Open-access O lugar da investigação qualitativa na Prática Baseada em Evidência

No discurso dos profissionais de saúde e até dos decisores políticos, emerge, com frequência, a alusão ao conceito da Prática Baseada na Evidência (PBE), reportando-se aos seus inúmeros benefícios, com os quais concordamos, mas a questão que nos norteia neste editorial é se realmente temos uma verdadeira PBE e qual o lugar da investigação qualitativa nessa prática.

A evolução das ciências da saúde e tecnologias afins tem permitido um aumento exponencial de estudos, todavia muitos dos resultados da pesquisa acabam não impactando direto na prestação de cuidados e na definição de políticas de saúde efetivas. A demora da inserção da evidência nos contextos de prática clinica(1-2), pelas barreiras que dificultam a transferência do conhecimento, nem sempre possibilitam a tomada da decisão por parte dos profissionais de saúde e da gestão, sendo baseada nos resultados mais pertinentes da pesquisa(1).

A etiologia dessa dificuldade é diversificada e toca em aspectos que vão desde a pertinência do desenho de estudo para a práxis até as dificuldades na divulgação, passando pela baixa cultura de investigação de algumas instituições ou baixa literacia dos clientes dos cuidados de saúde(1). Constata-se que, na clínica, os profissionais e os próprios pesquisadores predominantemente privilegiam modelos lineares e unidirecionais para levar passivamente a informação científica aos utilizadores e consumidores(1-2), prevalecendo os modelos quantitativos(1).

Uma reflexão rápida sobre a PBE permite-nos observar que nas diferentes classificações de níveis de evidência, os estudos randomizados e as revisões sistemáticas de literatura com metanálise encabeçam o ranking(1). A maioria desses estudos estão relacionados essencialmente com intervenções/procedimentos técnicos que são referenciados como sendo as melhores práticas, mas que, na realidade, não esgotam nem toda a atividade clínica(1,3-4) e nem possibilitam o cuidado centrado no cidadão.

Com o aumento da investigação produzida em um paradigma qualitativo, faltam (desde a produção até as recomendações e transferência da evidência) produtos, estratégias e mecanismos que facilitem a apropriação nos contextos onde se tomam decisões complexas sobre os processos de saúde-doença da população. A compreensão de realidades singulares dificilmente é apreendida a partir de um único prisma, então surge uma reflexão sobre o lugar e o espaço da investigação qualitativa na clínica em enfermagem(3) e na saúde.

Compartilhamos a opinião dos autores, que advogam que a investigação qualitativa é um campo inter e transdisciplinar que atravessa as humanidades, as ciências sociais e as ciências da natureza. Os autores são crentes de que o diálogo entre a teoria e a práxis, a ciência - métodos e técnicas, e o desenvolvimento humano multidimensional exige olhares disciplinares diferentes(3). Isso possibilita que a transformação qualitativa da investigação se traduza em um melhor conhecimento das transições e dos processos de adaptação face à saúde/doença, promovendo a qualidade dos cuidados, a literacia e a corresponsabilização na gestão da saúde(4).

Esse ‘desafio qualitativo’ para a PBE traz uma discussão frutífera para os investigadores e defensores de níveis de evidência a partir de estudos randomizados ou de metanálise(1). Porém, o desenvolvimento de pesquisas qualitativas, capazes de situar essa natureza de pesquisa em um patamar apto a convergir paralelamente às pesquisas quantitativas, ainda hegemônicas no meio da saúde, traz potencialidades não só para um maior acesso a financiamento e a um aumento da publicação(3), mas essencialmente ao impacto na saúde e na qualidade de vida da população.

Nesse sentido, a imersão no processo de conhecimento e reflexão nos motiva a reunir nesta edição artigos oriundos do Congresso Ibero-Americano em Pesquisa Qualitativa (CIAIQ), realizado em Lisboa-Portugal no ano de 2019, contribuindo para o debate cientifico e público do lugar da investigação na PBE.

Referências bibliográficas

  • 1 Baixinho CL, Ferreira Ó, Marques FM, Presado MH, Cardoso M. Transição segura: um projeto da transferência do conhecimento para a prática clínica. In Costa AP, Sánches-Gómez MC, Cilleros MVM. (Eds). A prática na Investigação Qualitativa: exemplos de estudos (vol.1). Oliveira de Azeméis: Ludomédia; 2017, pp. 57-80.
  • 2 Oelke ND, Lima MADS, Acosta AM. Knowledge translation: translating research into policy and practice. Rev Gaúcha Enferm. 2015;36(3):113-7. doi: 10.1590/1983-1447.2015.03.55036
    » https://doi.org/10.1590/1983-1447.2015.03.55036
  • 3 Oliveira ESF, Baixinho CL, Presado MHCV. Pesquisa qualitativa em saúde: uma abordagem reflexiva. Rev Bras Enferm. 2019;72(4):830-31. doi: 10.1590/0034-7167.2019-720401
    » https://doi.org/10.1590/0034-7167.2019-720401
  • 4 Baixinho CL, Presado MH, Ribeiro J. Qualitative research and the transformation of public health. Cien Saude Colet. 2019;24(5):1583-3. doi: 10.1590/1413-81232018245.05962019
    » https://doi.org/10.1590/1413-81232018245.05962019

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    2020
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