 2
Árvore máxima de similitude por pares de palavras para o termo violência doméstica contra a mulher. Jequié, BA, Brasil, 2019 (n = 60).

Nessa árvore máxima, observa-se que o elemento tristeza apresentou o maior número de conexões, com quatro ligações aos termos; seguida de machismo, desrespeito, falta de amor, cada qual com três conexões com os demais termos. Nesse resultado, o termo desrespeito continua aparecendo como um elemento central, conforme o quadro de quatro casas, apresentando a conexão mais forte com o termo xingamento, que assim como o termo agressão física aparece como provável elemento centrais na análise prototípica, entretanto nesse resultado não se confirma.

Assim, os prováveis elementos centrais para esse teste, ou seja, que apresentam mais conexidades, são: desrespeito, machismo, falta de amor e tristeza. Constatou-se que aparecem como possíveis elementos centrais das RS de ACSs sobre a VDCM termos componentes do sistema periférico. Dessa forma, esses achados possibilitam compreender a necessidade de utilização de vários métodos nos estudos sobre as RS para certificar a centralidade dos elementos e definir a estrutura representacional.

O mise-en-cause, ou técnica do questionamento, contribuiu para o estudo com a identificação sistemática e da propriedade qualitativa dos elementos centrais20. Dessa maneira, foram testados os elementos que mais se destacaram na análise do quadro de quatro casas, como os termos do possível núcleo central, da primeira periferia e da zona de contraste. Os números de respostas negativas, positivas ou “talvez” referentes a cada elemento, seguido da porcentagem, estão demonstrados na Tabela 1.

Tabela 1
Distribuição das respostas à técnica do questionamento (mise-en-cause) para o termo violência doméstica contra a mulher. Brasil, 2019 (n = 60)

Na Tabela 1, observam-se os elementos mais característicos das RS da VDCM, entretanto, no pensamento social das ACSs, os elementos inegociáveis são: desrespeito, tristeza e covardia, ou seja, esses termos apresentaram mais de 75% de respostas negativas pela técnica do questionamento, demonstrando resultado positivo como pertencente ao núcleo central. O elemento desrespeito, presente no núcleo central do quadro de quatro casas, foi o que obteve maior porcentagem na confirmação, com 88,34%, entretanto os termos agressão física (5%) e xingamento (15%), também presentes no quadrante do provável núcleo central, não conseguiram atingir os 75%, tendo a centralidade refutada nesse teste.

O elemento tristeza presente na primeira periferia da análise prototípica teve a centralidade confirmada, com 78,34%, já a falta de amor, também presente nesse quadrante, apresentou apenas 31,67%, porcentagem muito baixa para confirmar centralidade. Os elementos da zona de contraste apresentaram importância nesse teste, o cognema covardia teve o segundo maior percentual (85%), confirmado como inegociável na representação da VDCM. Os demais termos, abuso sexual (3,34%), maus-tratos (71,67%) e raiva (56,67%) não foram centrais. Assim, para o método mise-en-cause, os elementos centrais são: desrespeito, tristeza e covardia.

A partir dos achados apresentados é possível identificar o núcleo central e descrever a estrutura do pensamento das ACS sobre a VDCM. Assim, como critério de análise para a definição de um elemento como central, estabeleceu-se um mínimo de três métodos com indicação para a centralidade do elemento21.

Verifica-se que os termos agressão física, desrespeito e xingamento se apresentaram como provável núcleo central na análise prototípica, mas só desrespeito confirmou a centralidade, por apresentar comprovação também em outros dois métodos: constituição de pares de palavras e o mise-en-cause. Falta de amor e tristeza são elementos pertencentes à primeira periferia, porém pode-se confirmar a centralidade do termo tristeza por apresentar resultado positivo para centralidade nos três testes: choix-par-bloc, pares de palavras e mise-en-cause. Os elementos pertencentes ao quadrante da zona de contraste, abuso sexual, covardia, maus-tratos e raiva, não confirmaram ser elementos centrais, de acordo os resultados. Dessa forma, pode-se verificar como elementos centrais que organizam a estrutura representacional das representações sociais de ACSs sobre a VDCM: desrespeito e tristeza.

Discussão

As RS, de acordo a abordagem estrutural, tendem a verificar a influência dos fatores sociais nos processos de pensamento por meio da identificação e organização de estrutura de relações20. Observou-se, a partir do conjunto de análises, que as RS de ACSs sobre VDCM se estruturam em dois elementos centrais: desrespeito e tristeza, que atribuem à representação sentidos negativos relativos ao posicionamento do grupo diante do agravo e suas repercussões.

O núcleo central de uma representação deve desempenhar o papel avaliativo e pragmático, para isso devem formar elementos normativos e funcionais22. Dessa forma, observa-se que as representações dessas profissionais estão organizadas em torno da dimensão atitudinal por meio do termo desrespeito e da dimensão afetiva definida pela tristeza.

O desrespeito constitui um elemento normativo, refere-se ao sistema de valores dos sujeitos e atribui um aspecto social ao núcleo central. Percebe-se que, para as ACSs, o desrespeito pode ser compreendido como uma atitude ou comportamento do agressor em relação à mulher, sendo o desencadeador dos episódios de violência doméstica. Os elementos do núcleo central geram um significado global da representação, têm raízes históricas e ideológicas fortes e são consensuais no grupo21.

A violência é um desrespeito que ocorre dentro da própria casa da mulher, ambiente que serviria de proteção mas torna-se inseguro, pois o agressor encontra-se dentro do lar23. Assim, o desrespeito está ancorado em valores perpetuados pela sociedade, e nesse contexto as relações de desigualdades entre homens e mulheres geram atitudes de intolerância e desrespeito e funcionam como alicerces para a violência1.

No que diz respeito à análise prototípica, é observado que o desrespeito compõe, juntamente com os elementos agressão física e xingamento, o provável núcleo central. Esses termos, além de indicarem a dimensão conceitual e imagética da representação, demonstram a forma física e psicológica da VDCM. A violência física é a mais reconhecida pelos profissionais de saúde quando as mulheres procuram os serviços, pois deixa marcas físicas1, já o xingamento é entendido como um tipo de violência psicológica que impacta na saúde com a mesma ou maior intensidade, pelo dano emocional e a diminuição da autoestima; e pode apresentar-se invisível às mulheres agredidas, por considerarem um comportamento normal dentro dos moldes familiares3.

Nesse contexto, há repercussões significativas para a saúde mental e física de todos os membros da família, não apenas para as mulheres que vivenciam a violência, devido principalmente à cultura perpetuada da violência24. Estudo realizado em Bangladesh entrevistou 87 mulheres em situação de violência por parceiro íntimo que apresentaram a violência física como a principal forma de agressão, com repercussões na vida de outros membros familiares25.

Pesquisa conduzida na cidade de Petrolina/PE constatou que muitas situações de agressões físicas estiveram ligadas à ocorrência de violência/abuso sexual26. No presente estudo, o abuso sexual encontra-se na zona de contraste no quadro de quatro casas, o que reforça a ideia das formas de violência no imaginário social das ACSs e dá sentido ao elemento maus-tratos. Na análise do choix-par-bloc, verifica-se que o elemento maus-tratos apresenta importância, com possível centralidade pelas conexões estabelecidas com os temos agressão física, abuso sexual e xingamento; entretanto, em outros testes de centralidade não se confirmou como central.

Nesse contexto, para essas profissionais de saúde, a VDCM é um desrespeito às mulheres, praticado em atos que correspondem a agressão física, xingamento, abuso sexual e maus-tratos, que colocam em risco a saúde física e psicológica de mulheres. A partir desse entendimento, as ACSs evidenciaram a imagem que criam dos agressores, associando-os aos elementos covardia e machismo, que reforçam o sistema de valores junto ao termo desrespeito.

O termo covardia integrou o núcleo central do quadro de quatro casas de outros estudos efetuados com profissionais de saúde sobre a VDCM10,22,27,28. No presente estudo, o elemento covardia fez parte da zona de contraste do quadro de quatro casas e se demonstrou como um termo inegociável nas RS de ACSs sobre a VDCM no teste mise-en-cause, entretanto não confirmou sua centralidade em outros métodos. Já o elemento machismo apresentou-se como importante na organização da análise de similitude dos pares de palavras, com laços com os termos desrespeito, covardia e ciúmes.

A dimensão atitudinal traz as questões de gênero como reflexão, sendo fundamentais na interpretação do fenômeno, ao perceber que as condições histórico-culturais continuam a contribuir para a legitimação da subalternidade da mulher e a superioridade do homem, que por meio das relações hierárquicas exerce o poder sobre mulheres e filhos29.

Com isso, os papéis estereotipados, entendidos como algo natural, resultaram na desigualdade de gênero2, e a violência passa a ser utilizada como manifestação dessa dominação musculina, ou seja, a submissão do mais fraco ao mais forte traduzida em maus-tratos3. Dessa forma, a mentalidade patriarcal, que preconiza o controle das mulheres pelos homens, estará sempre presente nas agressões, principalmente por ciúmes, refletindo o receio do homem pela perda do objeto sexual e social30.

Nesse contexto, em torno da estrutura representacional das ACSs sobre a VDCM, a tristeza é revelada como elemento central e funcional; e como sentimento cultivado pelas profissionais frente aos atos de violência. Esse elemento assume a dimensão afetiva dessa representação e desempenha um papel funcional, pois por meio dele a representação pode se ancorar na realidade e mas práticas sociais das ACSs. Assim, neste estudo, pauta-se que a prática não deve ser entendida somente como comportamento físico, mas também o discurso em torno do objeto social31.

Pesquisa realizada com profissionais de saúde sobre a VDCM apontou que a tristeza é um sentimento demonstrado por eles ao presenciar uma situação de violência, além de referirem que esse sentimento é também experienciado pelas mulheres que vivenciam a violência28. Outro estudo efetuado com ACSs demonstrou que o sentimento de tristeza permeia as suas práticas assistenciais, pois são profissionais que reconhecem as fragilidades de suas ações frente à violência doméstica contra a mulher32.

A partir da análise de similitude do choix-par-bloc, observa-se que a tristeza apresenta um maior número de conexões, trazendo outras cargas afetivas para a representação, como o medo, a raiva e falta de amor.

O medo traz um misto de sentimentos no contexto da VDCM tanto para profissionais de saúde quanto para as mulheres. Em relação às profissionais, esse termo afetivo está atrelado ao despreparo profissional para agir diante do agravo e o temor de sofrer represálias dos agressores, limitando sua prática assistencial. E para as mulheres, o medo de se sentirem culpadas pela situação, a subalternidade diante do agressor e o medo da morte10,31.

A disputa de poder do homem sobre a mulher comporta o controle e o medo31. Estudo realizado na Arábia Saudita apontou que as mulheres relutam em revelar a violência doméstica sofrida por vários fatores, entre eles o medo de perder a família e a vergonha33.

Todo esse contexto propicia que as ACSs exponham o sentimento de raiva, que pode ser refletido por toda a influência de papéis sociais entre o ser homem e o ser mulher naturalizados na sociedade e a ausência de tomada de decisão da mulher em busca de mudanças. Pesquisa feita com ACSs apontou que a revolta é vista como um sentimento do profissional resultante das repetidas reconciliações da mulher com o agressor, que o desmotiva a ajudar e apoiar as mulheres em situação de violência doméstica7.

As vivências de ACSs junto às mulheres em situação de violência vislumbram que a atenção à saúde deve possibilitar o desenvolvimento de estratégias de identificação e intervenção, com oferecimento de suporte34.

A falta de amor pode ser representada pelas ACSs por intermédio de suas experiências práticas, em que tendem a observar os conflitos interpessoais vivenciados pelas mulheres, refletindo-se na falta de amor-próprio e na relação homem e mulher. As situações de violência revelam um contraponto: o homem que, de marido idealizado, passa à condição de agressor. E apresentam nesse enfrentamento o limite entre o amor e a violência3.

As mulheres, primando pelo amor e pela família, passam a justificar o comportamento agressivo do parceiro pelo uso de álcool e/ou outras drogas ou por distúrbio de personalidade3. Por sua vez, o uso abusivo de drogas é uma realidade comum entre os agressores, e os profissionais de saúde tendem a evidenciá-lo como um dos fatores desencadeadores da VDCM28.

Desse modo, o núcleo central composto pelos elementos desrespeito e tristeza define e distingue as RS de ACSs sobre a VDCM, já os outros elementos integram as informações particulares à estrutura da representação, justificando-as e ligando-as às práticas.

Conclusão

A partir da análise prototípica, foi possível compreender o pensamento social das ACSs, alicerçados em elementos compartilhados e cognitivamente ativados, apresentando como possível núcleo central os termos “agressão física”, “desrespeito” e “xingamento”.

Ao longo da análise estrutural, a partir do quadro de quatro casas, foram realizados testes para definir a centralidade e o papel dos elementos que compõem a representação. No choix-par-bloc, observou-se que os elementos que apresentaram mais conexões foram “agressão física”, “tristeza” e “maus-tratos”. Na árvore máxima de similitude dos pares de palavras, os elementos com maior saliência foram “desrespeito”, “falta de amor”, “tristeza” e “machismo”. No mise-en-cause, os elementos inegociáveis para as ACSs no contexto da VDCM foram “desrespeito”, “tristeza” e “covardia”. Assim, a centralidade na RS sobre a VDCM ocorreu para os elementos “desrespeito” e “tristeza”, confirmada pelos três métodos aplicados.

Entende-se que as ACSs, por meio desses elementos, trazem a dimensão atitudinal e afetiva da representação da VDCM, assumindo um papel normativo e funcional. O desrespeito organiza o pensamento social a partir dos valores e julgamentos das ACSs frente aos atos dos agressores, e a tristeza traz a carga afetiva e prática dessas profissionais, por meio de suas experiências no contexto da VDCM.

Acredita-se que o entendimento da organização do pensamento social das ACSs sobre a VDCM possibilite a problematização na equipe de saúde da família sobre o fenômeno, assim como a elaboração de estratégias de prevenção e enfrentamento à situação de violência contra mulheres, a agressores e de atuação na comunidade.

Referências

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  • Editores-chefes:
    Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jun 2023

Histórico

  • Recebido
    12 Set 2022
  • Aceito
    05 Dez 2022
  • Publicado
    07 Dez 2022
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