Open-access Menos Face, mais Books - a importância da leitura para a saúde mental dos adolescentes

Desmurget, M. Faça-os ler!. São Paulo: Vestígio, 2023

Michel Desmurget é um neurocientista francês conhecido por suas contribuições para a compreensão dos efeitos da tecnologia digital no desenvolvimento cognitivo, especialmente em crianças e adolescentes. Autor de vários livros, entre eles o best-seller A fábrica de cretinos digitais, no qual afirma que, pela primeira vez na história, os filhos têm apresentado QI menor do que os pais1. O livro foi descrito pela Rádio France Inter como um “livro de saúde pública”. Seus temas recorrentes são os impactos da tecnologia na sociedade, com ênfase na leitura e nos desafios que pais e educadores enfrentam ao lidar com as mudanças culturais e tecnológicas na criação dos filhos.

Seu mais recente livro, Faça-os ler! discorre sobre a importância da leitura para o desenvolvimento do cérebro humano, especialmente na infância, e traz pesquisas que confirmam que os adolescentes estão lendo cada vez menos. Na França, por exemplo, ele apura em dados oficiais que 21% dos jovens (16 a 25 anos) têm dificuldade de leitura, dos quais 10% estão em estado de quase analfabetismo. Esse último percentual chega a 44% entre os alunos do ensino médio que deixaram a escola após a conclusão da educação obrigatória no país (16 anos). Outros 80% (em relação aos 21%), porém, detalha o estudo, demonstram deficiência (43%, capacidade muito baixa, e 28% dificuldades graves) quando se trata de “má automação dos mecanismos básicos de leitura”, como decodificação, identificação de palavras, interpretação de texto.

Ao longo dos 12 capítulos, distribuídos em cinco partes, que totalizam 381 páginas, Desmurget explora a relação crucial entre a leitura e o desenvolvimento cerebral humano, no contexto contemporâneo, ligado ao uso excessivo dos smartphones - que ele chama de “elefantes digitais” -, o que explica a continuidade do título: para não criar cretinos digitais.

Parece que o autor gosta da palavra “cretino”, utilizada no título de duas de suas obras, que, na definição do Dicionário Caldas Aulete, remete ao indivíduo “que sofre de cretinismo ou que é próprio de quem tem essa condição; que é pouco inteligente ou muito tolo, ou que tem pensamentos ou comportamento muito pouco sensatos (ideia cretina); estúpido, imbecil; diz-se de quem tem comportamento inconveniente, ou atitude atrevida, insolente”2.

Na apresentação, o autor reforça a importância de “Ler por prazer”, destacando o quanto este hábito é capaz de impactar o desenvolvimento cognitivo, emocional e social, traçando uma conexão vital entre a prática da leitura na adolescência e a saúde mental. Para defender sua tese, Desmurget lança mão de pesquisas e estudos sobre a relação entre a formação de mentes críticas e imaginativas e o hábito de ler.

Uma das principais preocupações levantadas é o declínio visível na prática da leitura entre os jovens, um fenômeno que o autor atribui ao uso dos dispositivos móveis que fatalmente conduzem às redes sociais. Quem é pai ou mãe de adolescentes se identifica logo no primeiro parágrafo, porque percebe que eles estão, de fato, cada vez mais imersos em ambientes digitais, consumindo informações fragmentadas e superficiais, em detrimento de uma imersão mais profunda na literatura. Os livros adotados nas escolas, por obrigação, ainda “salvam”, mas não garantem a continuidade do hábito.

Esse declínio é alarmante, pois a leitura proporciona benefícios primordiais, como o desenvolvimento do pensamento crítico, a empatia e a capacidade de se concentrar por períodos prolongados. A exposição constante a conteúdos rápidos e efêmeros nas redes sociais pode levar à diminuição da capacidade de atenção e à superficialidade no entendimento de temas complexos. Além disso, a leitura de livros oferece uma forma de escapismo saudável, permitindo aos jovens explorar novos mundos e perspectivas de forma que as mídias digitais raramente conseguem. Portanto, a substituição do tempo gasto nas redes sociais pela leitura não só enriquece o vocabulário e a escrita, também fortalece a saúde mental e emocional dos adolescentes3.

É essencial não confundir leitura com livros. «Mas eu leio no celular», costuma ser a resposta de muitos jovens. Contudo, a leitura na tela, com exceção de aplicativos ligados a livros, como Kindle ou Scribd, não significa exatamente que o adolescente está se envolvendo com a literatura ou se aprofundando em algum assunto, defende Desmurget no segundo capítulo. «Pode simplesmente significar que ele esteja navegando por blogs em busca de ‘dicas para penteados’ ou que goste de folhear revistas de fofocas sobre celebridades. Daí a pergunta: ‘O que exatamente nossos filhos estão lendo?’” (p. 42), provoca o autor.

Desmurget aborda, ainda, como a interação com telas afeta não apenas a capacidade de concentração, mas a habilidade de compreensão e análise crítica, e adverte sobre os futuros efeitos negativos desse fenômeno na formação de uma sociedade informada e reflexiva. Para o autor, nenhum outro formato de leitura tem maior potência de ativar determinadas áreas cerebrais do que um livro, principalmente em papel, para poder ser folheado, analisado, pesquisado. No capítulo 9 (“O potencial único do livro”), são citados estudos que mostram que a complexidade linguística dos meios escritos supera significativamente a dos mundos orais - e nessa prateleira cabem vídeos e filmes em todos os tipos de telas, ou mesmo audiolivros e podcasts. “A escrita oferece várias formas de segmentação que podem informar o leitor sobre a estrutura do texto, o encadeamento das ideias e as passagens importantes (títulos, subtítulos, parágrafos, palavras em negrito etc). A fala parece muito menos estruturada” (p. 235), diz o autor.

Enquanto a escrita permite uma revisão cuidadosa e a organização meticulosa dos pensamentos, a fala muitas vezes ocorre de maneira espontânea e linear, o que pode resultar em desorganização e em ideias menos coesas. Além disso, na escrita o leitor tem a capacidade de pausar, refletir e revisitar pontos anteriores, o que facilita a compreensão e a assimilação de informações complexas. Na fala, essas oportunidades são limitadas, dependendo muito mais da memória imediata e da clareza do orador. Portanto, a escrita não só clarifica a comunicação como enriquece a experiência do leitor ao permitir um engajamento mais profundo e estruturado com o conteúdo4.

Não que assistir a esses conteúdos seja ruim, mas a forma de aprender em um material de leitura é superior, devido à demanda de concentração, às palavras raras que ajudam a enriquecer o vocabulário e ao estímulo à imaginação de uma cena, que precisa ser criada na mente da criança, bem diferente daquela que vem para ser consumida. Desmurget faz uma crítica contundente também à ideia de que “tudo está no Google”, que por causa da IA não seria preciso aprender, basta simplesmente digitar a informação ou o texto e eles chegam prontos ou semiprontos.

É o que Desmurget chama de “conhecimento inútil”, porque traz a ilusão de compreensão. A leitura de um livro exige mais no sentido de exercitar o pensamento. Com a ironia que permeia boa parte do livro, o autor adverte para um futuro em que os pais chegarão ao cúmulo de considerar que seus filhos poderão parar de pensar e simplesmente utilizar o ChatGPT ou até um “chip eletrônico” na cabeça. Essa visão destaca um problema crescente: a dependência excessiva da tecnologia pode levar à atrofia das habilidades cognitivas fundamentais. A capacidade de reflexão crítica, a criatividade e a habilidade de resolver problemas complexos são desenvolvidas e refinadas por meio da leitura e do engajamento ativo com o texto. A leitura, portanto, não é apenas um exercício acadêmico, mas uma necessidade vital para o desenvolvimento completo e saudável da mente humana5.

No campo da saúde mental, o autor se vale de mais pesquisas para afirmar que a leitura enriquece o desenvolvimento socioemocional. Nos últimos 20 anos, estudos de neurociência se interessaram pelo impacto da leitura na empatia e trazem indícios relevantes de que as obras levam ao autoconhecimento e questionamentos emocionais importantes. “A ideia é bastante simples: ao observar os personagens dos livros (ou ao se identificar com eles), os leitores decifram mais facilmente seus próprios comportamentos, pensamentos e emoções; munidos dessa compreensão, podem enfrentar e/ou prevenir mais facilmente as dificuldades reais da vida” (p. 291).

Alguns desses estudos mencionam que, quando se está lendo, alguns neurônios específicos são ativados, a partir de palavras que geram gatilhos no cérebro, até mesmo no campo sensorial. A palavra “campainha”, por exemplo, ativa regiões cerebrais relacionadas ao processamento de sons.

Dessa forma, Desmurget destaca como o mergulho na literatura pode funcionar como uma válvula de escape, proporcionando momentos de reflexão, empatia e compreensão, que são fundamentais para o equilíbrio mental. O autor explora, ainda, a importância do diálogo aberto entre pais, educadores e adolescentes, destacando como a promoção do hábito da leitura compartilhada pode ser uma estratégia eficaz na construção do hábito de ler e de uma mente saudável.

Mas, afinal, como “fazê-los ler?”. Os capítulos finais e, principalmente, o Epílogo propõem soluções práticas para incentivar a leitura entre crianças e jovens, lembrando três fatores principais: o exemplo dos adultos, a criação de ambientes propícios à leitura e a integração de tecnologias, de maneira consciente e equilibrada. Ou seja, se os pais passam o dia em frente às telas, como vão ter moral para dizer aos filhos para deixar o celular de lado e pegar um livro? A valorização da leitura vem pelo exemplo.

Na criação dos espaços, a sugestão é encher a casa de livros, investir em estantes e deixá-los à mostra. Dar livros de presente aos filhos também é importante, mas não sem identificar o gênero que eles apreciam. Ao gostar de um título, é possível que o jovem se interesse por outro similar. Por fim, é urgente reduzir o tempo dos “elefantes brancos” no ambiente familiar. Não há como abrir espaço mental para a leitura em uma criança ou adolescente que passa cinco ou seis horas diante de uma tela. Colocar limite nesse tempo é fundamental para que o “tédio” os estimulem a buscar outras atividades, entre elas, por que não ler um livro?

Revela-se curioso que cada capítulo termina com o subtítulo “Para resumir”, no qual é apresentado um extrato dos temas tratados, como se, ao mesmo tempo em que estimula a leitura em doses longas, o autor se preocupasse em “mastigar” o tema, para torná-lo mais palatável ou fácil de assimilar.

Aproveitando a deixa, “para resumir”, a obra transcende a mera análise, ampliando a visão para o território complexo da saúde mental na adolescência. Com sua abordagem perspicaz e irônica, o neurocientista, além de alertar para os desafios enfrentados pelos jovens na era digital, oferece um caminho possível para a promoção da leitura como ferramenta essencial na preservação do bem-estar mental, tanto durante os anos formativos como no desenvolvimento de uma mente crítica e criativa. Faça-os ler. Vale a pena.

Referências

  • 1 Desmurget M. A fábrica de cretinos digitais: os perigos das telas para nossas crianças. São Paulo: Vestígio; 2021.
  • 2 Aulete FJC. Novíssimo Aulete - Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Lexikon; 2011.
  • 3 Tonon MM, Shibukawa BMC, Furtado MD, Merino MFGL, Paiano M, Jaques AE. Influência do uso do smartphone na saúde biopsicossocial do adolescente: uma revisão integrativa. 2022; Nursing (Ed Bras Impr); 25(289):7990-7999 .
  • 4 Lima LM, Rocha THR. Adolescência e laço social: uma leitura psicanalítica sobre o uso do Facebook. Subjetividades 2020; 20(Esp. 2):e9498.
  • 5 Andrade BM, Barreto ASM, Campos AM, Carranza BLP. Os fatores associados à relação entre tempo de tela e aumento de ansiedade em crianças e adolescentes durante a pandemia de COVID-19: uma revisão integrativa. Res Soc Dev 2022; 11(8):e8511830515.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    Set 2024
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