Open-access Sentidos e significados de parentalidade entre homens trans que engravidaram antes da transição de gênero

Resumo

Buscou-se compreender os sentidos e significados do exercício parental entre homens trans que engravidaram antes da transição de gênero por meio de uma pesquisa qualitativa, na qual participaram cinco interlocutores, cuja análise foi realizada à luz das teorias sociais de gênero. Os resultados demonstraram uma experiência parental sujeitada a um campo de tensão e negociações, além de uma produção subjetiva que oscilava entre a transgressão e a acomodação da perspectiva cultural da sua própria vivência. Identificou-se práticas de violências que reiteraram as vulnerabilidades sociais, deflagraram as fragilidades dos serviços de saúde e provocaram efeitos deletérios em homens trans que engravidam antes da transição de gênero.

Palavras-chave: Parentalidade; Pessoas Transgênero; Gênero; Equidade em saúde; Minorias sexuais e de gênero

Abstract

This qualitative study, with five participating interlocutors, sought to understand the senses and meanings of parenting among trans men who became pregnant before gender transition. Analysis was conducted in light of social theories of gender. The results demonstrated an experience of parenthood subject to a field of tensions and negotiations, as well as subjective production that oscillated between transgression and accommodation of the cultural perspective of their own experience. The forms of violence found to be practiced reiterated social vulnerabilities, exposed healthcare service weaknesses and produced harmful effects on transgender men who become pregnant before gender transition.

Key words: Parenting; Transgender Persons; Gender; Health equity; Sexual and gender minorities

Introdução

Nos últimos anos, a multiplicidade de posições e enunciados sobre gênero e sexualidade têm ocupado um lugar central no debate público e se forjado como um campo de disputas, seja pelas transformações nas políticas públicas1, seja pelas ofensivas reacionárias que atacam as chamadas identidades dissidentes2,3.

A parentalidade atravessada pelas disputas que envolvem essas posições e enunciados tem sido uma forma de reivindicação pelo direito do exercício de novas formas de cuidado4,5. O termo começou a ser utilizado recentemente, em especial a partir dos anos 1960, pela literatura psicanalítica francesa, com o intuito de marcar o lugar dos processos psíquicos e socioculturais experienciados, em caráter constitutivo, na dinâmica de tornar-se pai ou mãe, não se centralizando no gendramento das performances6-8. O fenômeno tem caráter polissêmico e abarca uma série de dimensões que descrevem desde a relação de autoridade entre adultos e crianças, incluindo os aspectos social e psicológico, entre outras esferas; o conjunto de práticas, discursos e narrativas, subsidiados pelo argumento de garantir a segurança e a integridade das crianças, estando associado a uma política de gestão de populações9,10.

Na atualidade, a parentalidade constitui-se como uma arena de complexas disputas, sob um viés de enfrentamentos por posições hierárquicas de dominação, submetendo as pessoas, que exercem tais funções, ao julgamento e reconhecimento legítimo, baseados em critérios rígidos e normativos9,10. A parentalidade de homens trans que engravidaram antes da transição, foco deste artigo, representa uma expressão concreta da arena de redefinição das concepções sobre família e papéis parentais e situa a perspectiva da saúde coletiva na promoção de uma abordagem inclusiva e sensível às necessidades de todos os tipos de famílias.

A parentalidade exercida por homens trans é submetida a frequentes questionamentos e invisibilidade nos serviços de saúde11. É comumente associada à uma “esterilidade simbólica”12, aliada à ausência de ações que promovam a possibilidade de ocupação do papel parental por pessoas trans, e que parece problematizar ainda mais a condição daqueles que engravidaram antes da transição de gênero - classificando a parentalidade desses homens como um “problema grave”, dada a necessidade de ressignificação de seu papel e as negociações nas esferas sociais subjacentes13,14.

Estudos que analisaram a parentalidade de homens trans mostraram o quanto a experiência parental, englobando inseminação assistida, gestação, parto e criação dos/as filhos/as, pode ser desafiadora11,15. Os desafios elencados foram: discriminação e preconceito, preocupação exaustiva em proteger os/as filhos/as de possíveis ataques16-20, dificuldade de alinhamento entre performance de gênero e as noções normativas de paternidade6,21, necessidade de apoio jurídico22, ausência de suporte emocional familiar e comprometimento da saúde mental19,23. Outro estudo ainda revelou a vulnerabilidade à depressão e ansiedade24, em função do estigma e violência.

Destaca-se a urgência na construção de novas inteligibilidade sociais, que fortaleçam a importância da perspectiva cultural e histórica na construção de outras parentalidades; o acolhimento nos serviços de saúde, por meio do preparo e formação dos profissionais; e o fortalecimento no campo dos estudos em saúde, ao promover a compreensão das complexas dinâmicas que envolvem a diversidade sexual e de gênero25,26.

Contribuindo para uma reflexão crítica sobre as transformações em curso na sociedade contemporânea e nas políticas públicas de saúde, este artigo tem por objetivo compreender os sentidos e significados do exercício parental entre homens trans que engravidaram antes da transição de gênero, com base nas teorias sociais de gênero.

Método

Tratou-se de uma pesquisa de campo, de abordagem qualitativa, centrada na experiência dos interlocutores, privilegiando a produção de sentidos e significados das dinâmicas de cada um na experimentação da sua gravidez, seu exercício parental em diferentes contextos sociais e as repercussões nas suas identidades. Ao serem narradores de suas histórias e experiências pessoais, também se situam coletivamente como produtores de intersubjetividade ao contarem relatos e experiências de um grupo27, motivo pelo qual são nomeados de interlocutores, independentemente do número de representantes.

Cinco pessoas participaram da pesquisa, quantidade que corresponde a usuários do Sistema Único de Saúde (SUS), que se autodeclaram homem trans, que gestaram antes da transição e que realizam acompanhamento da transição de gênero em um ambulatório de referência na cidade de Manaus, Amazonas. A instituição, cenário do estudo, dispõe de equipe multidisciplinar formada por psicólogas, assistentes sociais, enfermeiras e médicos, e atende as demandas da população trans de todo o estado do Amazonas, cuja população geral estima-se em 2,1 milhões. Os serviços de saúde regionais enfrentam desigualdades sanitárias, a capital monopoliza a disponibilidade da rede, e os modos de cuidado funcionam na lógica de um território líquido, onde os itinerários variam pelo volume e percurso das águas dos rios28.

Para levantamento dos dados, foram realizadas entrevistas semiestruturadas, no período de agosto 2022 a abril de 2023, com base em roteiro composto pelas seguintes perguntas abertas: Como se tornou pai? Quais as dificuldades enfrentadas no exercício da parentalidade? Fale sobre a transição de gênero. Qual a sua percepção de como você é visto no seu meio social no exercício da parentalidade?

Na ocasião das entrevistas, os participantes possuíam idade entre 26 e 37 anos, todos possuíam um/a filho/a com idade entre 4 e 17 anos e se relacionavam com mulheres cis; destes, três residiam com suas companheiras. Sobre a convivência com os filhos, apenas a filha de José não mora com ele, pois está sob os cuidados da mãe. Quanto à ocupação profissional, apenas Jorge possuía emprego formal; os demais prestavam serviços eventuais por conta própria ou em negócios da família (Quadro 1).

Quadro 1
Caracterização das entrevistas por interlocutores.

Todos têm interesse em retificar o próprio nome, e no registro dos/as filhos/as consta o nome civil no campo de filiação materna. Já no campo de filiação paterna, Jonas registrou o filho com um amigo, a quem se refere como padrasto, Jorge registrou o filho com o padrinho da criança e os demais registraram os filhos apenas em seu nome, parentalidade solo.

Foi utilizado o método de Análise Temática sugerido por Gomes e Nascimento29, seguindo: (a) transcrição, revisão, leitura e releitura das entrevistas; (b) codificação dos relatos; (c) classificação dos núcleos de sentido; (d) comparação entre os diferentes núcleos de sentido; (e) classificação dos núcleos de sentido em eixos temáticos e nominação; (f) redação das sínteses interpretativas.

A pesquisa obteve aprovação do Comitê de Ética da Universidade Federal do Amazonas, registrada sob parecer de número 5.528.881. Foi utilizado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido assinado pelos participantes da pesquisa, além das autorizações institucionais pertinentes ao campo.

Resultados e discussão

A parentalidade ainda que plural e dinâmica5-10, quando vivenciada por homens trans, é submetida a padrões rigorosos de julgamento e condenação, passando ora a ser invisibilizada e ora a ser violentada, a depender do contexto e de como são reconhecidos na organização simbólica e social, interferindo na produção de sentidos e significados dos interlocutores.

Na experiência da parentalidade dos interlocutores há o desejo de ser reconhecido como pai e não mais como mãe, e este movimento revela os significados culturais da paternidade e os sentidos individuais por eles atribuídos. Observou-se, assim, um movimento que oscilava entre a transgressão e a acomodação da perspectiva cultural em torno da sua própria vivência.

Os interlocutores demostraram estar sujeitos a um campo de tensões e negociações constantes acerca de suas identidades conjugadas ao seu papel parental, cuja paternidade muitas vezes é conduzida a um lugar de abjeção, provocando impactos sobre sua saúde, e ensejando estratégias de enfrentamento.

Os resultados de pesquisa, focados na compreensão do contexto social e cultural e situado no entorno dos interlocutores, foi construído por dois eixos temáticos: 1) Significados da parentalidade sob a égide da cisheteronormatividade e 2) Parentalidade nas transmasculinidades: experiências em contextos sociais e de saúde

Significados da parentalidade sob a égide da cisheteronormatividade

As narrativas dos interlocutores denunciaram as tensões que operam de acordo com a lógica binária e sexista para acomodá-los numa “tríade identitária” de ser homem, pai e heterossexual, cumprindo respectivamente os critérios de masculinidade, parentalidade e sexualidade, forjados pela matriz de inteligibilidades, que sedimenta dentro da sua estrutura padrões naturalizantes, consolidados pela linguagem para nortear o funcionamento da vida social e suas instâncias30.

Os papéis femininos e masculinos são construídos por meio de discursos que subsidiam a compreensão cultural da parentalidade. Para os homens trans que engravidaram antes da transição, há um questionamento frequente acerca de suas identidades e corpos, devido à premissa de ordem naturalizante de que homem não engravida, deixando assim de ter sua experiência contemplada nas esferas familiares, educacionais, de direito e saúde.

Tal fenômeno é deflagrado ainda na gravidez ao serem questionados: “a machuda vai ter filho, onde que macho engravida?” (Jonas, 23/12/2023), e “tu não gostavas de homem? Que diabo de machuda é tu?” (Joaquim, 11/04/2023). “Machuda” trata-se de um termo êmico na linguagem regional dos povos amazônidas para designar a mulher que se relaciona com outras mulheres, cuja expressão de gênero é mais masculinizada. Reconhecida como sinônimo de outras atribuições em diferentes regiões do Brasil, como “mulher-macho”, “sapatão” ou “caminhoneira”.

Durante a gravidez, os interlocutores já se relacionavam com mulheres e possuíam uma expressão de gênero masculina. Tal aspecto produzia enunciados no seu entorno a fim de acomodá-los na lógica binária heterossexual, em duplo sentido. O primeiro, associado a um discurso de que mulheres lésbicas não podem ter relações sexuais heterossexuais, e em outro sentido, a gravidez é percebida como a “salvação” do comportamento julgado como desviante, suportado na perspectiva religiosa cristã, conforme narrativa de Joaquim ao revelar a gravidez ao seu pai:

Quando eu falei que eu estava grávida, ele relaxou. Tu não gostas de mulher?! Então vai dar tudo certo. Acho que pro meu pai, aquilo foi a salvação (Joaquim, 11/04/2023).

As significações produzidas no contexto dos interlocutores revelam que, mesmo antes da transição, com o reconhecimento da sexualidade homossexual, há enunciados que posicionam o sujeito num enquadre restrito e limitado, incapaz de abarcar toda a complexidade e a pluralidade das possíveis formas de sua manifestação, movimentos sexuais e de gênero, que, nesta conjugação, ampara-se na cisheteronormatividade compulsória da sociedade31.

Observa-se, no contexto social, uma compreensão forçosa da maternidade, atribuída à prática de cuidado dos interlocutores:

No geral, as pessoas não entendem, né? Porque por mais que você explique que você é o pai, para quem tem a mente fechada, ele sempre vai te ver como uma mulher. É difícil, mas é ignorar e seguir a vida (José, 13/09/2022).

O binarismo estrutural impregnado nas relações de gênero, associadas ao exercício parental, construído por uma cultura hegemônica conservadora, baseada nos padrões da interação dialógica homem-mulher, resultam respectivamente nos papéis parentais de pai e mãe, desconsiderando assim as repercussões ocorridas no campo social e histórico do nosso contexto. Para Butler32, tais arranjos familiares são invisibilizadas porque representam uma ameaça às estruturas de gênero e parentesco legitimadas socialmente:

Variações no parentesco que se afastem de formas diádicas de família heterossexual garantidas pelo juramento do casamento [...] colocam em risco as leis consideradas naturais e culturais que supostamente amparam a inteligibilidade humana32(p.224).

A significação da parentalidade presente nos discursos sociais reitera a primazia biológica sobre o gênero, citada em outras pesquisas desenvolvidas com pessoas trans que iniciaram a transição após a gravidez14-17. Este aparece atrelado à compreensão que concebe o corpo sexuado/materno está a serviço da reprodução, de maneira quase que obrigatória, ficando o reconhecimento paterno reivindicado pelos interlocutores remetido a um pressuposto instinto materno15, fortalecido no contexto dos participantes pelas práticas de cuidado que eles exercem.

Com efeito, a paternidade é um atributo para uma determinada masculinidade: a dos casados e heterossexuais33. As regras de conjugalidades estão mais associadas aos homens34, o que influencia as significações parentais no contexto social em que os interlocutores transitam acompanhados de suas parceiras, e passam a ser denominados de pai e sua parceira de mãe, acomodando-os dentro da configuração familiar nuclear e cumprindo a expectativa generificada dos papéis parentais. O gendramento da parentalidade produz práticas e comportamentos específicos para homens e mulheres de tal forma que é possível afirmar que assim como o gênero, a parentalidade também é performatizada27,35.

A masculinidade é definida pelos atributos da função paterna, conforme se observa na narrativa de João:

Eu tenho um peso maior de ter que prover, sabe, querendo ou não, eu fui criado assim, que a pessoa do sexo masculino, sempre vai ter uma responsabilidade maior, tem que correr atrás (João, 25/08/2022).

A performance masculina dos interlocutores perpassa a compreensão da concepção que atribui ao pai o papel de prover. O trabalho remunerado é uma referência nas concepções sobre paternidade e masculinidade, sobretudo a hegemônica36,37. O fator financeiro é trazido pelos interlocutores como um desafio para a legitimação e o reconhecimento da paternidade. Isso porque a inclusão de pessoas trans no mercado de trabalho encontra inúmeras barreiras, em função do preconceito, comprometendo a saúde mental e a autoestima e tornando-os ainda mais vulneráveis, em função da ausência de condições mínimas de cidadania e direito. Observou-se nas trajetórias de vida dos interlocutores, problemas relativos à moradia, falta de alimentos e obtenção de renda advinda da prostituição, questões que também foram identificadas em outros estudos38.

O gendramento também se expressa pelo reconhecimento de João como um “paizão”, ao exercer o cuidado exaustivo com sua filha. Em contrapartida, Jonas, ao ser chamado de pai, é interpelado sobre a mãe de seu filho: “‘Cadê a mãe dele?’ Então eu falo que sou mãe e pai [...] Normalmente tudo vai para cima da mãe [...] ninguém vê o lado do pai”.

Apesar de situações distintas, ambas reforçam o sinônimo de cuidado como um atributo feminino, cabendo assim aos interlocutores assumir a denominação de mãe-pai como uma estratégia, a fim de satisfazer as necessidades de ressignificação da identidade masculina e não se afastar do compromisso de cuidado e da manutenção do vínculo afetivo e efetivo com os/as filhos/as.

O acúmulo de papéis parentais torna a parentalidade um terreno perigoso, não pela responsabilidade atribuída ao cuidado dos/as filhos/as, mas pela vigilância empregada no controle de tais práticas, muitas vezes estabelecidas por performances inalcançáveis que coadunam gênero, sexo e sexualidade. O trecho em destaque “ninguém vê o lado do pai”, expressa não somente a vontade de ser reconhecido nominalmente como pai, mas representa o desejo de uma desconstrução da concepção naturalizante que ainda hoje estabelece discursos que retiram o pai das práticas de cuidado e referendam a educação dos/as filhos/as como um atributo da feminilidade.

A vigilância heterossexista também é experimentada quando Jonas está acompanhado do padrasto do seu filho (homem cis), ao relatar que: “o pessoal ficou olhando para nossa cara, acho que eles pensavam que eram dois gays e uma criança [...] eu nem ligo”.

A regra associada à família nuclear, constituída de pai e mãe - pessoas cisgêneras -, teria sido inspirada pelas conceituações psicanalíticas4, que estabelecem como premissas as funções maternas e paternas, a fim de assegurar o pleno desenvolvimento das crianças, afastando-as de qualquer comprometimento psicológico e, em outro sentido, representaria a garantia de procriação cultural e humana. As afirmações incluem práticas discursivas operadas pelo poder hegemônico, buscando perpetuar a heterossexualidade num campo simbólico, colocada em risco pela aparição de novas configurações familiares.

Os resultados destacam que a parentalidade, assim como a sexualidade, passa pelo processo de gestão da vida e da biopolítica39, constituída pela sujeição dos corpos e controle das populações no campo deflagrado pelo imperativo da cisheteronormatividade. Dada a diversidade de configurações familiares, em resposta a uma urgência de política de organização, a parentalidade encontrada na pesquisa está vinculada à noção de dispositivo, como uma função estratégica dominante, “[...] constituída de uma rede articulada de enunciados, práticas e regras que se cristalizam em uma dinâmica avaliativa”40(p.81).

A ressignificação da paternidade de homens trans que engravidaram antes da transição é dificultada por aspectos culturais, discursos regulatórios e outras instâncias do direito, dentre os quais é possível destacar: a primazia do aspecto biológico na nominação do gênero, a soberania do instinto materno, o gendramento dos papéis parentais, as crenças sobre a família nuclear e a ausência de dispositivos legais e de direito que contemplem outras possibilidades enquanto família.

Parentalidade nas transmasculinidades: experiências em contextos sociais e de saúde

As interações no contexto social são permeadas de violências e estigmas que visibilizam as vulnerabilidades e estratégias de enfrentamento adotadas pelos interlocutores. Semelhante a outro estudo, as práticas apareceram associadas aos contextos da saúde12 e se mostraram relacionadas aos espaços educativos. As narrativas revelam ausência de conhecimentos sobre transidentidades, os imbróglios do nome social, a cidadania precária e a percepção de culpabilização dos pais para justificar condições de saúde/ou desempenhos escolares associados aos/às filhos/as.

Neste bojo, mesmo com todas as mudanças percebidas nas construções de gênero na modernidade41, os interlocutores afirmaram que a sociedade em si possui pouco entendimento sobre a maneira como o seu papel parental se relaciona com a sua identidade de gênero, interferindo diretamente durantes os percursos nos dispositivos da rede de saúde:

Porque a sociedade em si não sabe nem identificar o termo homem trans, só fala a mulher que virou homem. As pessoas não entendem, não sabem, muitas vezes pensam que é o inverso, entendeu? E isso também está nos serviços e nas políticas de saúde (João, 25/08/2022).

A ausência de inteligibilidade das identidades trans em seu exercício parental com efeito, conduzem os sujeitos a um processo de abjeção, passando a ocupar lugares “[...] inóspitos e inabitáveis da vida social, que são, não obstante, densamente povoadas por aqueles que não gozam do status de sujeito, mas cujo habitar sob o signo do ‘inabitável’ é necessário para que o domínio do sujeito seja circunscrito”42(p.155).

Além do desconhecimento, há uma fragilidade das políticas de saúde que, por meio de protocolos, estabelece nos serviços de saúde uma experiência de gênero estigmatizada:

Quando eu fui para a maternidade foi meio estranho porque tinha que usar um vestido que eu não queria vestir. O pessoal da maternidade chegava e perguntava: “Cadê a mãe dele?” E eu respondia: “Eu que sou a mãe dele!” Muitas vezes pensavam que era minha irmã e tiravam algumas brincadeiras que eu não ligava (Jonas, 23/12/2022).

O acolhimento e o cuidado preconizados nos serviços de saúde são substituídos na prática por ações que reproduzem critérios naturalizantes, colocando as identidades sob tutela12, e enquadrando a manifestação subjetiva associada a aspectos anormais e patológicos dentro dos serviços de saúde, que deveriam ofertar cuidado universal, integral, e, principalmente, equânime43-46.

As narrativas dos interlocutores também indicaram haver nas tratativas institucionais que integram os dispositivos sociais, como unidade de saúde e escola, parâmetros da inteligibilidade social em que estão presentes dispositivos que regem a parentalidade e seus papéis. Nesta conjectura, os mecanismos disponibilizados pelo Estado implicam uma legalidade jurídica frágil que, por vezes, expõe os pais trans a condições de constrangimento quando, por exemplo, precisam mostrar os documentos de registro ainda não retificados:

Aí a pessoa fica questionando: “Mas como é que é isso? Você teve ela?” Então sempre tem esse tipo de questionamento (João, 25/082022).

Então eu percebo uns olhares quando falo o meu nome de registro, e o pessoal fica olhando diferente. Acho que isso só vai parar no dia que eu botar o meu nome, mesmo já masculino (Jonas, 23/12/2022).

Bento47 reconhece a importância do nome social na subjetividade identitária das pessoas trans, contudo, salienta que este reflete o que denomina de “cidadania precária”, representada pela quase ausência de direitos ou sua fragilidade, já que em sua maioria que são constituídos como uma “gambiarra legal”, mediante mecanismos inconsistentes associados aos padrões e práticas discursivas dominantes de gênero e sexualidade, que não incluem a identidade paterna associada a um registro civil com nome feminino.

Numa perspectiva crítica, é preciso refletir sobre a dinâmica do processo de retificação do nome, uma vez que, extremamente burocrático, demorado e caro44, pode inviabilizar o acesso das pessoas trans aos serviços de saúde, especialmente no que se refere à garantia da saúde sexual e reprodutiva. Assim sendo, o processo para realização da mudança dos documentos pessoais e registro dos/as filhos/as parece constituir-se em uma estratégia que oscila entre assegurar o reconhecimento identitário e adequar-se a uma prática imperativa, com o intuito de ratificar os critérios de inteligibilidade da cisheteronormatividade pelo Estado.

Para os interlocutores, falar da parentalidade é lidar com a violência e a exaustão, já que as condições atuais ensejam ações enérgicas de enfrentamento das diversas transfobias, além da marcação do lugar de luta e afirmação de suas identidades48. As violações e interdições produzem inúmeras vulnerabilidades, deixando-os “[...] expostos à sua possibilidade, e não à sua realização”49(p.22). Tais estratégias são variadas e incluem a passabilidade, a confrontação, a quebra de vínculos afetivos e o distanciamento emocional, incluídos em uma dinâmica constante de “conformismo e resistência”38(p.91).

Nas tessituras das relações sociais de poder e exploração de uma sociedade capitalista, patriarcal, sexista, racista e transfóbica, a violência contra as pessoas trans50, enquanto questão de saúde pública, institui um processo em que a “[...] desrealização do outro significa que ele não está vivo nem morto, mas interminavelmente espectral”50(p.35). Nesta condição, a violência pode ser interpretada como uma abjeção das identidades e, em outro sentido, numa prática que não é prejudicial porque tais vidas já eram negadas. Butler50 afirma que: “aqueles que são irreais, em certo sentido, já sofreram a violência da desrealização. [...] Mas elas têm uma maneira estranha de se manterem animadas e têm de ser negadas mais uma vez (e mais outra)”50(p.34-35).

O estigma e o preconceito associado aos pais trans é suportado pela ideia de uma parentalidade “[...] como dispositivo social, forjado com o intuito de fazer funcionar determinada ordem de intervenção coletiva”51(p.81), na qual a relação de cuidado poderia explicar desde problemas psíquicos até comportamentos inadaptados e desviantes, o que observamos na narrativa de Jonas ao ser questionado pelos comportamentos inquietos do seu filho: “‘Por que que ele é assim?’ Ele é assim porque eu estou criando, e esse é o jeito dele”.

O movimento de culpabilização dos pais reflete no mal-estar da atualidade como fruto da dimensão da parentalidade “normativa e ortopédica”10, cuja padronização de práticas parentais eficazes está consubstanciada na produção de corpos dotados de docilidade e obediência, sob o argumento de garantir o bem-estar dos seus rebentos.

Na prática, trata-se de um discurso fantasioso, já que o Estado não garante que os subsídios básicos de educação, proteção e cuidado, garantidos por lei, sejam aplicados em condições atípicas. Tal cenário apareceu em dois excertos de fala, em que as condições de saúde dos filhos (transtorno opositor desafiador e autismo) garantem a presença de um professor assistente para acompanhamento educacional, facilitação da comunicação, desenvolvimento de estratégias relacionais, dentre outros.

Segundo as narrativas, João e Jorge fazem ajustes e criam estratégias a fim de assegurar que os/as filhos/as se mantenham regulares na escola, preenchendo uma lacuna institucional:

A minha filha está dando muito problema na escola. Ela tem Transtorno Opositor Desafiador, e todo tempo eu sou chamado pela escola. Já tenho uma rotina toda e ainda ter que ir no meio da aula dela pra resolver as coisas é duro (João, 27/03/2023).

Eu acompanho meu filho todos os dias na escola. Passo lá umas cinco horas todos os dias lá, porque não tem professor assistente (Joaquim, 25/04/2023).

A ausência de mecanismos que assegurem o suporte necessário nestas condições, produz efeitos deletérios sobre a identidade, autoestima, noção de tempo, engajamento sobre os interesses pessoais, construção de afetos e disponibilidade48. Não há como compreender a parentalidade de transmasculinos, sem antes reconhecer as vulnerabilidades sociais às quais estão submetidos, como os que emergiram do campo: o preconceito, a precariedade da rede de apoio, a exposição de seus corpos e a fragilidade das políticas públicas.

Diante das dificuldades e asperezas encontradas neste processo de ressignificação, alguns mecanismos são trazidos como forma de mitigar os impactos na saúde gerado pelas violências e apagamentos. A passabilidade apresentada pelos interlocutores é vista como uma forma de não tornar pública sua identidade e não sofrer preconceito e violências consequentes da revelação:

Eu tento passar despercebido em todos os lugares, até no posto de saúde do meu bairro. Não que seja uma vergonha ser um homem trans, mas é que eu evito, sabe? [...] porque me magoam (João, 25/08/2022).

Em contrapartida, a passabilidade representa a demarcação e o controle social sobre seus corpos que passam a ser vigiados, com base em um repertório de procedimentos capazes de cumprir identidades legítimas apoiadas nos mesmos mecanismos que um dia os excluiu.

As modificações corporais, neste sentido, passariam a se tornar os balizadores centrais da própria identidade, atuando como mecanismo com dupla significação: de um lado, a invisibilização, e de outro, a proteção de ataques, violência e preconceito. Pontes e Silva52 afirmam que para atingir a congruência com a cisnormatividade, a passabilidade apresenta-se como um regulador do poder usado na materialização dos corpos a fim de alcançar o corpo natural.

Por fim, diversas ações são realizadas com a intenção de afastar-se da opressão vivida nos serviços de saúde e em outros espaços sociais, como a escola: usar do conhecimento acumulado na militância para garantia de direitos; utilizar fones de ouvido para não escutar possíveis críticas; afastamento das pessoas, incluindo familiares, que não reconhecem sua identidade; e, em último caso, pouco presente nas narrativas, o confronto frente aos discursos de ódio usados com frequência em defesa da família e bons costumes, sem compreender que, por trás de tais discursos de gênero, estamos apenas nos referindo à pessoas.

Considerações finais

A experiência da parentalidade narrada pelos interlocutores reforça a importância de reconhecer e valorizar as singularidades e peculiaridades expressas em suas vivências, permitindo a compreensão de estratégias que sustentam inteligibilidades sociais e gerenciam populações em seus contextos familiares.

Neste estudo, foram evidenciadas tensões que estruturam as experiências de construção da transparentalidade, desenhando vivências sociais de oscilação entre transgressão e acomodação. Compreendeu-se, por exemplo, que os interlocutores se mantêm em suas funções de cuidado, mesmo em contextos de rotina exigente, apesar dos integrantes dos diferentes dispositivos sociais questionarem, mediante uso da dúvida sobre o corpo e/ou nome social, a legitimidade da relação parental. Em dinâmica alternativa, entendeu-se que o pai pode se utilizar de estereótipos de gênero masculino para demarcar o exercício de um papel paterno.

Dessa forma, a construção da transparentalidade, que em termos conceituais mostra-se tangenciada por mecanismos de gerir populações e enquadrar dinâmicas familiares, pareceu não se desvincular de um modo gendrado e binário incutido na própria noção de parentalidade. As narrativas indicam a captura social da transparentalidade e das performances parentais dissidentes para manutenção dos ideais sexistas, havendo uso de uma matriz biologicista para manutenção do dispositivo da reprodução compulsória, como também para perpetuação dos papéis de gênero mediante reforço da passabilidade como estratégia de legitimidade do lugar paterno.

Ainda, as reflexões sobre a parentalidade de homens trans têm implicações amplas na conformação de contextos sociais e de saúde. Elas podem orientar profissionais que atuam nesses espaços a promover acolhimento e desenvolver alternativas que permitam que essas famílias assumam um papel de destaque, afastando-os dos estigmas que frequentemente os confinam em um lugar sombrio chamado “armário” e dos sofrimentos oriundos das situações de tensionamento.

Por fim, entende-se como tarefa coletiva crucial entender as subversões e repetições dessas construções sociais sobre parentalidade, maternidade e paternidade como estratégias de contestação e garantia de existência da diversidade humana. À luz das discussões sobre transhomoparentalidade e saúde coletiva, este estudo contribui para a compreensão das complexas dinâmicas que envolvem a parentalidade de pessoas trans, enfatizando a importância de discutir-se os tensionamentos existentes, visibilizar e combater as hostilidades às quais as famílias podem estar submetidas, e reconhecer os imbricamentos utilizados como estratégias de manutenção da matriz biologicista e do gendramento dos papéis familiares.

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  • Financiamento
    O presente trabalho foi realizado com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM - Brasil) pelo auxílio pesquisa do Programa de Apoio a Pós-Graduação - POSGRAD/FAPEAM 2023/2024 - nº Processo: 01.02.016301.01928/2023-40 (RESOLUÇÃO nº 002/2023). E da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
  • Editores-chefes:
    Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    Abr 2024

Histórico

  • Recebido
    21 Nov 2023
  • Aceito
    18 Dez 2023
  • Publicado
    18 Dez 2023
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