RESUMO
OBJETIVO Caracterizar as bases de dados dos tribunais de justiça do Brasil como potencial ferramenta para a pesquisa em Saúde Coletiva em suas interfaces com as ciências jurídicas.
MÉTODOS Estudo transversal de natureza quantitativa e descritiva com foco em análise de gestão estratégica e sistemas judiciários.
RESULTADOS Foram identificadas e analisadas bases de dados utilizadas pela Justiça Comum nas Unidades da Federação para sistematizar processos judiciais. Verificou-se um total de 123 bases de dados nos tribunais de justiça por unidade de federação, com destaque para as regiões Sul e Nordeste, em contraste à região Norte que apresenta menor número de sistemas. Esse grande número de sistemas judiciais limita o acesso a operadores do direito, e dificulta levantamento de evidências por pesquisadores em saúde e, consequentemente, com impactos na gestão estratégica do Poder Executivo. Constatou-se limitações desde o design à extração transparente e democrática de dados pelos próprios usuários, bem como restrita integração entre bases.
CONCLUSÕES Embora avanços tenham sidos empreendidos nos últimos anos pelos tribunais de justiça para unificação dessas bases, a multiplicidade de sistemas de informação utilizados na Justiça Comum estadual complexifica a gestão do conhecimento, limita o desenvolvimento de pesquisas, mesmo quando realizados por advogados ou pesquisadores da área jurídica, gera lentidão na extração de dados para a gestão pública. Reconhece-se a necessidade de esforços adicionais para a padronização, bem como para aprimoramento dessas bases de dados, ampliando acesso, transparência e integração com vistas a um olhar transdisciplinar entre o campo do Direito e da Saúde Coletiva.
Decisões Judiciais; Jurisprudência; Recursos para a Pesquisa; Direito Sanitário; Saúde Pública
ABSTRACT
OBJECTIVE To characterize databases of the courts of justice of Brazil as a potential tool for research in Collective Health, in its interface with the legal sciences.
METHODS Cross-sectional study of quantitative and descriptive nature, focusing on analysis of strategic management and judicial systems.
RESULTS Databases used by the Common Justice in the Federation Units to systematize judicial processes were identified and analyzed. A total of 123 databases were found in the courts of justice per state, with emphasis on the South and Northeast regions, in contrast to the North region, which has a smaller number of systems. This large number of judicial systems limits access to legal operators, and hinders the collection of evidence by health researchers and, consequently, impacts the strategic management of the Executive Branch. There were limitations from design to transparent and democratic data extraction by the users themselves, as well as restricted integration between bases.
CONCLUSIONS Although advances have been made in recent years by the courts of justice to unify these databases, the multiplicity of information systems used in the Common State Justice complicates the management of knowledge, limits the development of research, even when carried out by lawyers or researchers in the legal area, as well as generates slow data extraction for public management. It is recognized the need for additional efforts for standardization, as well as for improvement of these databases, expanding access, transparency and integration with a view to a transdisciplinary look between the field of Law and Collective Health.
Judicial Decisions; Jurisprudence; Resources for Research; Health Law; Public Health
INTRODUÇÃO
Os caminhos para reflexão e pesquisa sobre potenciais conflitos entre sistema político e jurídico na gestão da saúde pública passam, necessariamente, pelo reconhecimento de aspectos que envolvem distribuição e alocação de recursos escassos na sociedade1. Particularmente em um país com a dimensão territorial do Brasil, com graves desigualdades sociais que repercutem em padrões epidemiológicos distintos e transicionais, torna-se ainda mais complexo determinar prioridades no sistema de saúde2.
O número de ações no Judiciário requerendo bens e serviços em saúde tem crescido de modo significativo no Brasil, sobretudo após 2007, ensejando o fenômeno da judicialização do direito à saúde pública, que neste trabalho é sinônimo de ações judiciais em face de um ente estatal, demandando bens e/ou serviços em saúde3.
O maior envolvimento do Poder Judiciário concernente às políticas de saúde, compõe uma discussão maior sobre a “judicialização da política”, expressão equivalente a “politização da justiça”, reflexo da sua expansão no processo decisório das democracias contemporâneas. Nessa direção, a judicialização do direito à saúde surge como um conflito entre o sistema institucionalizado de ação política e o sistema jurídico4.
A judicialização do direito à saúde tem gerado debates cada vez mais frequentes tendo em vista seus múltiplos usos e sentidos5, por um lado reforça a dimensão jurídica da cidadania, materializando um direito assegurado na Constituição Federal de 1988, que em seu Artigo 196, afirma ser a saúde um direito de todos e um dever do Estado6; por outro, pode reforçar conflitos na governança federativa do Sistema Único de Saúde, limitando a capacidade do poder executivo de planejar, implantar e acompanhar as políticas de saúde por meio de critérios racionais e equitativos7. O caráter individual das intervenções e o privilégio de pessoas com maior conhecimento, recursos financeiros ou outras condições de acesso diferenciado à Justiça também são apontados como problemas críticos8.
Por certo, um dos efeitos do fenômeno dessa judicialização é a expansão das interfaces entre pesquisas nos campos das ciências da saúde e jurídicas. Verifica-se aumento no número de pesquisas e artigos publicados sobre o tema, com vistas ao dimensionamento e maior compreensão desse fenômeno3,9. Por exemplo, há pesquisas com análise de bases de dados do Judiciário no estado do Rio de Janeiro sobre judicialização da saúde10,11, no estado do Ceará sobre o fenômeno com reconhecimento dos limites para análise à luz da epidemiologia3, e Distrito Federal com a análise da realidade da judicialização em saúde12. Em uma abordagem mais ampliada para o país, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) buscou caracterizar o fenômeno e trazer reflexões adicionais sobre o tema1,13.
Ao passo que o fenômeno da judicialização cresce, verifica-se a fragilidade dos sistemas de informação do Judiciário na sistematização de dados e de sistemas de acesso público a vários tribunais com potencial de acesso e utilização dos sistemas de informação. Como resultado, pode impossibilitar ou limitar análises fundamentais para implementação de políticas públicas fundamentadas em evidências científicas, em virtude de limitações e inconsistências entre as bases de dados, além de subdimensionamento dos processos de judicialização da saúde1,9,11,13.
As críticas e limitações indicam a necessidade de repensar e conhecer melhor as diferentes bases de dados, muitas das quais sem acesso a pesquisadores3,11. O presente estudo tem como objetivo caracterizar as bases de dados dos Tribunais de Justiça (TJ) do Brasil como potencial ferramenta para a pesquisa em Saúde Coletiva em suas interfaces com as ciências jurídicas. O reconhecimento da quantidade e qualidade das informações disponíveis é estratégico para análises mais consistentes e propositivas, o que inclui melhor delimitação do fenômeno da judicialização da política pública de saúde no Brasil.
MÉTODOS
Desenho do Estudo
Estudo transversal descritivo de abrangência nacional a partir de dados coletados junto aos Tribunais de Justiça Estaduais do país. O processo de coleta de dados foi realizado entre 2019 e 2021 com identificação e caracterização de bases de dados físicas e virtuais utilizadas para sistematização dos processos judiciais e para reconhecimento do processo de protocolo das ações relacionadas à saúde pública.
O estudo foi realizado em duas etapas, ambas fundamentadas em requerimentos formais de dados e informações junto às ouvidorias dos TJ via preenchimento de formulários eletrônicos disponíveis de cada um, processo complementado por meio de consultas sistemáticas a websites oficiais. Todas as manifestações seguiram as regras disponíveis nos endereços eletrônicos e nas diretrizes internas direcionadas por cada tribunal.
A primeira etapa junto às ouvidorias foi baseada em composição de demanda via e-mail, contato telefônico e formulário eletrônico específico disponível nos sites dos TJ, seguindo protocolos internos específicos em cada Unidade da Federação (UF). O acompanhamento da solicitação era realizado com o número de protocolo gerado no ato da solicitação.
Os TJ deveriam responder a três itens específicos:
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Quais os nomes e as datas de implementação dos sistemas utilizados pelos operadores do direito desta UF para registrar e acompanhar os processos judiciais físicos protocolizados?
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Quais os nomes e as datas de implementação dos sistemas utilizados pelos operadores do direito desta UF para registrar e acompanhar os processos judiciais virtuais protocolizados?
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Alguma observação que o TJ entenda pertinente.
Concluída a primeira etapa, optou-se por complementar os dados obtidos a partir de uma segunda etapa, que consistiu em enviar novas solicitações aos TJ para detalhamento adicional do processo de protocolo de ações que versam sobre saúde pública a partir de três questionamentos:
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Nos sistemas de informação disponíveis, sistemas referidos pelo tribunal na primeira etapa, qual a ramificação, na árvore de assuntos, para classificar e protocolar uma ação que trate de saúde? Existe diferença no protocolo quando se trata de saúde pública e saúde privada?
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É possível realizar o protocolo de um processo na competência da fazenda pública que seja da área da saúde, sem que no cadastro seja identificado que seja da saúde, por exemplo: cadastrar como “ato administrativo/anulação” – mas ser referente à oferta de medicamentos?
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O setor de distribuição faz adequação/compatibilização no cadastro de ações, corrigindo eventuais erros de peticionamento por parte dos profissionais que fazem os cadastros?
Análise de Dados
Para a primeira etapa, em posse das informações coletadas, os dados foram consolidados e organizados em tabelas, com análise descritiva preliminar. Nos poucos casos em que uma mesma base de dados foi informada pelos TJ, como contendo processos físicos e virtuais, computou-se esse dado apenas uma vez, para evitar superestimativas da realidade local.
Para a segunda etapa sobre o processo de protocolo das ações que versam sobre saúde pública, as três perguntas respondidas pelos TJ foram consolidadas e analisadas descritivamente.
Aspectos Éticos
Os dados deste estudo são secundários e públicos conforme princípio da publicidade do Art. 5º, inc. LX, da Constituição Federal de 1988, Art. 189 do Código de Processo Civil, e Lei 12.527/1111, e outros dispositivos.
Ademais, o projeto foi submetido na Plataforma Brasil, ao comitê de ética em pesquisa da Universidade Federal do Ceará-CEP/UFC/PROPESQ, que teve como parecer, declaração dispondo “o projeto não se aplica à avaliação do comitê de ética em pesquisa, posto se tratar de pesquisa que utiliza informações de acesso livre e por utilizar banco de dados, cujas informações são agregadas, sem possibilidade de identificação individual, de maneira similar ao disposto na Resolução CNS nº 510, de 07 de abril de 2016”.
RESULTADOS
Etapa 1
No estado do Ceará (CE) os dados foram coletados in loco, pela facilidade de acesso da equipe de pesquisadores.
Os TJ do Acre (AC), Amapá (AP), Amazonas (AM), Pará (PA), Rondônia (RO), Roraima (RR), Alagoas (AL), Bahia (BA), Maranhão (MA), Rio Grande do Norte (RN), Distrito Federal (DF), Mato Grosso (MT), Espírito Santo (ES), Minas Gerais (MG), São Paulo (SP) e Rio Grande do Sul (RS) retornaram os contatos via e-mail, correspondendo a 59,2% do total.
Para os TJ do Tocantins (TO), Sergipe (SE), Paraíba (PB), Pernambuco (PE), Piauí (PI), Goiás (GO), Mato Grosso do Sul (MS), Rio de Janeiro (RJ), Paraná (PR) e Santa Catarina (SC), foram realizados contatos telefônicos diretos às ouvidorias, assim como para os setores responsáveis pelo serviço de tecnologia da informação dos tribunais. Adicionalmente, foram realizadas buscas sistematizadas em websites. Em todos os casos, foi possível compor perspectivas aos três itens de interesse nessa etapa.
O resultado da primeira etapa do estudo está sintetizado nas Tabelas 1 e 2. A Tabela 1 caracteriza as bases de dados existentes dos sistemas de informação em cada TJ das UF do país, assim como aquelas que se destinam ao registro de processos físicos (bases antigas) e ao registro de processos virtuais (bases modernas).
O TJ do Acre informou que utiliza somente processos eletrônicos, apresentando três bases de dados virtuais, enquanto o TJ de Sergipe indicou ter somente uma base de dados que serve para protocolo e acompanhamento de processos, tanto físicos quanto virtuais. Os TJ de Alagoas, Mato Grosso do Sul e Rondônia apresentaram duas bases de dados, indicadas tanto para processos físicos quanto para processos virtuais, uma para processos de primeiro grau e outra para aqueles de segundo grau. O TJ do Amazonas apresentou três bases de dados, também indicadas para protocolo e acompanhamento de processos físicos e virtuais.
Por outro lado, Rio Grande do Sul, Maranhão e Distrito Federal informaram bases em cada tipologia, sete no total. O estado do Piauí contabilizou duas bases de dados para processos físicos e seis para virtuais, totalizando oito bases. Os demais TJ apresentam diferentes características de funcionamento, a partir das quais se pode acompanhar os processos físicos e virtuais (Tabela 1).
Constatou-se o avanço dos sistemas eletrônicos para a modalidade de processos virtuais em detrimento aos autos de processos físicos, o fato justifica a repetição de algumas bases em relação a processos físicos e virtuais. Por exemplo, no estado do Amazonas, tem-se o sistema E-SAJ e Projudi, que tanto podem ser utilizados para acompanhamento de processos físicos quanto para processos virtuais.
Foram identificadas no país 141 bases de dados nos estados e DF, 44 (31,2%) para processos físicos e 97 (68,8%) para virtuais (Tabela 1). Há um predomínio de bases virtuais em todas as regiões do país, com destaque para as regiões Nordeste e Sul (Tabela 1).
Verificou-se um total de 123 bases de dados nos TJ, com destaque para as regiões Sul e Nordeste (Tabela 1). Ao se desconsiderar a existência de duplicidade de bases de dados, constatou-se um total de 48 sistemas pelo país (Tabela 2). Os sistemas mais frequentes foram: PJE1G (n = 17; 13,8%), PJE2G (n = 13; 10,5%), Projudi (n = 16; 13%), SEEU (n = 12; 9,7%) e E-SAJ PG (n = 10; 8,1%).
Etapa 2
Obteve-se respostas às solicitações dos TJ do Amapá (AP), Pará (PA), Rondônia (RO), Roraima (RR), Alagoas (AL), Ceará (CE), Maranhão (MA), Rio Grande do Norte (RN), Sergipe (SE), Distrito Federal (DF), Espírito Santo (ES), Minas Gerais (MG), São Paulo (SP) e Paraná (PR) (Quadro).
Com as informações de 14 tribunais de justiça participantes, percebeu-se que a ramificação para protocolos de ações relacionadas à saúde é estabelecida pelo CNJ, fundamentado no Sistema de Tabelas Processuais Unificadas (TPU), instituída pela Resolução no 46 de 2007 do CNJ.
Com base na resposta à pergunta [A] segundo classificação estabelecida pela tabela do CNJ, há diferenças na forma de registro e protocolo quando se trata de saúde pública ou privada. Além disso, a competência para processamento de causas relacionadas à saúde pública remete-se a varas e juizados especiais da fazenda pública, que julga processos cíveis de interesse do estado e municípios, enquanto para a saúde privada há varas e juizados especiais cíveis. Tais detalhamentos são importantes para extração de relatórios e futuros delineamentos de pesquisa.
Em outra perspectiva já trazida pela pergunta [B], de forma corriqueira, os operadores do direito responsáveis pela distribuição das ações judiciais incorrem em erro classificando-as em assunto diversos, como, por exemplo, “obrigação de fazer” (ação judicial que objetiva uma prestação de uma pessoa em relação a outra). Embora a unidade judicial tenha possibilidade de readequar a ação, esse aspecto reflete uma lacuna de competência a ser suprida.
Mencionou-se ainda, que não existem regras específicas que vinculem a competência aos assuntos. A atualização/correção, entretanto, pode ser feita a qualquer momento por usuários internos do sistema, com perfis diversos, como protocolo, distribuição, cartórios e/ou gabinetes.
Por fim, a pergunta [C] revelou que nos TJ tanto o setor de distribuição quanto os cartórios da vara e os núcleos de apoio técnico do Poder Judiciário (NAT-Jus) podem fazer adequação/compatibilização, corrigindo eventuais erros cadastrais.
O TJ de Roraima complementou a informação de que o NAT-Jus “coleta” os dados, consolida-os, e faz acompanhamento das ações de saúde, especialmente nas varas e juizados da fazenda e infância, considerando o contexto, pedido a pedido. Mesmo que o assunto não seja “saúde” o tribunal analisa de acordo com o assunto, indicando maior rigor em relação às informações disponibilizadas das ações de saúde.
Constatou-se ainda que os websites dos TJ não dispõem de uma interface de dados padronizada para disponibilização de processos relativos à saúde pública, havendo também obstáculos distintos para o acesso a esse tipo de informação. Não foram encontradas informações sobre como o conteúdo dos processos deve ser disponibilizado na base de dados, ficando a critério de cada tribunal a forma como disponibiliza seus dados sobre os variados assuntos, como os processos da judicialização da saúde pública.
Ainda como resultado desta pesquisa, reconheceu-se que a maior dificuldade encontrada na atividade de coleta de dados sobre processos de saúde decorre de problemas nos modelos de acesso (Sistemas Judiciários), na disponibilização e organização dos websites dos vários TJ estaduais, ou seja, não há uniformidade para o devido acesso, o que requer o desenvolvimento de um sistema que alcance as demandas visando garantir, de fato, o acesso de todos os operadores do direito, bem como da sociedade, incluindo pesquisadores da saúde.
DISCUSSÃO
O estudo possibilitou evidências adicionais de que o grande número de bases de dados que armazenam ações individuais e coletivas envolvendo o SUS dificulta a realização de análises mais consubstanciadas e comparativas. Há limitação técnica para a extração sistemática de dados compilados em cada sistema, além de não haver integração entre eles, comprometendo o planejamento, a tomada de decisão e o desenvolvimento de pesquisas em saúde. Observou-se ainda que esses sistemas, em número superior à centena, ainda são de acesso limitado aos operadores do direito e pesquisadores, tanto no campo do direito quanto das ciências da saúde, particularmente a Saúde Coletiva, com impactos potenciais negativos para a pesquisa acadêmica nesses campos do conhecimento.
Apesar de a lei de informatização do processo judicial no 11.419 de 2006 e o projeto de Lei no 5.828 de 2001 terem em sua proposta original a previsão de que cada órgão do poder judiciário desenvolveria softwares necessários à utilização do processo digital criando sua própria base de acesso e que pudesse ser acessado de qualquer lugar do planeta12, essa autonomia administrativa de cada TJ, previamente sem uma legislação orientadora, gerou multiplicidade de sistemas nos tribunais com falta de uniformização nas bases de dados e de interfaces entre as informações nos tribunais, evidenciado neste estudo.
Em 2005, o CNJ, órgão de controle da atuação administrativa e processual do Poder Judiciário, estabeleceu o sistema de estatística do Poder Judiciário (Resolução no 4 de agosto de 2005), tornando obrigatório que TJ do país enviassem dados consolidados de processos e sentenças prolatadas para serem centralizados no Conselho18. Todavia, estudos mostram que há limitados avanços concretos até a finalização desta pesquisa19,20, as diferentes bases de dados limitam a produção de informações que traduzam a realidade, reduzindo o potencial de prestação jurisdicional9. Portanto, comprometendo a descrição e entendimento amplo e preciso do fenômeno da judicialização da saúde, assim como o planejamento nas políticas públicas por parte do Poder Executivo1,13.
A automação do judiciário foi repensada com o surgimento do processo judicial eletrônico, proposta de integração das bases de dados e gerenciamento estratégico das informações do judiciário21. Atualmente representa importante ferramenta uniformizada pelo Judiciário comum, fato verificado neste estudo, a partir da constatação de que é utilizado por quase 20% dos TJ do país, reforçando a sua implantação estratégica como política pública do Judiciário prevista na Resolução CNJ n22.
Tal cenário aponta que o uso de bases de dados do judiciário é uma ferramenta potente para tramitação processual mais célere e qualificada20 e realização de pesquisas empíricas em saúde1. Contudo, notou-se que sua existência por si não garante o fácil acesso, sem estar sujeita a limitações pessoais, estruturais e sociais, tendo em vista a multiplicidade, inconstância e falta de uniformização, além da limitação de acesso aos dados das análises possíveis, inviabilizando uma série de interfaces entre as distintas bases para superar eventuais inconsistências1,9,13.
Outra preocupação remete à limitação ao acesso de pessoas que não têm atuação no campo do direito; com base nos achados deste estudo e experiência da coleta de dados vinculada, infere-se que a existência das barreiras estruturais limita de modo consistente o amplo acesso aos dados empíricos, objetos de pesquisas sobre a judicialização da saúde pública, fato intensificado pela grande variedade de bases de dados no Judiciário.
A importância da proposta de consolidação das bases de dados no Poder Judiciário promove o alinhamento ao objetivo de desenvolvimento sustentável da Agenda 2030, número 16 que versa sobre uma sociedade com acesso universal à Justiça, com instituições eficazes e inclusivas em todos os níveis23,24.
Outro aspecto importante é classificação e protocolo de ações relacionadas à saúde (“tipos” de matérias que são objeto de litígio), pelo fato de alguns tribunais utilizarem como padrão os assuntos da tabela processual unificada do CNJ. Contudo, há outras modalidades de se proceder à ramificação, como se constata da resposta do TJ de Minas Gerais.
O protocolo das ações de saúde representa informação relevante, levando-se em conta o grande número de pesquisas sobre judicialização da saúde que requerem junto aos tribunais dados empíricos para fins de pesquisa1,9,11,13,14. Neste estudo, à indagação se é possível protocolar ações de saúde em outros assuntos, obteve-se como resposta “sim” pela maioria dos tribunais. Embora regulamentado o uso da gerencial intitulada “processos de saúde”, muitos representantes classificam a demanda de forma diversa. Por exemplo, na fazenda pública existem processos classificados com a gerencial “obrigação de fazer ou não fazer”, quando na verdade tratam-se de processos de saúde (fornecimento de medicamentos). Os motivos para essa imprecisa classificação podem estar relacionados à recente adoção de novas políticas para ações de saúde, inclusive a adoção de classificação específica (Quadro), que tem demonstrado limitações em virtude de cadastros errôneos referente ao ‘assunto’ quando da distribuição do processo1,11,13,14.
Tal cenário aponta um risco para o real número de processos de judicialização da saúde nos tribunais já pesquisados11, mesmo os tribunais respondendo que é possível fazer a adequação. Questionam-se as incorreções e inclusões de dados imprecisos, fato constatado nas respostas dispostas no Quadro.
As limitações do estudo remetem-se ao grau de precisão e de sistematização das informações relacionadas aos sistemas de informação do judiciário que foram retornadas formalmente pelos TJ. A despeito dessas questões, a abrangência nacional e a abordagem diferenciada com interface de diferentes perspectivas do campo do Direito e da Saúde Coletiva reforça a sua relevância, dado o caráter inédito e estratégico para o país.
CONCLUSÃO
A multiplicidade de sistemas de informação no Judiciário brasileiro complexifica a sua utilização para análises com vistas à pesquisa em saúde, consistindo em óbice à atualização mais eficaz das políticas públicas do Executivo. Reconhece-se a necessidade de esforços adicionais não apenas para a padronização, mas também para aprimoramento dos fluxos e da estrutura das bases de dados judiciais, ampliando o acesso e a transparência, buscando um olhar transdisciplinar em pesquisas nos campos do Direito e da Saúde Coletiva.
A ausência de padronização na organização de dados ou de sistemas de acesso públicos aos vários TJ (e seus dados estatísticos) dificulta a pesquisa empírica da judicialização da saúde, que é fundamental para elaboração de políticas públicas. Enquanto as plataformas eletrônicas de base de dados do Poder Judiciário não forem oferecidas em caráter unificado, de modo igualitário, a virtualização dos processos não conseguirá garantir a ampliação do acesso à informação da Justiça, pelo contrário, poderá intensificar a disparidade existente entre o acesso público e privado à Justiça.
O futuro há de ser o processo digital e para que seja de modo eficaz, deve ser cautelosamente instituído, com análise de resultados, falhas e melhoramentos, adaptando os operadores e a sociedade como um todo. Abre-se um enorme potencial para análise e qualificação das políticas públicas, não apenas vinculadas ao setor saúde. Ressalta-se que esse movimento demanda políticas sociais estratégicas que promovam acesso irrestrito da sociedade e pesquisadores (as) em saúde, dentro dos limites das leis vigentes, inclusive com base em dados de fácil acesso em seus sítios eletrônicos.
Portanto, reforça-se a necessidade de aperfeiçoamento estratégico no sentido de padronizar os sistemas eletrônicos usados pelo Poder Judiciário para reger processos judiciais e pesquisas empíricas em saúde, haja vista que a configuração adotada, limita e dificulta pesquisas e análises que podem inclusive nortear a criação de políticas públicas voltadas para a identificação e controle do fenômeno da judicialização da saúde.
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17 Brasil. Lei Nº 11.419, de 19 de dezembro de 2006. Dispõe sobre a informatização do processo judicial; altera a Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil; e dá outras providências. Diário Oficial da União. 20 nov 2006 [cited 2021 May 5];Seção 1:2. Available from: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11419.htm
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Financiamento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes/PROAP – bolsa de doutorado para AFF). Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Estado do Ceará (FUNCAP- bolsa de mestrado para NRNA). Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq – bolsa de produtividade em pesquisa 2 para ANRJ).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
29 Ago 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
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Recebido
06 Set 2021 -
Aceito
31 Out 2021