Open-access Da formação de artífices à Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica 1 2 3

Resumo

O estudo tem por objetivo estremar as relações de poder, dependência e exclusão existentes na Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica e suas implicações nos níveis de sua organização e nos aspectos das instituições que a compõem. A pesquisa é documental, e seu corpus é formado por documentos oficiais, projetos de lei, leis, relatórios emitidos por órgãos federais, páginas eletrônicas e produções acadêmicas. A lente teórica utilizada, com o uso das categorias estabelecidos e outsiders, é a teoria eliasiana. Constatou-se que as 19 Escolas de Aprendizes Artífices representam a gênese da Rede, que, apesar das tensões, foi ampliada politicamente. O avanço para níveis mais elevados de ensino, materializado em transformações institucionais, tem como ponto de inflexão a Universidade Tecnológica Federal do Paraná. O Ministério da Educação vem propondo políticas para frear o pleito individual dos membros da Rede para níveis mais elevados de ensino. O movimento mais notório nesta direção foi a implantação dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia. Conclui-se que a Rede, enquanto uma configuração pulsante, foi construída entre o estigma de ofertar uma espécie de ensino de segunda classe, destinada às classes mais desfavorecidas (ÉRGA) e a busca de um status superior (ÉPEA).

Palavras-chave School of Apprentice Artificers; Federal Network of Professional; Scientific, and Technological Education; Technological Education

Abstract

The study aims to outline the power, dependence, and exclusion relations in the Federal Network of Professional, Scientific, and Technological Education and its implications at the organizational level and aspects of the composing institutions. This is documentary research, and its corpus consists of official documents, bills, laws, reports issued by federal bodies, electronic pages, and academic productions. The Eliasian theory was used, employing established and outsider categories. The 19 Schools of Apprentice Artificers represent the genesis of the Network, which, despite tensions, was politically expanded. The advance to higher levels of education materialized in institutional transformations has the Universidade Tecnológica Federal do Paraná as an inflection point. The Ministry of Education has been proposing policies to curb the individual application of Network members for higher levels of education. The most noticeable movement in this direction was the establishment of the Federal Institutes of Education, Science, and Technology. In conclusion, as a pulsating configuration, the network was built between the stigma of offering a species of second-class education aimed at the most disadvantaged classes (ÉRGA) and the search for a superior status (ÉPEA).

Keywords Escola de Aprendizes Artífices; Rede Federal de Educação Profissional; Científica e Tecnológica; Educação Tecnológica

Introdução

A primeira Carta da República Federativa do Brasil foi aprovada em 1891. Na Carta, a garantia do caráter público da educação primária, da alfabetização e da educação profissional. A oferta da instrução primária deveria ser gratuita e laica e de responsabilidade dos Estados, exceção para o Distrito Federal, pelo qual a União seria responsável (Carvalho, 2017).

A república nasceu ainda bastante rural. Nos seus primeiros anos, as cidades transformavam seu perfil para atender as novas demandas, entre elas, a dos migrantes nacionais e imigrantes estrangeiros. Era necessário infraestrutura para acomodar todos. As pessoas careciam de habitações, de vias de circulação, de espaços para o comércio. Necessidades como alimentação, vestimenta e higiene precisavam ser supridas (Sá, 2014).

Nos centros urbanos emergentes, aumentava o número de crianças que circulavam nas ruas sem ter ocupação – eram os chamados “desprovidos da sorte”. Para poucos meninos desse público, em 19 capitais, as Escolas de Aprendizes Artífices (EAA) significavam uma esperança para mudar de vida, a partir do Decreto n°. 7566, de 23 de setembro de 1909 (Brazil, 1909), assinado pelo Presidente Nilo Peçanha.

As Escolas criadas em 1909 produziram uma configuração que, no curso da sua história, sistematicamente foi ampliada. Na longa duração, este percurso, da agora estruturada Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, é objeto do presente estudo. Na literatura, temas correlatos foram pesquisados, entre eles: a criação das Escolas Aprendizes Artífices (Carvalho, 2017; Soares, 1981); as características iniciais dessas Escolas (Soares, 1982); as políticas educacionais brasileiras desde as EAA até os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IF) (Sell, 2019); estudos da EAA do Rio Grande do Norte até se tornar IF do Rio Grande do Norte (IFRN) (Medeiros Neta et al., 2012); estudos da EAA de Curitiba até a fase de transformação em Centro Federal de Educação Tecnológica (CEFET) (Guimarães, 2001) e em Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) (Cechin, 2019; Helmann, 2019; Matos, 2009). Não foi localizado estudo panorâmico com foco na educação tecnológica brasileira. O mais próximo, com as lentes voltadas para as políticas educacionais, foi o de Sell (2019).

O corpus da presente pesquisa é constituído por documentos oficiais, como leis e relatórios emitidos por órgãos federais da educação; e pelas páginas eletrônicas das instituições originárias das EAAS e das produções acadêmicas.

No tratamento das fontes, foi considerado que os documentos oficiais modulam a realidade, mas não podem ser entendidos como unilateralmente construídos. Os documentos são produtos de determinado contexto sócio-histórico e transpassados por discursos na sua composição.

A discussão das fontes foi realizada com as lentes da sociologia das relações de poder. As categorias utilizadas foram as de estabelecidos (establishment) e outsiders, propostas por Norbert Elias e John L. Scotson em Os estabelecidos e os outsiders (Elias & Scotson, 2000). São categorias permeadas por estigmas, como a vinculação, aos outsiders, da ideia de uma identidade deteriorada. O modelo teórico supõe a compreensão da configuração e das relações de interdependência existentes no objeto em exame. A leitura, seguindo a teoria eliasiana, é feita na longa duração. Está se falando do período de mais de um século e da sociogênese do Estado. Com a abordagem proposta, será examinado o surgimento das configurações sociais como uma efetivação inesperada da interação social. Tal abordagem pode ser caracterizada como uma indagação minuciosa sobre a psicogenia e a sociogenia (Elias, 1997).

A psicogenia delineia o desenvolvimento de longa duração das estruturas psíquicas e as modificações do comportamento humano. A preocupação de Elias é centrada nas estruturas e nos mecanismos de regulação e controle das emoções e na formação social do superego. Seus trabalhos examinam a transição dos mecanismos de coação exteriores para mecanismos interiores. Uma espécie de internalização, disciplinarização de si.

A sociogenia, por sua vez, delineia o desenvolvimento de longa duração das estruturas sociais. A transformação da sociedade foi uma preocupação sempre presente no âmago das obras de Elias. Em O processo civilizador (1994), Elias estabelece relações entre a civilização e a formação e a consolidação do Estado moderno. Trata-se de um processo de centralização em direção da monopolização dos territórios, da tributação e do uso da violência, o que passou a determinar um crescente grau de dependência e funcionalização, regulação, coordenação e interação dos processos sociais.

Gerado em páginas não escritas da história da educação tecnológica brasileira e pautado na teoria eliasiana, o presente estudo tem por objetivo estremar relações de poder, dependência e exclusão existentes na Rede e suas implicações nos níveis de sua organização e nos aspectos das instituições que a compõem.

As origens da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica

A educação tecnológica brasileira nasceu na esfera pública militar e no nível superior, ainda no Brasil-Colônia, em 1782, no Rio de Janeiro, com a instalação da Academia Real de Guardas-Marinha. Em 1886, a instituição de ensino ganhou a denominação atual, Escola Naval (Marinha do Brasil, 2021). A iniciativa foi seguida da implantação da Real Academia, também no Rio de Janeiro, em 1792. A escola de engenharia do exército foi a primeira das Américas e a terceira do mundo. Depois de várias mudanças de nome, desmilitarização e nova militarização, em 1949, a instituição recebeu a denominação atual, Instituto Militar de Engenharia (IME). Em 1964, o IME voltou a admitir também civis (Instituto Militar de Engenharia, 2021). Na aeronáutica, em 1950, ideado por Alberto Santos-Dumont (1918) e inspirado no Massachusetts Institute of Technology (MIT), foi fundado o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), na cidade de São José dos Campos, interior de São Paulo (Instituto Tecnológico de Aeronáutica, 2021). Embrião da Embraer, o ITA se transformou em referência de ensino de qualidade, pesquisa de ponta e forte relacionamento com o setor produtivo (Forjaz, 2005).

Apesar de exitosas e perenes, as instituições militares de ensino superior, detentoras de elevado capital simbólico, historicamente sempre foram pouco acessíveis e possuem protagonismo irrisório ou inexistente no âmbito da educação tecnológica brasileira da qual se descolaram (Lara et al., 2021). As instituições, neste âmbito, estão numa espécie de mundo à parte.

Na esfera pública civil, a educação tecnológica tem como baliza temporal inicial o ano de 1909. Na realidade concreta, o regime monárquico (1822 -1889) ainda se estendia em algumas de suas características após a Proclamação da República, ocorrida oficialmente em 15 de novembro de 1889 (Brazil, 1889). O contexto do início dos anos 1900 tornava a aprendizagem industrial uma necessidade, por conta das mudanças da economia e do aumento da complexidade da tradicional divisão de trabalho.

A viabilidade da aprendizagem industrial aconteceu com o Decreto n° 1606 (Brazil, 1906), que criou o Ministério dos Negócios da Agricultura, Indústria e Comércio, responsável pelos assuntos relacionados ao ensino profissional, entre outros. Em 1909 esse ministério passou a ser denominado de Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio e tinha o apoio da facção oligárquica, imbuída do industrialismo e ideias agraristas, das quais Nilo Peçanha compartilhava (Carvalho, 2017).

Nilo Peçanha fez parte da esfera política do Brasil desde 1891, quando atuou na Assembleia Nacional Constituinte por duas legislaturas, foi deputado e senador pelo Rio de Janeiro e também foi ministro (Cunha, 2000a). Ele foi vice-presidente do Brasil na gestão de Affonso Penna, na presidência de 15/11/1906 até sua morte em 14/06/1909. Com a morte deste, Nilo Peçanha assumiu a presidência, onde permaneceu até 15 de novembro de 1910. Logo que assumiu a presidência, criou as EAA.

Sua inspiração para criar as EAA foram algumas experiências anteriores de ensino profissional com objetivos e estruturas semelhantes. Entre elas: o Asilo de Meninos Desvalidos, no Rio de Janeiro, criado em 1874, mas inaugurado em 1875 pelo Ministro do Império João Alfredo Correia de Oliveira (Soares, 1981); as três escolas profissionais: Campos, Petrópolis e Niterói, e as duas agrícolas – Paraíba do Sul e Resende – do Rio de Janeiro, criadas em 1906 pelo Presidente do Estado Nilo Peçanha (Carvalho, 2017); o anteprojeto do “Congresso de Instrução”, realizado no Rio de Janeiro, em dezembro de 1906, que teve as conclusões levadas ao Congresso Nacional, as quais autorizavam o Governo da União a promover o ensino prático industrial, agrícola e comercial nos estados e na capital da República (Soares, 1981).

Além das experiências mencionadas, para Cunha (2000a), Nilo Peçanha pode também ter-se inspirado nas experiências dos padres salesianos, quando estes fundaram o Liceu de Artes e Ofícios Santa Rosa, em Niterói, logo que chegaram ao Brasil, em 1883, com atuação no âmbito do ensino profissional nos ofícios de mecânica, de marcenaria, de tipografia, de sapataria e de alfaiataria. O anticlericalismo, a valorização popular e o ideal de solidariedade entre os homens, princípios da maçonaria, presentes na idealização das EAA (Carvalho, 2017) e o fato de Nilo Peçanha ser filiado à maçonaria podem também ter influenciado a criação das EAA (Cunha, 2000a).

Independente da motivação, o decreto n° 7.566/1909 (Brasil, 1909) criou 19 EAA (Brazil, 1909).

Considerando que um dos principais deveres do Governo da Republica é interessar-se pela sorte dos menores, principalmente dos desprovidos de meios de vencer a lucta pela existencia, cabendo-lhe portanto amparalos contra qualquer especie de exploração que sobre eles se possa exercer, o Ministerio a meu cargo fez consistir em um dos seus primeiros actos a expedição do decreto n. 7.566, de setembro de 1909, creando nas capitais dos Estados escolas de aprendices, para o ensino profissional e primario gratuito.

(Brazil, 1910, p. 135)

O texto, de Rodolpho Nogueira da Rocha Miranda, Ministro da Agricultura em 1910, está publicado no Relatório anual do seu Ministério, apresentado para o Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil. O discurso paternalista parece protetivo ao menor, com interesses concretos de ajuda para quem precisava, mas, por traz do que parece ser uma preocupação genuína e humana, o que está posto é a criação de uma espécie de educação de segunda categoria, a educação para os desprovidos da sorte, uma espécie de segregação estrutural.

Cunha (2000b) enxerga na criação das EAA a primeira iniciativa dos positivistas dentro do regime republicano para a formação de força de trabalho nos ofícios manufatureiros. Para os detentores de recursos, o ensino secundário e superior era ofertado por outro Ministério, o da Justiça e Negócios Interiores. Para estes, uma educação teórica e bacharelesca; para aqueles, instrução elementar e prática. O fato de as EAA estarem subordinadas ao Ministério da Agricultura é a evidência da forma do pensar a educação para Nilo Peçanha e também para parte da classe dominante da época (Carvalho, 2017), realçando a separação entre um ensino para o pensar e outro para o fazer.

Nos termos de Manacorda (1989), essa divisão denota a diferença entre a ideia secular da formação dos homens das “ÉPEA” (palavras), que falam, são cultos, possuem bens materiais e o poder, e os princípios da “ÉRGA” (ações), que formam homens que apenas fazem, produzem e nada possuem. O ÉRGA, a “mão na graxa”, produz a percepção de instituições de ensino de segunda classe e destinadas às classes mais desfavorecidas (Houghton, 2020) e uma visão estigmatizada (Elias & Scotson, 2000). Em oposição, ÉPEA reveste-se da ideia de universidade, de tradição quase milenar, é uma espécie de status superior. Para Lessa (2005), trata-se de um equívoco, “a Universidade não é o andaime da educação nacional, e sim seu alicerce. ... É o modo civilizado de presença, em vez da baioneta e da moeda dominante” (p. A18).

Não obstante, para um público pobre e sem perspectiva de instrução gratuita para o trabalho, a oportunidade financiada pela União não tinha precedentes. Entretanto,

o que estava em pauta para a maioria das classes dirigentes do nosso início republicano não era, apesar da retórica da maioria e da convicção de alguns poucos dirigentes, uma preocupação com as novas demandas de um mercado de trabalho urbano que se expandia e cuja divisão do trabalho se tornava cada vez mais complexa em função do crescimento industrial e do setor terciário. Era a velha crença elitista de que a educação por si só seria o motor da transformação das classes pobres em cidadãos prontos para a modernidade e ciente dos seus deveres para com a ordem republicana mantida e liderada por elas.

(Carvalho, 2017, pp. 20-21)

O fato de destaque é que Nilo Peçanha instituiu o ensino profissional primário e gratuito; as EAA representavam para as crianças desprovidas de sorte o lugar para elas aprenderem o mais elementar do ensino formal: “ler, escrever e contar” (Medeiros Neta et al., 2012, p. 98). As EAA foram criadas em um contexto de aumento da população nas cidades. Em 1900 a população registrada no Annuario Estatístico era de 17.418.556 habitantes (Brazil, 1916).

O Decreto 7.566, de 23 de setembro de 1909 (Brazil, 1909), no Art. 1º diz que “em cada uma das capitaes dos Estados da Republica o Governo Federal manterá, por intermedio do Ministerio da Agricultura, Industria e Commercio uma Escola de Aprendizes Artífices, destinada ao ensino profissional primario e gratuito”. Em 1909, o Brasil era dividido politicamente em 20 estados, mais o Distrito Federal, que na época se localizava no Rio de Janeiro. Apesar de o Decreto n° 7.566 afirmar que foram criadas EAA nas capitais da república), o estado do Rio Grande do Sul não teve uma EAA criada, e o mesmo ocorreu com o Distrito Federal.

Consta, no Art. 45 do Decreto n° 9.070/1911 (Brazil, 1911a), que “fica mantido como escola de aprendizes artifices no Rio Grande do Sul o Instituto Technico Profissional da Escola de Engenharia de Porto Alegre, emquanto não fôr estabelecida a escola da União”. Quanto ao Distrito Federal, no Parágrafo único do Art.1° do Decreto n° 9.070 (Brazil, 1911a) está registrado que “Será tambem creada no Districto Federal uma escola de aprendizes artifices, logo que o Congresso habilite o Governo com os meios necessarios á sua installação e manutenção”.

O Distrito Federal nunca teve uma EAA. A EAA do Estado do Rio de Janeiro foi instalada em Campos. O Presidente do Estado Rio de Janeiro na época, Oliveira Botelho, recusou-se a prestar o auxílio solicitado para a instalação da escola no estado, fato que levou a Câmara Municipal de Campos, por meio da Deliberação n° 14, de 13 de outubro de 1909, a “oferecer ao Governo federal o prédio necessário, que foi, afinal, aceito” (Soares, 1982, p. 60), dando origem à EAA do Rio de Janeiro.

Apesar da inauguração rápida, o início dos primeiros anos de funcionamento das EAA foi marcado por dificuldades relatadas, como a falta de prédios próprios, de infraestrutura, de instrutores qualificados e a evasão escolar (Carvalho, 2017).

Em 1920, o Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio criou uma comissão ou serviço de remodelação do ensino técnico profissional, cujo desafio “era vencer a falta de professores e mestre qualificados, o mal [sic] aparelhamento das oficinas e a inadequação dos edifícios para uma produção fabril e a oposição de alguns diretores às mudanças” (Medeiros Neta et al., 2012, p.100). A comissão criou um corpo de inspetores, na maioria oriundos da Escola de Engenharia de Porto Alegre, que se revezavam na direção das escolas em todo o país. Com a intenção de “aprimorar a formação das elites técnicas e a educação industrial do povo... [a comissão] iniciou a tarefa de tradução e elaboração de livros e manuais técnicos” (Medeiros Neta et al., 2012, p.100). As EAA receberam esses livros.

Essa comissão também fez um relatório que ficou conhecido como Relatório Lüderitz, em que apontou a necessidade de o ensino técnico no Brasil ter um Plano Nacional de Ensino para as EAA. O objetivo era abandonar a tradição artesanal e passar para o domínio da máquina e do trabalho industrial nessas escolas. Esse relatório inspirou a aprovação da Consolidação dos Dispositivos Concernentes às EAA pelo Ministério de Agricultura, Indústria e Comércio em 1926. Na prática, ocorreu um acréscimo de dois anos no tempo de duração dos cursos – de quatro para seis anos – e as oficinas foram desdobradas em seções de ofícios correlatos. Desse modo, passou-se a ter, ao invés das oficinas, a Seção de Trabalhos de Madeira, de Metal, de Artes do Couro, de Fabrico de Calçados, de Feitura do Vestuário, de Artes Decorativas, entre outros. A comissão foi extinta em 1931. No mesmo ano, foi criada a Inspetoria de Ensino Profissional Técnico, com o foco de conduzir, orientar e fiscalizar o ensino profissional técnico no Brasil (Medeiros Neta et al., 2012).

Com os primeiros passos na direção da ÉPEA sendo dados e considerando que as escolas militares nunca fizeram parte de um sistema fora da esfera militar, tinha-se nas 19 EAA o embrião da educação profissional, científica e tecnológica no Brasil, os estabelecidos de um sistema ainda invisível e estigmatizado.

Alguns passos da ÉRGA para a ÉPEA e mais recém-chegados

Na Era Vargas (1930-1946) ocorreu o enfrentamento de hábitos de supremacia de interesse regional sobre o nacional, a tentativa do rompimento com a ‘vocação natural’ brasileira para a especialização primário-exportadora e a adesão aos dogmas liberais dos mercados autorregulados (Saviani Filho, 2013, p. 856). Para tal, o Estado passou a intervir na economia e a ajudar a sociedade a ascender para o progresso. Vargas tinha um perfil autoritário, entretanto, não elitista – foi o primeiro presidente que buscou legitimar sua atuação nas bases, com o povo. Com o Estado Novo (1937-1945), foi chamado de ditador, porém, possivelmente não conseguiria concluir a revolução econômica, política e social iniciada em 1930 sem a nova atitude. Com o Estado Novo, o Brasil teve como característica o início de um projeto de desenvolvimento nacional com o foco na indústria (Saviani Filho, 2013).

Na Era Vargas houve a criação e a mudança da jurisprudência em todas as áreas, inclusive na educação. O Decreto n° 19.402, de 14 de novembro de 1930 (Brasil, 1930), cria uma Secretaria de Estado com a denominação de Ministério dos Negócios da Educação e Saúde Pública. O Art. 2º destina ao novo Ministério assuntos relativos ao ensino, saúde pública e assistência hospitalar. O Art. 5º nomeia as instituições públicas que pertencem ao novo Ministério, e entre elas estão as EAA e a Escola Normal de Artes e Ofícios Venceslau Braz.

Em 1937, antes do início do Estado Novo, a Lei nº 378, de 13 de janeiro (Brasil, 1937b), dá nova organização ao Ministério da Educação e Saúde Pública. O Capítulo I, Art. 1° atribui nova nomenclatura ao Ministério da Educação e Saúde Pública, que passa a denominar-se Ministério da Educação e Saúde. Na secção III, que trata dos serviços relativos à educação, o Art. 37 afirma que “a Escola Normal de Artes e Officios Wencesláo Braz e as EAA, mantidas pela União, serão transformadas em lyceus, destinados ao ensino profissional, de todos os ramos e gráos”.

A Escola Normal de Artes e Ofícios Wenceslau Braz havia sido criada no Distrito Federal pelo Decreto n° 1880/1917. No entanto, o prefeito do Distrito Federal, Paulo de Frontin, em 09 de novembro de 1918, “alegando os altos custos que essa escola traria à prefeitura, quis fechar a instituição, o que gerou protestos no Rio de Janeiro” (Brasil, 2017, p. 11). O impasse teve desfecho com a doação da Escola Normal para o governo Federal em 27 de junho de 1919. A escola Wenceslau Braz teve um papel fundamental junto às EAA, pois “caracterizou-se por ser a única escola pública voltada para a formação de docentes habilitados a lecionarem nas escolas de aprendizes artífices” (Brasil, 2017, p. 11).

Embora a Lei nº 378 tenha transformado em lyceu as EAA e a Escola Normal de Artes e Ofícios Wenceslau Braz, o termo lyceu na nomenclatura dessa escola não foi encontrado nos registros pesquisados. A explicação pode estar no fato de que, a partir de 1937, essa Escola foi destruída e reconstruída, e nesse tempo não funcionou e nem assumiu o termo lyceu no nome. Quando voltou a funcionar, a legislação era outra, e passou a se chamar Escola Técnica Nacional.

O Relatório do Ministério do Planejamento e Coordenação Geral no Setor para Educação e Cultura (Brasil, 1968) registra que “a referida lei [Lei n° 378/1937] pretendia transformá-la [a Escola Técnica Normal] em Liceu juntamente com as escolas de aprendizes de artífices” (p. 14). A nomenclatura posterior da Escola Técnica Normal foi “Escola Técnica Federal Celso Suckow da Fonseca”, por meio do Decreto n° 181/1967.

Como a Escola Normal de Artes e Ofícios Wenceslau Braz, nos moldes em que vinha operando, não atendia satisfatoriamente a essas novas expectativas do capital industrial, o governo federal decidiu pelo fechamento, em 1937, transformando-a, bem como as escolas de aprendizes e artífices existentes no país, em liceus destinados ao ensino técnico em todos os ramos e graus. Derrubado o seu prédio, construíram no mesmo local, a Escola Técnica Nacional, com a filosofia de formar artífices, mestres e técnicos para a indústria nacional, e não mais para preparar docentes e pessoal administrativo voltado para o ensino industrial.

(Brasil, 2017, p.15)

A criação dos lyceus é consequência das “novas expectativas do capital industrial”, que estruturaram a educação profissional, criando a Divisão do Ensino Industrial. Ademais, a Lei n°378/1937 alterou os objetivos atribuídos às originárias EAA, pois o contexto da indústria nacional era novidade e exigia pessoas qualificadas para desempenharem trabalhos específicos, com formação própria (Paiva, 2013). Passava-se, assim, dos serviços manuais e autônomos, para a preparação profissional de mão de obra para a indústria, os transportes, as comunicações e a pesca. Mais um passo na direção da ÉPEA estava dado.

No interior da Lei n.º 378 (Brasil, 1937b), ainda, ao dar nova organização para o Ministério da Educação e Saúde Pública, o artigo 34 estabelece que “A Universidade do Rio de Janeiro e a Universidade Technica Federal se reunirão para formar a Universidade do Brasil”. A Universidade do Brasil, resultado da fusão de 15 escolas ou faculdades, 16 institutos e da incorporação do Museu Nacional (Fundação Getulio Vargas. Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil [FGV CPDOC], 2021), foi transformada na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em 1965. Na literatura, a Universidade Technica Federal é uma simples menção. Mesmo com a denominação “Technica” em sua gênese e embora contasse com braços de excelência, perfeitamente amoldados com a ideia de uma rede, como o Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (COPPE), a Universidade do Brasil nunca foi mencionada no sistema que ganhava forma, o que denota a clara distinção, e também o estigma, entre a ÉPEA e a ÉRGA.

Em 1937, o Brasil passou a ter uma nova constituição (Brasil, 1937a). No artigo 129 está escrito que é dever da Nação, Estados e Municípios assegurar educação adequada para a infância e a juventude. O texto do artigo segue com a seguinte frase: “O ensino pré-vocacional profissional destinado às classes menos favorecidas é em matéria de educação o primeiro dever de Estado”. O ensino profissional continuava fazendo referência às classes “menos favorecidas”, tal qual era o foco das EAA quando criadas (Rodrigues, 2002).

Ainda no Estado Novo, outra legislação impactou as originárias EAA: o Decreto-lei n° 4.073/1942, denominado de Lei Orgânica do Ensino Industrial (Brasil, 1942a). O Título III trata da organização das escolas industriais e técnicas; já o Título IV trata da organização das escolas artesanais e das escolas de aprendizagem. Com essa lei, a organização do ensino profissional sofreu alterações, de modo que o ensino industrial não mais fazia parte do grau primário, pois equivalia ao nível médio, mas o ingresso ao nível superior só poderia acontecer em carreiras correlatas (Rodrigues, 2002).

O foco passou a ser o ensino industrial de grau secundário, transformação que representou uma ampliação de oferta de ensino – se antes atendia exclusivamente o grau primário, agora estendeu-se a ambos.

O Decreto-lei n° 4.073/1942 preparou as condições para o Decreto-lei n° 4.127/1942 (Brasil, 1942b), que “dispõe sobre as escolas técnicas e as escolas industriais federais, incluídas na administração do Ministério da Educação” e formaliza a composição da Rede Federal de Estabelecimentos de Ensino Industrial: Escolas Técnicas, Escolas Industriais, Escolas Artesanais e Escolas de Aprendizagem. Em seu Art. n°3, institui uma Escola Técnica Nacional no Rio de Janeiro, responsável pela formação dos professores para atuarem na Rede. Destaca-se que a Escola Técnica Nacional é oriunda da Escola Normal de Artes e Ofícios Wenceslau Braz (Ciavatta & Silveira, 2010).

As originárias EAA e os lyceus oriundos dessas escolas são contemplados no Decreto-lei n° 4.127/1942 (Brasil, 1942b), no Art.8°, que institui 11 escolas técnicas federais, e no Art.9°, que institui 13 escolas industriais federais, definindo o nome das instituições e os estados da federação que serão implantadas. Com o Decreto-lei, os lyceus passam à condição de Escola Técnica ou Escola Industrial. Com efeito, depois de pouco mais de três décadas, passou-se de 19 EAA voltadas para a aprendizagem de ofícios elementares para uma Rede composta por 24 instituições secundárias destinadas ao ensino técnico-industrial. A configuração da Rede, com lyceus localizados em 20 estados brasileiros, emanava da organização política da sociedade. Com a elevação do nível de ensino, em um ponto de vista, o papel de estabelecidos se firmava entre os que chegaram primeiro. Apesar de algumas chegadas posteriores, as 19 EAA criadas em 1909 eram basicamente a Rede.

Rede federal de estabelecimentos de ensino industrial no nível superior

Na República Populista (1946-1964), o Brasil teve dez presidentes, do 15.°, José Linhares (1945-1946), ao 24.°, João Goulart (1961-1964). Em termos globais, o início desse período corresponde ao fim da II Guerra Mundial. Entretanto, a partir de 1942, a economia mostrou um aumento significativo da exportação de produtos brasileiros para o mercado mundial, inclusive com produtos de alto consumo interno, como carne e arroz; no mercado interno, ocorreu uma supervalorização dos preços do café (Cano, 2015). Na esfera política, aconteceu uma crise cambial em 1947, por causa da política anti-inflacionária, da escassez de dólares no pós-guerra e da sobrevalorização da taxa cambial em 1946, entre outros fatores (Cano, 2015; Fontaine, 2020). Em 1954, com o Brasil imerso em uma crise política e econômica, Getúlio Vargas suicidou-se. De 1956-1961, o país viveu uma política de interiorização, com muito gasto público e um Plano de Metas dirigido por Juscelino Kubitschek (Lafer, 2002).

Na esfera da educação, Juscelino Kubitschek exarou a Lei n° 3.552/1959 (Brasil, 1959b), que dispõe sobre uma nova organização escolar e administrativa dos estabelecimentos de ensino industriais do Ministério da Educação e Cultura, e o Decreto n° 47.038/1959 (Brasil, 1959a), que aprovou a lei do regulamento do ensino industrial, deu o tom do ensino industrial para a realidade econômica e social do Brasil e esclareceu que o Ensino Industrial se insere no ramo da educação de grau médio. Seu Art. 53° indica as 23 Escolas Federais que, por comporem a Rede Federal de Estabelecimentos de Ensino Industrial do Ministério da Educação e Cultura, deveriam seguir a regulamentação.

A justificativa para a organização e a regulamentação do ensino industrial foi o ajuste das escolas para se adequarem à nova Constituição de 1946 (Rodrigues, 2002).

No início de 1961, Jânio Quadros assumiu a gestão do país imerso nas dívidas com o Fundo Monetário Internacional. Após sete meses no poder, renunciou ao cargo. João Goulart assumiu. Os anos subsequentes foram de descontrole fiscal, inflação próxima aos 100%, crescimento econômico baixo (0,6 % em 1963). O cenário para o golpe estava posto, os grupos políticos conservadores depuseram João Goulart, e no comando da política brasileira, “reproduziram por vinte anos uma prática discricionária, autoritária, arbitrária e excludente. Inauguraram e reproduziram o tempo da ditadura no Brasil pós 1964” (Delgado, 2012, p. 189).

Na fase de Ditadura Militar (1964 – 1985), o Brasil teve sete presidentes e um novo modelo econômico, o nacionalismo desenvolvimentista para a internacionalização da economia (Giorgi & Almeida, 2014). Como consequência, as políticas educacionais precisaram adequar-se ao comando da subordinação da educação à produção – em outras palavras, a objetivação que havia chegado ao trabalho das fábricas era imposta à educação, via pedagogia tecnicista.

Nessa fase, durante a gestão de Humberto Castelo Branco (1964-1967), a Lei n° 4.759/1965, que dispõe sobre a denominação e a qualificação das Universidades e Escolas Técnicas Federais, alterou mais uma vez a nomenclatura das originárias EAA. O Art. 1º afirma que “as Universidades e as Escolas Técnicas da União, vinculadas ao Ministério da Educação e Cultura, sediadas nas capitais dos Estados serão qualificadas de federais e terão a denominação do respectivo Estado” (Brasil, 1965).

No período de Ditadura Militar foi assinada a segunda versão da Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional (LDB), promulgada em 1961, a LDB n° 5.692/71 (Brasil, 1971), que trata da reforma e da profissionalização do ensino médio. O mundo do trabalho estava carente de mão de obra qualificada para atuar no desenvolvimento industrial, e a escola era vista como instituição que deveria atender as demandas do setor produtivo. Com efeito, a LDB de 1971 tinha por objetivo a contenção da crescente demanda para o ensino e a profissionalização compulsória. Havia urgência de técnicos de nível médio para o ingresso imediato no trabalho e havia jovens que não poderiam ou não almejavam o ingresso na universidade e poderiam integrar a formação profissional (Giorgi & Almeida, 2014).

No contexto da ditadura, foi publicada a Lei nº 6.545/1978 (Brasil, 1978), que transformou a Escola Técnica Federal do Paraná no Centro Federal de Educação Tecnológica do Paraná (CEFET-PR); a Escola Técnica Federal de Minas Gerais, no Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG); e a Escola Técnica Federal Celso Suckow da Fonseca, no Centro Federal de Educação Tecnológica de Rio de Janeiro (CEFET-RJ). O Art. 2.º da lei estabeleceu que a educação tecnológica tinha por objetivo ministrar, em grau superior, graduação e pós-graduação lato e stricto sensu; cursos técnicos (nível de 2.º grau); cursos de educação continuada, e realizar pesquisas aplicadas, principalmente na indústria, na área de tecnologia. A Rede, assim, chegava ao nível superior. Frigotto et al. (2005) afirmam que “o ensino superior nos CEFETs é uma construção histórica e social” (p. 17) e que a dualidade presente no ensino médio chega ao ensino superior com os CEFET.

Embora fosse intenção do Ministério da Educação (MEC) transformar as Escolas Técnicas Federais da Bahia, de Pernambuco e de São Paulo em CEFET, essa decisão não foi tomada (Brasil, 1992). Os CEFET Minas Gerais, Paraná e Rio de Janeiro, transformados, adentraram no ensino superior em cursos de graduação, desenvolvidos desde a década de 1970, em áreas de conhecimento próprias à natureza de uma Instituição do Sistema de Educação Tecnológica do País: as Engenharias Industriais. Na época, também com estreita relação com o setor produtivo, foram implementados os Cursos Superiores de Formação de Tecnólogo em subáreas da tecnologia. O avanço para a pós-graduação foi natural e aconteceu nos três CEFET, com a implantação de mestrados em Educação Tecnológica (Bastos, 2015).

No período, novas alterações foram impostas pelo Decreto n° 87.310 (Brasil, 1982), que regulamentou a Lei de 1978. Entre as alterações introduzidas estão: o ensino superior como continuidade do ensino técnico de 2.° grau, diferenciado do sistema de ensino universitário; a atuação exclusiva na área tecnológica; e a realização de pesquisas aplicadas e prestação de serviços.

Com o redesenho produzido pelo aparato legal no interior da Rede, os CEFET assumem uma espécie de liderança (Pilatti, 2017). O sistema permaneceu sem novos entrantes ou alterações até 1986.

Entre avanços e recuos, nasce a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica

Na Nova República (1985-presente), Tancredo Neves, eleito pelo voto direto, não foi empossado por ter falecido antes. José Sarney, seu vice, assumiu e respondeu pela presidência até 1990. A década, conhecida na literatura econômica como a “década perdida”, ficou marcada por planos de estabilização econômica que tinham como objetivo o controle do processo inflacionário. A economia brasileira apresentava elevadas taxas de inflação e baixos níveis de crescimento econômico. A reversão do quadro teve início em 1994, com o plano Real (Ianoni, 2009).

Nesse período, o Brasil teve outra Constituição, a Constituição Cidadã de 1988. Na área educacional, a Escola Técnica do Maranhão foi transformada em Centro Federal de Educação Tecnológica do Maranhão (CEFET-MA) pela Lei n° 7.863/1989 (Brasil, 1989). A transformação, sem observar critérios técnicos, aconteceu de forma isolada no estado de origem do então presidente José Sarney (Pilatti, 2017). Ainda no Governo Sarney, com o Programa de Expansão e Melhoria do Ensino Técnico do Governo Federal, ocorreu a interiorização dos CEFET, com a criação de unidades descentralizadas no interior dos respectivos Estados.

Em 1990, a presidência do Brasil passou a ser de Fernando Collor de Mello, afastado em 1992 por processo de impeachment, e seu vice, Itamar Franco, ficou na presidência até 1995. Foi na gestão de Itamar Franco que a Lei n° 8.711/1993 (Brasil, 1993b) transformou a Escola Técnica da Bahia em Centro Federal de Educação Tecnológica da Bahia (CEFET-BA).

A Lei n° 6.545/1978 passou a reger os cinco CEFET existentes (MA, BA, PR, MG e RJ, este último não originário de uma EAA). Na gestão do presidente Itamar Franco outros CEFET foram criados pela Lei n° 8.948/1994 (Brasil, 1994)., vinculados à Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica (SETEC), e tiveram suas implantações efetivadas gradativamente por decreto específico de cada centro, obedecendo ao que estabelece o Ministério da Educação e do Desporto, ouvido o Conselho Nacional de Educação Tecnológica. Essa lei também criou o Sistema Nacional de Educação Tecnológica, constituído pelos cinco CEFET já existentes, pelas Escolas Técnicas Federais criadas em 1959 e pela Escolas Técnicas e Agrotécnicas Federais criadas pela Lei n° 8.670/1993 (Brasil, 1993a).

Concentrando-se nos anos de 1999, 2001 e 2002, durante a gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2003) foram emitidos, sem número, os decretos específicos de que trata a Lei n° 8.948/1994 para a implantação efetiva dos novos CEFET.

Em 1996, a proposta do MEC de Reforma da Educação Profissional entrou na Câmara dos Deputados como o Projeto de Lei n° 1.603/1995, tramitando concomitantemente à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Por razões políticas, o Projeto de Lei foi retirado da Câmara dos Deputados, “mas, com a aprovação da LDB 9.394/1996, o antigo projeto que foi ‘engavetado’, retornou como Decreto 2.208/1997, visando regulamentar a matéria, cujas as [sic] linhas básicas já estavam incorporadas no texto da LDB” (Ivers, 2000, p. 69). Para regulamentar as diretrizes da LDB (Brasil, 1996) e do Decreto 2.208/1997 (Brasil, 1997), foi criado o Programa de Expansão de Educação Profissional (PROEP), que contemplava três subprojetos, um dos quais tornava os CEFET, as Escolas Técnicas Federais e as Escolas Agrotécnicas Federais em centros de referência para o desenvolvimento da Educação Profissional do Brasil (Ivers, 2000).

O Decreto n° 2.208/1997 (Brasil, 1997) mexeu com a estrutura dos CEFET, sobretudo com a imposição contida no Artigo 5°: “A educação profissional de nível técnico terá organização curricular própria e independente do ensino médio, podendo ser oferecida de forma concomitante ou sequencial a este”. No tocante à universalização e à democratização do ensino médio, esse Decreto evidencia que tipo de sociedade se desejava à época, pois ele “restabeleceu o dualismo entre educação geral e específica, humanista e técnica, destroçando, de forma autoritária, o pouco ensino médio integrado existente no período, mormente da rede CEFET” (Frigotto, 2018a, p. 50). Na prática, o ensino técnico de 2.° grau, lócus privilegiado da atuação dos CEFET, não poderia mais ser ofertado de forma concomitante ao ensino médio.

No caso do CEFET-PR, que na época era o principal CEFET do Brasil (Pilatti, 2017), em 12 de dezembro de 1997 ocorreu uma reunião formal cuja pauta era a criação de um projeto de transformação da instituição em universidade especializada (Matos, 2009). Em 19 de outubro de 1998, a Deliberação n° 16/98, do Conselho Diretor do CEFET-PR, alicerçada no art. 52 da nova LDB, que previa universidades especializadas por campo do saber, aprovou o projeto de transformação em universidade tecnológica. Na sequência, o projeto foi sumariamente refutado pelo governo de Fernando Henrique Cardoso (Pilatti, 2017). A identidade, nó da instituição, uma identidade social e grupal nos termos de Elias (1994), foi fortalecida com a recusa.

De forma quase concomitante e com direção semelhante, mas com contornos distintos, a Escola Federal de Engenharia de Itajubá, vislumbrando possibilidades abertas pela política expansionista em curso e pela nova LDB, também pleiteou a condição de universidade especializada na área tecnológica. Em 1998, passou de dois para nove novos cursos de graduação (Universidade Federal de Itajubá [UNIFEI], 2021). Em 2002, o presidente Fernando Henrique Cardoso sancionou o projeto de transformação da Escola Federal de Engenharia de Itajubá em universidade. No entanto, mesmo mantendo o foco nos cursos de engenharia, a Universidade Federal de Itajubá (UNIFEI) foi criada sem a condição especializada (UNIFEI, 2021). Sem vinculação com a SETEC, a universidade nasceu tradicional.

Em 14 de novembro de 2002, a Instrução Normativa Conjunta (INC) 3.679 (Brasil, 2002) sugeria ao Ministério da Educação o credenciamento do CEFET-PR, do CEFET-RJ e do CEFET-MG em universidades especializadas na área tecnológica, mas o credenciamento não aconteceu.

Durante os anos de 2003 a 2011, o Brasil teve como presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Nesse período, foi protocolada, em 05 de novembro de 2003, a INC 1.135 (Brasil, 2003), que propunha ao MEC estudos para definir e normatizar critérios e condições para os CEFET se tornarem universidade tecnológica. A INC 2.571, de 19 de abril de 2004 (Brasil, 2004a), sugeriu ao Ministério da Educação a transformação dos CEFET – sem especificar qual deles – em universidades tecnológicas. Em 28 de setembro de 2004, o Projeto de Lei n° 4.183 (Brasil, 2004b), que dispõe sobre a transformação do CEFET-PR em universidade tecnológica, começou a tramitar. Outras INC foram protocoladas em sequência, tendo em comum o pedido de transformação de determinado CEFET em universidade tecnológica (Pilatti, 2017).

Com a ampliação sistemática do Sistema Nacional de Educação Tecnológica, uma nova organização para os CEFET foi estabelecida com o Decreto n° 5.224 (Brasil, 2004c), que aloca, pela primeira vez, as instituições no âmbito da educação tecnológica.

Das solicitações de transformação dos CEFET em universidade tecnológica, a que se concretizou foi a do Projeto de Lei n° 4.183, que se tornou a Lei n° 11.184/2005 (Brasil, 2005) e transformou o CEFET-PR na UTFPR. A instituição paranaense, apesar de indicadores semelhantes aos dos CEFET Minas Gerais e Rio de Janeiro, era a única cujos indicadores de universidade eram estabelecidos pela legislação da época.

A maioria dos CEFET, mesmo sem indicadores, inspirando-se no exemplo do CEFET-PR, protocolaram, por meio de parlamentares, pedidos de transformação em universidade. Os movimentos mais robustos em função dos indicadores acadêmicos e da importância no interior do sistema foram os do CEFET-MG e do CEFET-RJ. A forte pressão política dos CEFET, de alguma forma, produziu o Decreto n° 6.905/2007 (Brasil, 2007) e a Chamada Pública 2 (dezembro de 2007), que possibilitava aos CEFET o envio de propostas de transformações em IF até 31 de março de 2008 (Pilatti, 2017).

Em 2008, a Lei n° 11.892, de 29 de dezembro (Brasil, 2008), instituiu a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica. O objetivo da Rede é “ministrar educação profissional técnica de nível médio, prioritariamente na forma de cursos integrados, para os concluintes do ensino fundamental e para o público da educação de jovens e adultos” (Seção I, Art. 5°, I). Foram criados 38 IF. Há de se destacar que muitos desses institutos têm campi, ampliando os pontos de ensino no interior do Brasil, e também que “o status de universidade dos IF foi uma solução negociada para impedir que grande parte dos CEFETs pressionassem politicamente” (Frigotto, 2018b, p. 130) o governo para que todos se tornassem universidade. Na prática, transcorrida mais de uma década da criação da rede, os IF têm uma identidade de rede apenas no aspecto jurídico e administrativo, o que difere muito da identidade de rede estabelecida pelas escolas técnicas federais ou pelos CEFET. Entre os motivos que justificam essa falta de identidade de rede está a própria configuração dos institutos – variada, com muitos campi em um amplo espaço físico; verticalidade com uma diversidade de focos: ensino médio técnico, ensino médio integrado, PROEJA na modalidade técnico e integrado, PRONATEC, licenciaturas, pós-graduação e extensão; e falta de estímulo e colaboração do MEC com essa identidade: recebe os reitores dos IF isoladamente – e não coletivamente –, para tratar questões pontuais (Frigotto, 2018b).

Além dos 38 IF criados, compõem a Rede: a UTFPR, o CEFET-MG, o CEFET-RJ e as Escolas Técnicas vinculadas às Universidades Federais. Em 2012 foi incorporado o Colégio Pedro II, localizado no Rio de Janeiro.

Entre as instituições que pertencem à Rede estão as 19 originárias EAA fundadas em 1909, 17 das quais foram transformadas IF de forma isolada, ou por aglutinação de instituição, ou por junção de autarquias. O CEFET-MG mantém a nomenclatura atribuída pela Lei n° 6.545/1978 (Brasil, 1978) e a UTFPR, pela Lei n° 11.184/2005 (Brasil, 2005). O CEFET-RJ faz parte da Rede. No espaço, a distinção entre os estabelecidos e os outsiders tornaram-se patentes. Os CEFETões e os CEFETinhos conviviam num mesmo espaço (Pilatti, 2017).

Na ótica de Elias e Scotson (2000), para a manutenção do reconhecimento desejado, os membros dos grupos superiores (estabelecidos) tornam-se reféns de seu papel de identificação e integração grupal, para preservar o valor maior do seu grupo. Esta preservação é incompatível, em alguma medida, com a intenção de transformação em universidade tecnológica.

A UTFPR, inicialmente, permaneceu vinculada à Secretaria de Educação Tecnológica (SETEC), junto com os demais CEFET. A vinculação era incongruente com o sistema universitário e não demorou para se te tornar insustentável. A incongruência estava na autonomia universitária, presente na UTFPR e inexistente nos IF. Com a autonomia, a UTFPR manteve sua atuação em nível de graduação e pós-graduação, em oposição às políticas educacionais determinadas pelo MEC.

A UTFPR tornou-se diferente no interior da Rede. A tensão não surgiu da perversidade de um ou de outro, mas por estarem em posições antagônicas. Tais posições são fatores comuns em espaços nos quais a mobilidade, no caso da Rede em direção da ÉPEA, é reivindicada. O deslocamento da UTFPR para a Secretaria de Educação Superior (SESu) foi simples. O mesmo não acontece com o CEFET-MG e CEFET-RJ, que estão na SETEC sem aceitar a condição de IF, isso porque “a engenharia política de criação dos IF resulta mais de um arranjo político do que de resultado da pertinência social e educacional da inusitada nova institucionalidade que abriga uma verticalidade de ofertas de níveis e modalidades de formação” (Frigotto, 2018b, p. 132). Os CEFET permanecem buscando a condição de universidade tecnológica e consequente mudança de lógica (Ciavatta, 2006). No interior do Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional Científica e Tecnológica (CONIF), com 41 instituições congregadas, é latente a tensão de abrir a possibilidade para novas universidades tecnológicas, desejada principalmente pelos estabelecidos, e o estigma por não querer pertencer a elas.

Os CEFET que se tornaram IF tiveram um recuo de nível de atuação, uma vez que a Lei n° 11.892/2008 (Brasil, 2008) deixa claro, nos objetivos da instituição, que “no desenvolvimento de sua ação acadêmica, o Instituto Federal, em cada exercício, deverá garantir o mínimo de 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para atender aos objetivos” (Art. 8°) de “ministrar educação profissional técnica de nível médio, prioritariamente na forma de cursos integrados, para os concluintes do ensino fundamental e para o público da educação de jovens e adultos” (Art.7°, inciso I). Entretanto, em dez anos, segundo Frigotto (2018a), “os dados da pesquisa indicam, especialmente nas instituições matrizes dos campi, os antigos CEFET, que o ensino médio só continua por força da obrigatoriedade da lei e a ênfase ... não é o médio integrado” (p. 50).

É fato que a UTFPR não foi um projeto de governo e muito menos de Estado (Pilatti, 2017). A transformação foi política e produziu em cascata múltiplas demandas na mesma esfera. Nos termos de Elias (2000), instalou-se nesse momento um nó entre a psicogenia e a sociogenia. Para evitar o desmonte do sistema federal voltado à formação técnica de nível médio, foi produzido o Decreto n° 6.905 (Brasil, 2007). Com a não pacificação do sistema, visível nos pleitos dos CEFET, novas medidas de enfrentamento estão em curso por parte do governo.

Uma das formas manifestas é o Projeto de Lei n° 1.453 (Brasil, 2021) que está em trâmite na Câmara do Deputados. No projeto é proposta a elevação do mínimo de 50 para 75% da oferta de vagas em cursos de educação profissional técnica de nível médio e a retirada da UTFPR da rede. Uma possível aprovação do projeto que tem o apoio governamental produzirá dois desdobramentos principais: o retorno do eixo de atuação dos integrantes da rede para o nível médio e, na prática, a inviabilidade para futuros pleitos de universidades tecnológicas.

Considerações finais

A reconstrução da história de educação tecnológica brasileira produziu um modelo verificável. É verificável porque entre os universais do processo do conhecimento está o caráter direcional do processo. Duas direções, polares e complementares, estão sempre juntas. Progressos nas duas direções podem suceder-se ou podem estar presentes simultaneamente, na forma de ajustes uniformes e variáveis. O conhecimento é perdido tanto quanto adquirido, o caráter direcional verificável é de avanço em relação ao ponto de partida. O avanço, na história contada, foi a retirada da “mão na graxa” para níveis mais elevados do ensino.

A Rede Federal de Educação Profissionalizante e Tecnológica tem sua origem em 1909, quando 19 EAA foram criadas. O ensino era ofertado com oficinas e destinado para menores “desprovidos de sorte”. Em 1937 ocorreu a primeira de sucessivas transformações, sempre para atender demandas políticas de um país que se industrializava. Em comum no trânsito até o presente, para atender à crescente complexidade de indústria, a elevação do nível de ensino. Se as EAA de 1909 ofertavam ofícios, a Rede atual é formada por instituições que ofertam o ensino superior. O ponto de inflexão na rede acontece com a transformação do CEFET-PR na primeira universidade tecnológica do Brasil. Depois da transformação, as políticas adotadas pelo MEC apontam para um retorno do eixo de ensino para o nível médio.

A Rede, enquanto uma configuração viva e pulsante, foi construída entre o estigma de ofertar uma espécie de ensino de segunda classe, destinada às classes mais desfavorecidas (ÉRGA) e a busca de um status superior (ÉPEA). O conflito interno, gerador de tensões, reside no intento dos estabelecidos, mas não apenas destes, de atingir objetivos que estão fora da Rede. Todos os que tiveram a opção do status do nível superior fizeram a opção por ele. O sistema constituído tornou-se mais unificado e integrado.

As diferenças entre os estabelecidos e os outsiders estão no poder e na autoimagem de superioridade. O tempo de residência na configuração é distintivo. A identidade também. Num espaço cingido por tensões, com uma pletora de fragmentos observáveis, o caso da UTFPR é emblemático.

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    Normalização, preparação e revisão textual: Leda Maria de Souza Freitas Farah leda.farah@terra.com.br
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    Apoio: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Brasil. (Bolsista do CNPq, Luiz Alberto Pilatti). Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    01 Dez 2020
  • Revisado
    05 Ago 2022
  • Aceito
    28 Ago 2022
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