Open-access TESSITURAS, TEXTURAS, TRELIÇAS E TRAMAS: O COTIDIANO, O ORDINÁRIO E A TAREFA DA ANTROPOLOGIA

Veena, Das. Textures of the ordinary. Doing anthropology after Wittgenstein. New YorkFordham University Press2020

Das, Veena. Textures of the ordinary. Doing anthropology after Wittgenstein. New York: Fordham University Press, 2020.

Dar às palavras um lar. É com essa proposição que Veena Das (2007) encerra seu livro, já clássico e recentemente traduzido para o português, Life and words. A expressão, repetida inúmeras vezes ao longo de sua obra, é menção a formulações do filósofo Ludwig Wittgenstein (1953) em Investigações filosóficas, influência central para o pensamento de Veena Das. Além de seu significado teórico e filosófico, ao longo de Textures of the ordinary. Doing anthropology after Wittgenstein (Das, 2020), essa expressão ganha outros significados: o que o livro mostra é Veena Das em busca de encontrar, por meio da escrita, um lugar para as palavras, sejam elas as suas, as de suas/seus interlocutoras/es ou as das/os várias/os teóricas/os por ela acessadas/os. A busca de um lar para as palavras está, por exemplo, em seu reconhecimento da dificuldade e da impossibilidade de prosseguir na escrita de determinados textos ou de certas narrativas; ou em sua abertura a ser instruída publicamente a partir da leitura de referenciais teóricos; ou quando permite que acontecimentos autobiográficos “se infiltrem” no texto; ou ainda ao recontar as vidas cotidianas de colaboradoras/es que habitam contextos marcados pela violência, pelo horror, pela precariedade material e por vulnerabilidades.

Assim, o livro é definido por ela mesma como uma “coleção”, que mescla doses de autobiografia, dados etnográficos de mais de 30 anos de pesquisa em Delhi, exemplos de textos literários e fragmentos de relações com suas/seus colaboradoras/es de campo e com colegas da academia. O livro, composto por 11 capítulos, conta também com novas “encarnações” para ensaios escritos em outros momentos, revisitados e que reaparecem com nova conformação a partir da passagem do tempo. Essa forma de entender a montagem do livro e sua narrativa, em que reconhece a dificuldade de recontar, reinterpretar e ressignificar dados e relações, está de acordo com seu projeto mais amplo de pensar como a vida cotidiana - a dela mesma aí incluída - se faz a partir de uma trama, da composição de uma textura em que fios diversos se misturam, se sobrepõem e se entrecruzam. Desse modo, cada capítulo traz um aspecto do cotidiano e atesta o caráter evasivo do ordinário. Mostra, sobretudo, o quanto o projeto argumentativo de Veena Das só pode ser compreendido a partir da compreensão da tessitura de vidas concretas, que não podem e nem devem ser encobertas pelos muitos conceitos que vai dissecando. Os conceitos, fundamentais em todo o livro, só ganham significado na concretude ordinária das formas de vida que se revelam e se ocultam, na atenção aos detalhes, nos fluxos cotidianos de conversas, “micro-histórias” e “micro-geografias” dos locais em que realizou pesquisa de campo (com pessoas envolvidas com a Partição e em regiões de baixa renda de Delhi).

Não é por acaso, então, que Textures of the ordinary recebe o sugestivo subtítulo de “fazer antropologia depois de Wittgenstein” (tradução minha). São as ideias de Wittgenstein - ainda que a autora negue ser uma scholar especialista em Wittgenstein - o fio condutor utilizado por Das para propor reflexões que, em última instância, buscam avançar na compreensão do que pode ser entendido como cotidiano e como ordinário. Para os leitores mais familiarizados com a obra de Veena Das, esses temas não serão novidade, visto que um de seus grandes argumentos está em pensar o entendimento da vida social a partir do cotidiano e do que ela chama - e que funciona como orientação para a própria feitura da etnografia - de descida ao ordinário. O léxico fornecido por Wittgenstein permeia todo o livro, especialmente a partir de ideias como formas de vida, gramática e linguagem, ceticismo, aprendizagem e cenas de instrução. Esta última ideia fornece os subsídios para que Veena Das trabalhe, em quase todos os capítulos, com a tessitura de cenas, com base em dados etnográficos de diferentes momentos de sua trajetória e em exemplos literários.

No primeiro, segundo e terceiro capítulos, ela empreende esforço de elucidar o pensamento de Wittgenstein - inspirada em Cavell (1979) e Laugier (2015, 2016) -, propondo linhas possíveis de interlocução entre filosofia e antropologia e convidando a “introduzir uma hesitação” em como habitamos - nós e nossas/os interlocutoras/es - conceitos como cultura, vida cotidiana e interior/exterior. Veena Das propõe, então, retomar o conceito wittgenstainiano de formas de vida, a partir da releitura sugerida por Cavell, para repensar sua discussão sobre a relação entre violência em contextos domésticos cotidianos e a violência em contextos extraordinários, como a Partição e os riots de 1984. Assim, para ela, o ponto central está em pensar nos limites dessas formas de vida atravessadas pela violência, em como a violência é incorporada ou não no cotidiano e nas possibilidades concretas de reabitar o mundo e os espaços de devastação. A cena etnográfica que embasa o capítulo 8 - o sequestro e estupro de uma menina de oito anos, seguido do processo penal para punir os culpados - descreve, a partir de relatos de campo e da análise do processo jurídico, a brutalidade e a crueldade que aparecem a qualquer instante na vida cotidiana. Também propõe pensar na “treliça de relações” que envolve moradores de bairros pobres - clínicas, laboratórios, delegacias, tribunais - e como o procedimento legal é visto a partir de interpretações conflitantes e de rumores. É nesses entrecruzamentos que se dá a produção de “fatos”. Esses fatos, no entanto, ganham vidas diferentes na vizinhança da menina e nas narrativas policiais e jurídicas (que ela chama de ficções da lei).

É importante remarcar que Veena Das aposta no caráter misterioso e incerto do cotidiano, apontando sua dupla natureza: é o espaço da rotina e dos hábitos, mas também o local da incerteza em torno das relações, que podem se tornar aniquiladoras. A cena etnográfica - a loucura de um jovem e sua relação com a família - apresentada no capítulo 6 é um exemplo tanto da exaustão da habilidade de cuidar quanto dos lados obscuros da vida cotidiana que podem ser captados em “momentos minúsculos” da vida. Algo semelhante é encontrado no capítulo 5, no qual Das analisa o que chama de esforço moral, a partir do qual a vida do outro é engajada no cotidiano. Ao narrar uma cena, de modo cênico e dramatizado, em que dois jovens de religiões diferentes se apaixonam, a autora reflete sobre como os desejos rompem noções de moralidade e prescrições normativas, produzindo possibilidades de habitar novos mundos.

A relação entre antropologia e literatura é trabalhada com mais profundidade no capítulo 7, dedicado à análise de dois livros de Coetzee (1982, 2007) e dos modos como aparecem questões como ética, responsabilidade e vulnerabilidade das formas de vida. Ao se voltar para o literário, quando enxerga uma relação similar entre, de um lado, o autor e seus personagens e, de outro, a antropóloga e pessoas que encontra em campo, Das busca compreender como as condições de vida são enquadradas por práticas de violência perpetradas por meio do aparato estatal e que contam com a conivência dos cidadãos, perguntando-se a respeito da responsabilidade de cada um de nós, enquanto membros de comunidades políticas, frente a projetos de violência para os quais não demos nosso consentimento - e um exemplo seria a normalização da tortura em alguns contextos. Outro ponto trabalhado pela autora diz respeito à maneira como podemos compreender as ideias de humano e de forma de vida humana, bem como ao fato de que formas de vida contêm formas de morte, o que aponta tanto para a fragilidade de nossos acordos quanto para a necessidade de pensar ética e vida moral a partir de noções de cuidado e do ordinário, entendido como o lugar de reabitação do mundo. Ainda que cuidado e reabitação sejam incomensuráveis com a grandeza do horror, eles representam saídas para o enfrentar. Vem daí seu conceito de “ética ordinária”, sobre a qual reflete em profundidade nos capítulos 3 e 4. De modo geral, argumenta que ética e moralidade devem ser pensadas no registro do ordinário, tecidas como fios na trama da vida e que estão além de fórmulas condensadas de bom ou mau. Ética ordinária inclui reconhecer a vulnerabilidade e a fragilidade da vida cotidiana, o que é notável, por exemplo, nas “pequenas disciplinas” executadas por pessoas ordinárias (e as cenas etnográficas que apresenta caminham nesse sentido) para manter a vida.

Ainda em termos de influências teóricas, além de Wittgenstein, reaparece a centralidade de Stanley Cavell. Além de lhe dedicar o livro, Das retoma algumas de suas obras e algumas de suas lições, como quando, por exemplo, no último capítulo da obra, reproduz um comentário feito por Cavell a um artigo que havia submetido para uma revista e havia provocado “reações mistas” (p. 307) nos pareceristas. De acordo com ela, é a partir do generoso texto escrito por ele, que ela se dá conta de seu próprio lugar no mundo, notando o quanto antropólogas/os nem sempre sabem quem são em suas experiências de trabalho de campo, especialmente - como é seu caso - estando na “vizinhança da morte”, em contextos marcados pela violência e pelo horror. Além dos autores citados, Das também utiliza bastante o pensamento de Austin (1962), retomando sua discussão sobre enunciados performativos e sobre ato ilocucionário e efeito perlocucionário, em que interessa pensar a falha dos enunciados e a instabilidade do contexto. Vem dessa influência a discussão sobre vulnerabilidade, que aparece em diferentes capítulos do livro, e a proposição de uma política do ordinário, baseada na “costura” de ação e expressão.

Ao nos deparar com referenciais teóricos dessa magnitude (ainda que Das se refira aos conceitos que utiliza como “modestos, cotidianos e nada magistrais” - p. xiii), é possível reconhecer outra das marcas da obra da autora: as aproximações entre filosofia e antropologia. Mesmo que a leitura seja, por vezes, extremamente erudita e difícil para os não familiarizados com conceitos filosóficos, Veena Das evidencia o quanto esses conceitos não são dados de antemão, não são neutros e estão, também eles, ligados ao cotidiano. Possuem uma “textura aberta” (p. 8). Esse tema, ainda que percorra toda a obra, ganha especial atenção nos capítulos 9, 10 e 11, propondo-se a autora a pensar no modo como conceitos antropológicos são gerados. Para tal, ela utiliza casos exemplares: as observações de Wittgenstein à obra O ramo de ouro, de Frazer (2004) (e ela mesma tece novas observações); revisita duas etnografias clássicas - Evans-Pritchard (1940), sobre os Nuer, e Liendhardt (1961), sobre os Dinka; e analisa um experimento, da junção entre etnografia e biografia, representada pela “antropoesia” (anthropoetry) de Renato Rosaldo (2014) e um livro de Nayanika Mookherjee (2015), ambos sobre perdas, para pensar a respeito da voz autobiográfica que atravessa a produção de nossos textos e do próprio conhecimento antropológico. Desse modo, ela afirma que os conceitos surgem dentro de uma forma de vida constituída a partir do engajamento de antropólogas/os com o trabalho de campo e com seus ambientes intelectuais. Nesse sentido, não se trata de pensar em uma hierarquia entre conceitos antropológicos e conceitos vernaculares, mas tomar ambos como “imersos no mundo ordinário” (p. 308).

Assim, o que a textura criada por Veena Das e brevemente sumarizada neste texto mostra é a centralidade do cotidiano e do ordinário, tanto em termos teóricos quanto empíricos. Vem dessa constatação sua maior contribuição para a antropologia: só é possível pensar em teoria a partir dos problemas que emergem da trama da vida e só se encontra o humano - tarefa antropológica central - por meio do engajamento com a vida concreta, miúda, dos momentos minúsculos. É somente desse modo que podemos compreender o cotidiano e as ameaças (ordinárias e extraordinárias) a esse cotidiano, bem como encontrar as palavras a partir das quais narrar e descrever as formas de vida humana. É no cotidiano - esse “recontar de eventos domésticos” (p. 27) - que podemos encontrar o outro e a nós mesmos no “sobe e desce nas intensidades por meio das quais aprendemos a estar/ser no mundo” (p. 2). Assim procedendo, torna-se possível, como alerta Veena Das, em afirmação quase poética, encontrar o amor da antropologia, conquistado a partir do momento em que deixamos o conhecimento do outro nos marcar e afetar.

REFERÊNCIAS

  • Austin, John. (1962). How to do things with words Cambridge: Harvard University Press.
  • Cavell, Stanley. (1979) The claim of reason. Wittgenstein, skepticism, morality, and tragedy. Oxford: Oxford University Press.
  • Coetzee, John. (2007). Diary of a bad year London: Penguin.
  • Coetzee, John. (1982). Waiting for the barbarians London: Penguin.
  • Das, Veena. (2020). Vidas e palavras. A violência e sua descida ao ordinário. São Paulo: Editora Unifesp.
  • Das, Veena. (2007). Life and words.Violence and the descent into the ordinary. Berkeley: University of California Press.
  • Evans-Pritchard, Edward. (1940). The Nuer. A description of the modes of livelihood and political institutions of a nilotic people Oxford: Clarendon.
  • Frazer, James (2004). The Golden bough Sioux Falls: NuVision Publications.
  • Laugier, Sandra. (2016). Politics of vulnerability and responsibility for ordinary others. Critical Horizons, 17/2, p. 207-223.
  • Laugier, Sandra. (2015). Voice as forms of life and life form. In: Wittgenstein and forms of life Special Issue. Nordic Wittgenstein Review, p. 63-82.
  • Lienhardt, Godfrey. (1961). Divinity and experience. The religion of the Dinka Oxford: Claredon.
  • Mookherjee, Nayanika. (2015). The spectral wound. Sexual violence, public memories, and the Bangladesh War of 1971 Durham: Duke University Press.
  • Rosaldo, Renato. (2014). The day of Shelly’s death. The poetry and ethnography of grief Durham: Duke University Press.
  • Wittgenstein, Ludwig. (1953). Philosofical investigations. London: MacMillan Publishing Company.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    15 Abr 2021
  • Aceito
    19 Jul 2021
location_on
Universidade Federal do Rio de Janeiro Largo do São Francisco de Paula, 1, sala 420, cep: 20051-070 - 2224-8965 ramal 215 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revistappgsa@gmail.com
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Acessibilidade / Reportar erro