Open-access Nem santa, nem puta, apenas mulher: a feminização do HIV/aids e a experiência de soropositividade

Neither a saint nor a whore, just a woman: the feminization of HIV/AIDS and the seropositivity experience

Ni santa, ni puta, apenas mujer: la feminización del VIH/sida y la experiencia de seropositividad

Resumo

Este estudo objetivou problematizar como as dimensões socio-históricas de gênero e os elementos discursivos das sexualidades se correlacionam com as vivências de mulheres soropositivas em relação ao vírus HIV. Trata-se de uma pesquisa de campo de abordagem qualitativa em que foram entrevistadas, individualmente, dez mulheres soropositivas. O diagnóstico dessas mulheres aponta para a fragilidade da relação conjugal, desvela o mito do amor ideal e enfatiza a relação de desigualdade estabelecida entre os gêneros. Conclui-se que o grupo social das mulheres, devido à iniquidade de gênero, ainda é socialmente mais vulnerável ao acometimento do vírus.

Palavras-chave: sexualidade; gênero; mulher; HIV; aids

Abstract

This study inquires how socio-historical dimensions of gender and the discursive elements of sexualities correlate with the experiences of HIV-positive women. This is a field research with a qualitative approach in which ten HIV-positive women were interviewed individually. The diagnosis of these women points to the fragility of the conjugal relationship, reveals the myth of idealized love and emphasizes the relation of inequality established between the genders. It is concluded that women as a social group, due to gender inequity, are still more vulnerable socially to the epidemic.

Key words: sexuality; gender; woman; HIV; AIDS

Resumen

Este estudio problematiza el cómo las dimensiones socio-históricas de género y los elementos discursivos de las sexualidades se correlacionan con las vivencias de mujeres seropositivas con relación al virus VIH. Se trata de una investigación de campo de abordaje cualitativo, en la que se entrevistaron individualmente a diez mujeres seropositivas. El diagnóstico de esas mujeres apunta a la fragilidad de la relación conyugal, desvela el mito del amor ideal y enfatiza la relación de desigualdad establecida entre los géneros. Se concluye que el grupo social de las mujeres, debido a la iniquidad de género, sigue siendo socialmente más vulnerable al acometimiento del virus.

Palabras clave: sexualidad; género; mujer; VIH; sida

Introdução

A divulgação do Boletim Epidemiológico HIV/aids (Ministério da Saúde, 2016) trouxe informações animadoras no que concerne ao número de mulheres infectadas pelo HIV. Os dados endossam uma tendência de queda na taxa de detecção do vírus nesta população nos últimos dez anos, passando de 15,8 casos/100 mil hab., em 2006, para 12,7 em 2015, o que representa uma redução de 19,6%. Embora positivos, os números apresentados pelo Ministério da Saúde ainda são assustadores, pois o Boletim aponta que, no período entre 2007 e 2016, foram notificados 44.766 novos casos de HIV em mulheres. Dentre estas, 96,4%, com idade igual ou superior a 13 anos, tiveram exposição heterossexual ao vírus.

Hoje, no Brasil, apesar de o número de detecção de novos casos ainda ser alarmante, as mulheres não representam um segmento populacional prioritário no cenário da epidemia brasileira, o que faz com que as ações interventivas voltadas para este segmento fiquem restritas à identificação de gestantes com HIV. Com o objetivo de minimizar a possibilidade de transmissão vertical, os processos de testagem e diagnóstico no pré-natal ou no parto, incrementados pelo Programa Nacional de DST e aids, têm demonstrado eficácia e seus resultados são refletidos nos números divulgados pelo Boletim Epidemiológico (Ministério da Saúde, 2016) que observou um aumento de 28,6% na taxa de detecção de gestantes com HIV nos últimos dez anos.

Para Vilela e Barbosa (2017), o fato de as mulheres não serem priorizadas pelas políticas de prevenção ao HIV, que têm suas ações voltadas apenas para a identificação de gestantes, acaba por limitar o acesso de não grávidas ao diagnóstico, impedindo que essas mulheres iniciem o tratamento em um tempo oportuno. As autoras colocam ainda que a infecção pelo HIV na população feminina tem uma dinâmica especifica, visto que grande parte das mulheres não se reconhece como pertencente a grupos e comportamentos considerados “de risco”, o que acaba por dificultar a adoção de tecnologias de proteção.

De fato, a vulnerabilidade feminina, durante um longo período de tempo, foi negligenciada e os casos de infecção de mulheres foram subnotificados, o que propiciou um incremento da incidência de casos de HIV neste segmento populacional. Um levantamento histórico dos discursos médicos em torno da epidemia, realizado por Sordi, Malcher, Lima e Moureira (2015), demonstrou que, apesar de a etiologia do vírus ter sido descoberta em 1984 e de haver evidências epidemiológicas anteriores, apenas em meados da década de 1990 é que a infecção de mulheres foi reconhecida como uma realidade.

A morosidade e a resistência em reconhecer a mulher enquanto vulnerável à infecção do vírus pela ciência médica acabou por facilitar a eclosão silenciosa do HIV/aids nesse grupo social. Aguiar e Simões-Barbosa (2006) afirmam que a omissão da vulnerabilidade da população feminina denuncia uma sociedade que atualiza e fortalece as desigualdades de gênero. Assim, o aumento das notificações de infecção em mulheres não expõe apenas um problema de saúde pública, mas faz emergir uma série de reflexões sobre as relações sociais e históricas em torno do vírus, bem como em relação ao lugar delegado à mulher na sociedade.

Em a História da Sexualidade I, Foucault (2007: 28) coloca que:

[...] nas relações de poder, a sexualidade não é o elemento mais rígido, mas um dos dotados de maior instrumentalidade: utilizável no maior número de manobras, e podendo servir de ponto de apoio, de articulação às mais variadas estratégias.

O autor considera que o controle dos corpos e da sexualidade permite a dominação da vida social e política. Dessa forma, dispositivos de poder buscam regular a sexualidade, normatizando e adequando as práticas a padrões estabelecidos socialmente. Para além das regulamentações das ações, esses dispositivos agem sobre os indivíduos de maneira a naturalizar certos pensamentos, criando verdades ilusórias e atuando sobre a subjetivação dos sujeitos. Assim, em nome de uma higiene social e de uma prática moral, os discursos atuaram sobre o corpo feminino a fim de esterilizá-lo e domesticá-lo.

O lugar da mulher passou a ser dentro de casa, a maternidade foi naturalizada e a imagem da boa esposa se confirmou como aquela capaz de salvaguardar o seu lar e a sua família (Foucault, 2007 [1976]). A mulher estaria designada ao matrimônio monogâmico e a sexualidade teria a procriação como única finalidade. Nesse contexto, a eclosão de uma epidemia, durante muito tempo associada a “grupos de risco” desviantes das normas sociais, não representaria uma ameaça àquelas que faziam o uso “correto de sua feminilidade”.

Estas reflexões acabam por nos remeter ao título deste estudo; a expressão “Nem santa, nem puta: mulher” foi amplamente utilizada como lema nas Marchas das Vadias, movimento que busca chamar a atenção da sociedade para as questões de gênero, sobretudo o direito sobre o próprio corpo. Contudo, partindo de considerações sobre o sentido pejorativo atribuído às prostitutas nesta sentença, algumas organizadoras das marchas preferiram não fazer mais uso da expressão. Neste trabalho, no entanto, recorremos ao título “Nem santa, nem puta, apenas mulher” com o propósito de pôr em evidência os discursos que atravessam as questões relacionadas à feminização do HIV e que enfaticamente emergiram das narrativas das mulheres que participaram deste estudo.

O discurso moral que exerce controle sobre e atribui sentido à sexualidade feminina embasa um pensamento binário que categoriza e valora as mulheres em duas classes: a “mulher da vida”, aquela que faz uso livre da sua sexualidade e que, por isso, merece ser acometida por todas as moléstias, uma espécie de castigo pelo mau uso do seu corpo, e a “mulher dona de casa”, aquela que se utiliza de uma sexualidade doméstica, exercendo com maestria suas funções de esposa e mãe. O fato é que esse tipo de pensamento polarizado nestes dois estereótipos do sujeito mulher não só contribuiu para o reconhecimento tardio do acometimento de mulheres pelo HIV, mas também repercute até os dias atuais, reforçando estigmas e discriminação.

Sendo assim, este trabalho tem por objetivo refletir sobre a experiência de mulheres que vivem com HIV, sobretudo no que concerne à conjugalidade e à construção e/ou manutenção de relacionamentos afetivo-sexuais, a fim de compreender como os elementos discursivos em torno das sexualidades e dos gêneros se correlacionam com as vivências relativas ao HIV/aids por essas pessoas. Vale ressaltar que a experiência é aqui entendida como uma dimensão constitutiva da subjetivação, um processo simultaneamente de sujeição e resistência às normas constituídas e circulantes nos diferentes discursos sociais e que tornam os sujeitos inteligíveis para si e para os outros.

Metodologia

O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (Capes) - Código de Financiamento 001. Trata-se de uma pesquisa de campo, de abordagem qualitativa, cujo projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Católica de Pernambuco, seguindo rigorosamente os preceitos éticos dispostos na Resolução nº 466/12 do Conselho Nacional de Saúde, sob o CAAE: 49242515.8.0000.5206.

A construção dos dados ocorreu no período de janeiro a julho de 2016 em um Serviço de Atendimento Especializado em HIV/aids (SAE), localizado na cidade do Recife (PE). A unidade ambulatorial que serviu de apoio para a pesquisa funciona dentro de um hospital público estadual, referência para o sistema de saúde na assistência à gestação de alto risco, fato que acaba influenciando diretamente no perfil dos usuários do serviço, visto que, em sua maioria, o público da unidade ambulatorial é constituído por mulheres pardas ou negras, de baixa escolaridade e pertencentes à classe média baixa pernambucana. Frequentemente, no decorrer da construção dos dados do estudo, nos deparamos com histórias de mulheres que se descobriram soropositivas para HIV durante a gestação, foram encaminhadas para fazer todo o pré-natal nesta unidade de saúde e acabaram por escolher continuar o acompanhamento neste mesmo local após o parto.

Iniciamos a exploração do lócus do estudo em uma reunião com a coordenadora da instituição com o objetivo de traçar estratégias de abordagem às participantes em potencial. Após conhecer o serviço e os profissionais que constituem a equipe do SAE, decidimos que o primeiro contato da usuária com o estudo que estava sendo construído deveria ser mediado pelo profissional de saúde que acompanha a paciente. Esta estratégia objetivou preservar a integridade moral, o não constrangimento das participantes em potencial e a ética institucional. Sendo assim, a pesquisadora deveria permanecer na recepção junto com os demais usuários do serviço, aguardando a indicação de um dos profissionais da equipe.

Dentro desta rotina de exploração do campus do estudo, as usuárias do serviço eram recebidas normalmente pelo profissional de saúde e, antes do encerramento da consulta, lhes era apresentado o convite para participar da pesquisa. Caso a usuária demonstrasse interesse em participar, a pesquisadora era chamada ao ambulatório e conduzia a participante até outra sala, onde explicava o caráter do estudo, sua importância em âmbito social para a ampliação de discussões sobre a experiência de viver com HIV e esclarecia as possíveis dúvidas. Após esta explanação, àquelas que desejassem ser inseridas no universo da pesquisa era apresentado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), que deveria ser lido e assinado.

Para a construção dos dados, fez-se uso de uma entrevista semidirigida, realizada individualmente e em lugar privado. A escolha por este instrumento permitiu que as participantes discorressem livremente sobre o assunto, sem que se desviassem do tema original. Este tipo de entrevista deu maior liberdade à pesquisadora, de modo que, a partir das respostas, fossem acrescentadas mais algumas perguntas, desde que se fizessem necessárias para uma melhor compreensão da temática.

Participaram do estudo 10 mulheres soropositivas em relacionamentos conjugais estáveis, com idades entre 26 e 71 anos, usuárias do serviço. Embora a orientação sexual das participantes não tenha se caracterizado como um critério de inclusão, todas as entrevistadas estavam em relacionamentos heterossexuais, seis participantes vivenciavam um relacionamento sorodiscordante1 para HIV, três estavam em uma relação soroconcordante2 e uma afirmou desconhecer o status sorológico do companheiro. Metade das participantes exercia função remunerada fora de casa, as outras cinco se autodeclararam “do lar”. A maioria delas afirmou ter renda familiar de até três salários mínimos, uma disse ter renda superior a quatro salários mínimos e uma declarou receber menos de um salário. Em relação ao nível de escolaridade, uma nunca frequentou a escola; três concluíram ensino médio e as demais cursaram apenas o ensino fundamental. No intuito de assegurar a integridade e a privacidade das participantes neste estudo, todos os nomes utilizados para identificar as mulheres entrevistadas são fictícios.

A análise dos dados se deu através de uma apreciação das falas dessas mulheres, como uma analítica enunciativa, em que o processo de subjetivação é o objeto de estudo, considerado como agenciado por discursos diversos, sem tomá-los como explicação causal, mas sim condições de possibilidades para a produção de sujeitos. Concordamos com Marques, Vieira e Amazonas (2016) ao afirmarem que o principal interesse deste tipo de estudo é o sujeito como “expressão de um modo de ser e de fazer a partir das condições discursivas e as contingências históricas destas” (: 179). Trata-se de uma análise de inspiração foucaultiana e, dessa forma, não se deve falar de método, mas apenas de atitudes metodológicas.

Nem santa, nem puta: mulher

Dados divulgados pela Organização Mundial da Saúde (2016) enfatizam que, globalmente, doenças oportunistas relacionadas ao HIV são a terceira principal causa de morte entre jovens do sexo feminino de 15 a 29 anos e se caracteriza como a principal causa de óbitos de mulheres com idades entre 30 e 49 anos. No entanto, a percepção de vulnerabilidade ainda é velada pela imagem de doença dos marginalizados, daqueles cujas práticas se distanciam das consideradas “normais”. No trecho abaixo, a participante do estudo expressa a não aceitação da sua condição sorológica por não ter “procurado a doença”, expondo o que considera como um comportamento de vulnerabilidade:

Se eu fosse uma prostituta, se eu vivesse nesses cabarés que “vou lá procurar homem”, chegasse lá, bebesse, enchesse a cara e saísse com um e com outro; aí, “eu procurei”, né? Se eu me drogasse, se eu usasse a mesma seringa com outras pessoas pra me drogar; “eu procurei”. Se eu fosse fazer uma tatuagem que chegasse lá em qualquer lugar, “eu procurei”. [...] Mas eu não procurei! (Juliana, 39 anos, em um relacionamento sorodiscordante).

Na narrativa de Juliana, ela conta que antes de realizar a testagem sorológica só havia se relacionado com duas pessoas em sua vida. O primeiro relacionamento afetivo se deu quando ainda era adolescente, o que caracterizou como um “namorico inocente”; o segundo relacionamento afetivo-sexual foi estabelecido com seu primeiro marido, com quem teve dois filhos, a ele permanecendo fiel até o dia da separação. Por viver uma vida sem o que considera excessos, Juliana diz não se reconhecer como alguém que vive com HIV e não compreender como a infecção aconteceu.

A fala de Juliana aponta para a noção de que a aids é uma doença dos corpos abjetos que, por se desviarem das normas, se colocam em situação de risco. A esses, supostamente, “todo castigo é pouco”, pois desafiam a inteligibilidade daquilo que pode ser nomeado. Para Butler (2003), a matriz cultural por intermédio da qual a identidade de gênero se torna inteligível exige que certos tipos de “identidades” não possam “existir”. Os corpos abjetos dizem respeito àquilo que não pode ser nomeado, àquilo que “não faz sentido”, e sua existência assombra as fronteiras da “normalidade”, por isso são excluídos do ciclo social.

Partindo deste princípio, podemos entender como a associação do acometimento pelo HIV com comportamentos desviantes da norma muitas vezes é entendida como uma punição merecida para os transgressores. Assim, mantendo-se o mesmo posicionamento que foi apresentado na fala de Juliana, mas colocando-se de maneira oposta a ela, Carla (37 anos, soropositiva) reforça a ideia de estar “pagando um preço” por comportamentos pregressos, sendo “merecedora” da soropositividade.

Eu sempre fui danadinha. [...] Assim: eu usava drogas, saía com qualquer pessoa. Eu nunca me prostituí, não! Mas saía com qualquer um sem nem conhecer direito... Agora, estou pagando o preço (Carla, 37 anos, em um relacionamento sorodiscordante).

O HIV, associado às identidades transgressoras, e a aids, como doença dos corpos abjetos, repercutem na construção dos sujeitos, seja por não se reconhecerem como sujeitos que vivem com o vírus, ou por se reconhecerem como sujeitos que fazem jus às mazelas do mundo. Obviamente, os processos de subjetivação não são universais e não podemos promover uma generalização sobre a vivência de se descobrir infectado pelo HIV. No entanto, estes dois discursos, polarizados entre ser ou não ser merecedor da soropositividade, foram recorrentes nas narrativas das mulheres entrevistadas.

Marques, Vieira e Amazonas (2016) afirmam que os estilos de vida dos sujeitos parecem continuar sendo preponderantes para a definição de saúde e doença. “Desde o início e até hoje, continua a existir essa associação entre a sexualidade transbordante e a aids, a vida comedida e a saúde” (: 188-189). No recorte da fala de Carla, a participante reforça a ideia de estar pagando um preço por um determinado comportamento, sendo merecedora da infecção. Ao mesmo tempo, a utilização da expressão “nunca me prostituí” reforça o discurso de que a mulher que faz uso livre da sua sexualidade e é remunerada por isso teria um comportamento menos nobre. Sendo assim, podemos inferir que, para esta participante, o fato de nunca ter se prostituído lhe dá um pouco mais de dignidade.

A imagem das prostitutas ainda está atrelada à de agentes de propagação de infecções sexualmente transmissíveis, neste caso, a infecção pela prostituição seria uma maneira mais legítima de contrair doenças. Paradoxalmente, este grupo de mulheres ainda é desfavorecido pelos programas de promoção à saúde. Segundo Villela e Monteiro (2015), apesar de as políticas de aids abrangerem as prostitutas desde o início, as ações dirigidas a elas são proporcionalmente menores se comparadas com as ações direcionadas a outros grupos populacionais. O estigma e a exclusão social das prostitutas acabam por potencializar sua vulnerabilidade ao HIV, afastando-as dos serviços de saúde. A “mulher da vida”, assim, seria menos merecedora das políticas preventivas de saúde, pois estariam voluntariamente transgredindo as normas sociais.

Para Butler (2001), as práticas sexuais que divergem das normas são (des)qualificadas como ininteligíveis, absurdas ou “estranhas”. O efeito naturalizante das performatividades de sexo e gênero é produzido e fortalecido através das constantes reiterações normativas: palavras, gestos, atitudes, entre outras, que são frequentemente utilizadas para renovar tais preceitos. Essas performatividades são aqui entendidas como “condutas” de reiteração da norma ou de um conjunto de normas, que não podem ser interpretadas como atos teatrais de simples repetição, mas algo que, ao se fazer, simultaneamente dissimula e produz a norma.

A problemática em torno da vulnerabilidade feminina em face do HIV se dá dentro de um campo discursivo que preconiza uma performance de gênero específica para as mulheres, que devem ser recatadas e inexperientes, cabendo ao homem a iniciativa e a prevenção. Dessa maneira, associar o HIV/aids a “mulheres putas” não só incentiva o sentimento de culpa muitas vezes vivenciado pelas mulheres soropositivas, como também reforça o estigma e a discriminação contra todas as mulheres, fazendo com que a sexualidade, o desejo e o prazer femininos sejam ainda mais podados e vigiados.

Neste contexto, a negociação do uso do preservativo para as mulheres ainda é tido como problemática, visto que, em geral, é considerado um tema constrangedor para o casal e pode propiciar discórdia, principalmente quando se trata de relações duradouras. Neste estudo, o tempo de duração do relacionamento foi apontado como fator preponderante na decisão de abolir o uso do preservativo.

Eu sempre tinha minha relação com camisinha, aceitei ficar sem camisinha porque eu já estava há um bom tempo com ele. Assim, já tinha o quê? Já estava com quase um ano que eu estava com ele. Aí, a gente... aí eu aceitei (Luciana, 39 anos, em um relacionamento soroconcordante).

No recorte da fala de Luciana está o momento em que decidiu ter relações sexuais com seu parceiro sem recorrer ao preservativo. Segundo a participante, esta decisão do casal precedeu o conhecimento sobre a soropositividade, que só ocorreu quando Luciana engravidou. No momento em que a entrevista foi realizada, o casal mantinha o relacionamento e ambos haviam sido diagnosticados soropositivos.

Embora o uso do preservativo não represente total eficácia na não exposição ao vírus, nem se caracterize mais como a única opção disponível na resposta à epidemia, de acordo com uma lógica de contenção e sustentabilidade dos programas de assistência a pessoas que vivem com HIV, a camisinha ainda ganha centralidade nos discursos de prevenção, o que pode ser observado nas cartilhas explicativas e de orientação à prevenção ao HIV, em que mesmo quando é adotada a Política de Prevenção Combinada, o uso sistemático e correto do preservativo não deixa de ser recomendado (Abia, 2010, 2014; Ministério da Saúde, 2014, 2016).

O fato é que, em uma sociedade machista e patriarcal como a nossa, o que remonta às suas raízes históricas, a exigência do uso de preservativo por uma mulher, com outra finalidade que não seja a contracepção, implica riscos que perpassam tanto as questões ligadas à afetividade, como a desconfiança do companheiro, quanto as questões culturais vinculadas ao estigma atribuído às mulheres que demonstrem conhecimento ou iniciativa no campo da sexualidade (Felix & Ceolim, 2012).

Além disso, o mito do amor romântico traz à tona a imagem da mulher que espera paciente por aquele a quem possa “se entregar” como prova de amor incondicional. A narrativa da participante, a seguir, aponta para a vivência da sexualidade como um ato impulsivo motivado pelo romantismo.

Eu gostava muito desse rapaz, e não pensei muito nas consequências. Tá entendendo? O meu amor por esse rapaz era tão grande que eu tive relação com ele sem... eu tive sem pensar (Vitória, 34 anos, em um relacionamento sorodiscordante).

As questões que envolvem a adoção e a negociação de tecnologias por estas mulheres vão ainda mais além, no sentido de apontar para a falta de autonomia feminina em relação à expressão da sua própria sexualidade. Diferentemente do homem, que deve provar frequentemente sua virilidade, questões culturais fazem com que a imagem da mulher não seja associada a uma atitude ativa diante do sexo. Isto acaba por reforçar a desinformação sobre a epidemia, a importância da testagem de HIV e/ou outras doenças sexualmente transmissíveis, além do desconhecimento sobre o acesso, as formas de uso e até mesmo a existência de preservativos femininos.

Sobre os preservativos femininos, vale chamar a atenção para o fato de que suas distribuição e divulgação são significativamente desproporcionais às do preservativo masculino, o que reforça ainda mais o desconhecimento do seu manejo e benefícios. Sordi, Malcher, Lima e Moureira (2015) ressaltam que a ênfase na divulgação quase exclusiva do preservativo masculino representa uma desvantagem para as mulheres, pois, para cuidarem do seu próprio corpo, precisam negociar com o parceiro, haja vista que o uso do condom incide sobre o corpo masculino e a autorização do companheiro é indispensável.

Além disso, as políticas públicas de resposta à epidemia parecem ser embasadas num paradoxo: se, por um lado, utilizam-se de um discurso imperativo pelo uso indiscriminado do preservativo, por outro, as instituições resistem de forma conservadora a organizar discussões que promovam as diversidades sexuais e a adoção de práticas mais seguras em diferentes contextos. Rocha, Vieira e Lyra (2013) observam que este paradoxo discursivo incide sobre os processos de subjetivação dos sujeitos, tomando como exemplo as políticas controladoras que recaem sobre os corpos femininos, resultando “em marcas de esterilização, de desinformação e de associação do prazer com a reprodução biológica, o que traz repercussões para a prevenção da epidemia da Aids” (: 124).

Todas as questões aqui colocadas, como o desconhecimento sobre a feminização da epidemia, a inexistência de discussões efetivas sobre a sexualidade das mulheres, a falta de conhecimento e autonomia sobre o uso de tecnologias preventivas e os estigmas relacionados à própria doença, fazem com que o HIV/aids não seja uma preocupação entre as mulheres, sobretudo aquelas que exercem a sexualidade segundo uma matriz normativa (Sordi, Malcher, Lima & Moureira, 2015).

O fato é que as mulheres em relações conjugais estáveis parecem não perceber a possibilidade de exposição ao HIV, uma vez que a infecção, em seus imaginários, ainda estaria ligada à prostituição, à promiscuidade e às relações extraconjugais. A conjugalidade, como marca de estabilidade nas relações afetivo-sexuais parece ser uma forma de controle imaginário sobre o risco de infecção (Oltramari & Camargo, 2010). Mulheres casadas não pegam HIV - esta parece ser a lógica - apontando para uma maior dificuldade delas na forma de lidar com a descoberta da soropositividade e, consequentemente, uma marca na maneira como enfrentam a doença, ideia esta apontada pela narrativa de Rosana.

Nunca imaginei que poderia dar positivo! Eu fiz o exame tranquila, porque nunca fui uma mulher de sair com um e com outro. Só tive dois homens na minha vida inteirinha. Quando saiu o resultado - positivo - meu chão se abriu! Meu Deus, como foi horrível! [...]. Sabe como é, né? Eu, muito bem casada, feliz por tá grávida do meu primeiro filho... a vidinha perfeita! De repente, tudo desabou (Rosana, 41 anos, em um relacionamento sorodiscordante).

Rosana, técnica de enfermagem, casada há 13 anos com um policial militar, contou durante a entrevista que vivenciar a maternidade sempre foi um desejo presente em sua vida e que planejou com o marido o momento mais adequado para engravidar. No entanto, a gravidez acabou representando a ressignificação do que ela descreve como “vidinha perfeita”. Ela soube da soropositividade durante a gestação do seu único filho. O resultado positivo da testagem sorológica foi recebido com muita angústia e incredulidade. Imediatamente, a participante acusou o marido de ter relações extraconjugais e passou a acreditar que esta fosse a causa provável da sua infecção. Rosana saiu de casa, voltou a morar com a mãe, certa de que seria o fim do relacionamento. O marido, então, já com os resultados dos exames que atestavam a sua soronegatividade, procurou-a e pediu que retomassem a relação. A participante diz ter se sentido envergonhada e confusa durante um longo período enquanto tentavam retomar a sintonia do casal.

A fala de Rosana nos indica que as regulações de gênero e os discursos que incidem sobre o corpo feminino naturalizam a imagem da mulher como esposa e mãe e, por isso, é socialmente esperado que ela estabeleça uma família e tenha filhos, sentido atribuído à “vidinha perfeita”. O deparar-se com o diagnóstico de uma infecção sexualmente transmissível fez desabar as barreiras ilusórias da proteção conjugal, pautada na ideia de monogamia, pois evidenciou que aderir à normatização da sexualidade e da conjugalidade “não foi suficiente para garantir a estabilidade da vida de esposa e mãe propugnada por estas mesmas normas” (Vilela & Monteiro, 2015: 537).

Por considerarem a vida conjugal um invólucro protetor, não é raro que tais mulheres se surpreendam com o diagnóstico positivo para o HIV. A maneira de lidar com a sexualidade conjugal faz com que elas não se percebam corresponsáveis pela adoção de práticas preventivas, delegando aos homens a responsabilidade pela saúde do casal, o que muitas vezes faz emergir o discurso de “vítima”, tomada pelo sentimento de ter sido “enganada” pelo companheiro.

Eu não acreditava que ele tinha me enganado. Eu não conseguia parar de chorar. Eu confiava muito nele, não achei que ele pudesse fazer isso comigo. No começo ele mentiu, negou ter feito qualquer coisa. Mas depois... Não tinha como não admitir que me enganava, não era? [...] eu chorei muito, muito mesmo. Mas depois perdoei, né? Fazer o quê? (Luzia, 36 anos, em um relacionamento soroconcordante).

Luzia, assim como outras participantes, também se descobriu soropositiva durante a gestação do seu segundo filho. Depois do diagnóstico, ao confrontar o cônjuge, tomou ciência de relações extraconjugais, fato que, apesar de mexer com a estabilidade do relacionamento, não significou o seu fim. No momento em que a entrevista foi realizada, o casal permanecia junto e ambos eram acompanhados no serviço de atendimento que serviu de locus do estudo.

O recorte da fala de Luzia nos aponta que o deparar-se com o diagnóstico de soropositividade, em geral, pode implicar risco de rompimento das relações pessoais, afetivas e sociais devido ao processo de fragilização emocional provocado pela descoberta da doença (Meirelles et al., 2010). Em contrapartida, a imagem da mulher cuidadora, que preserva incondicionalmente sua família, é reforçada como aquela que permanece junto ao seu marido, independente das adversidades.

Segundo esta perspectiva, a fala de Elma torna-se significativa, pois ela narra um pouco da relação com aquele de quem acredita ter contraído o vírus. O companheiro a que se refere veio a falecer devido a complicações relacionadas à aids. No momento em que a entrevista aconteceu, Elma estava em um relacionamento afetivo-sexual sorodiscordante.

Ele tinha medo que eu ficasse sabendo, aí, depois, eu abandonar ele. Mas em nenhum momento... Assim, eu tive aquele choque, mas em nenhum momento eu saí do lado dele. Fiquei sempre do lado dele, até o fim (Elma, 35 anos, em um relacionamento sorodiscordante).

Para Elma o medo que o marido expressava de ser abandonado, caso ela soubesse de sua soropositividade, era infundado, já que, como uma “boa mulher”, ficou ao lado dele até o fim. A significação da “mulher dona de casa”, que alicerça a dinâmica doméstica, faz emergir a contraditória imagem da “mulher guerreira”, aquela que, em nome da manutenção da organização familiar, tudo suporta.

Os modos de subjetivação dessas mulheres parecem ser atravessados por dois discursos que, ao mesmo tempo em que se contradizem, se complementam: o estereótipo da mulher como “sexo frágil”, dependente e passiva, e a “mulher guerreira”, aquela que está mais bem preparada para o enfrentamento das adversidades do cotidiano (Aguiar & Simões-Barbosa, 2006). A fala de uma participante a seguir aponta para como estas “mulheres mãe e esposa” muitas vezes acabam por omitir os seus sentimentos de tristeza relacionados à doença e como se esforçam para superá-los:

Chega tempo que eu choro, às vezes estou triste, mas eu não desanimo não. [...] Quando eu estou triste, eu digo que é do meu trabalho, meus filhos que aperreiam, digo: “É os meninos” (Flor, 39 anos, em um relacionamento soroconcordante).

Quando questionada sobre a motivação da sua tristeza, Flor atribui o desalento à preocupação com os filhos ou com o trabalho. O sentimento de angústia vivenciado pela soropositividade não pode ser expresso, sendo disfarçado por sentimentos que aparentemente são mais nobres e naturalmente mais aceitáveis para o sexo feminino. O sofrimento provocado pela infecção é uma dor moral atravessada pelos resquícios discursivos de uma doença dos corpos abjetos, por isso deve ser escondida. Por outro lado, a dor provocada pelo exercício da maternidade é permitida e reforçada, já que à mulher é delegada a responsabilidade de educar e cuidar da prole.

Os discursos de verdades que circulam em torno da maternidade atuam sobre o sujeito mulher de maneira a “fabricar” modos de ser mãe, num processo de subjetivação atravessado por mecanismos políticos e técnicas de governo de si e do outro (Foucault, 2010). Nesse sentido, o discurso de preocupação com os filhos e o medo de serem “negligentes” emergiu nas falas das participantes como um dos principais motivos para que elas assumissem um lugar de eterna vigilância sobre suas vidas, fato que pode ser observado na fala de Patrícia, que afirmou adotar diversas maneiras de precaução para não engravidar devido ao receio de que a criança possa nascer soropositiva:

Eu não posso arriscar passar isso para uma criança. Eu sei que existem meios para que ela venha ao mundo bem, mas eu sei lá. Acho que não vou suportar a dor de ser responsável por um bebezinho doente (Patrícia, 34 anos, desconhece o status sorológico do companheiro).

A maternidade então é perpassada pela dimensão de cuidado de si, aqui entendido como processos de subjetivação agenciados pelos referenciais culturais e normativos de modos de ser específicos (Foucault, 2010) - um cuidado de si que incide sobre o cuidado do outro, em um imperativo que constrói o sujeito mulher-mãe como aquela “superprotetora”, naturalizando a maternidade como um “instinto feminino”. Este fato faz com que a possibilidade de não gerar um filho biológico apareça em alguns dos discursos das participantes como uma vivência ansiogênica com potencial para ferir o vínculo e a estabilidade conjugal.

Qual mulher não quer ser mãe? A gente nasce pra ser mãe, né? Cuidar, proteger, criar. Mas eu não posso, não quero e tenho medo de ter um filho doente. [...] Como ele é mais novo do que eu [referindo-se ao companheiro], eu tenho medo de ter o caso dele querer ter um filho, e eu não posso dar um filho a ele. Porque ele é novo, não tem filho, vai chegar a hora que ele vai querer ser pai. E aí, eu faço o quê? (Patrícia, 34 anos, desconhece o status sorológico do companheiro).

Mais uma vez somos remetidos à ideia de família como aquela instituída dentro de padrões heteronormativos, constituída por um homem, uma mulher e seus filhos. Além disso, falamos de uma sexualidade higienizada cuja finalidade maior é a procriação. A existência de ameaça quanto à possibilidade de concepção de uma criança também ameaça a dinâmica conjugal e a sexualidade por ela autorizada a existir.

No entanto, a partir da fala de Patrícia, podemos perceber que sob o exercício das práticas normativas não se esconde um sujeito completamente passivo e assujeitado, pois o jogo de poder resguarda igualmente um potencial de resistência. Apesar de o discurso da maternidade produzir modos de ser “mulher-mãe”, a participante não só afirma sua falta de desejo de maternidade como faz uso de todas as tecnologias anticonceptivas de que dispõe.

Percebe-se que o sujeito não é passivo e não está simplesmente aprisionado a uma rede de relações de poder, não há um determinismo. O sujeito é produtor de sentidos e ativo no seu processo de subjetivação, mantendo-se numa margem em que há possibilidades de resistência. O jogo de produções de verdade, controle e poder é sempre tencionado pelo potencial de resistência e subversão do sujeito.

Enfim, os sentimentos que emergiram quando da descoberta da soropositividade, como ódio e revolta, podem estar ligados à posição de fragilidade e desigualdade de gênero que essas mulheres ainda precisam enfrentar. A assimetria do poder nessas relações põe em questão os ideais do amor romântico que parecem ser referenciais importantes na construção de laços afetivos. A dimensão da fidelidade ou da exclusividade entre parceiros permanece como aspecto significativo a ser discutido por casais, principalmente nos arranjos heterossexuais, e este pode ser um dado importante para os profissionais de saúde que trabalham no campo da prevenção e da promoção da saúde. No entanto, as relações de poder, implicadas na produção de subjetividade, têm como característica o fato de que na própria “engrenagem do poder” se manifesta uma força de resistência com um fundamental potencial de modificação (Arán & Peixoto Junior, 2007: 135), o que nos leva a afirmar que poder e resistência não se opõem, mas coexistem nos meios de subjetivação e estão em constante tensão. Assim, não há apenas um mantenedor das “verdades” sobre o HIV/aids e as relações afetivo-sexuais de mulheres soropositivas, mas também uma dinâmica luta de afrontamento, cujos resultados são diversos (Foucault, 2007).

Considerações finais

Como pudemos perceber, a infecção pelo HIV ainda é atrelada a práticas discordantes que desafiam a lógica normativa social, culpabilizando e responsabilizando os sujeitos pelo acometimento do vírus. Neste contexto, a partir das narrativas das protagonistas deste estudo, podemos pensar que a descoberta da infecção é acompanhada de sentimentos dilacerantes, que desestabilizam emocionalmente e se expressam por incertezas, incredulidade, medo e raiva. As participantes, aqui entrevistadas, ao narrarem suas experiências diante da soropositividade, apontaram para duas possibilidades de entendimento sobre o acometimento do vírus: não reconhecer a infecção como uma possibilidade possível, visto que a vida comedida não representaria um risco, ou se posicionando como merecedora das mazelas do mundo, quando a vida pregressa ao diagnóstico desafiava a normatividade, que impõe controle sobre seus corpos e sexualidades.

Obviamente, esses discursos que atravessam e constroem o entendimento do HIV/aids repercutem sobre os relacionamentos afetivo-sexuais dessas mulheres. As narrativas das participantes revelam que a soropositividade provoca estranhamento e conflitos entre o casal, embora, nem sempre, este estranhamento seja suficiente para pôr fim à parceria. As temáticas relacionadas ao HIV/aids comportam tensões que vão além das questões de saúde pública, inserindo-se também em torno das sexualidades e das relações de gênero. O modo de subjetivação dessas mulheres parece ser um elemento importante na maneira como construíram suas estratégias afetivo-sexuais, reiterando uma maior vulnerabilidade.

Entendemos que o peso de uma cultura machista e uma socialização sexista é um fator preponderante para a não contenção da epidemia do HIV. Pensando em função desta lógica, seria ilegítimo afirmar que as performatividades de gênero expõem apenas as mulheres, mas no caso da transmissão sexual, os homens também estariam fragilizados no sentido de que, para provar sua virilidade, são frequentemente estimulados a serem impulsivos, assertivos e sedutores. Contudo, devido à iniquidade de gênero e a todas as suas implicações, as mulheres ainda parecem ser mais vulneráveis.

No entanto, dizer que não houve mudanças no entendimento da epidemia é no mínimo irresponsável. Os aspectos mais contemporâneos sobre os avanços nas tecnologias biomédicas de prevenção, as problematizações em torno da ideia de risco e as reflexões sobre o conceito de vulnerabilidade, as ações de coletivos que objetivam potencializar a autonomia e empoderar grupos sociais marcados historicamente por desigualdades e exclusões são alguns indicativos das transformações ocorridas ao longo dessas quase quatro décadas. No entanto, as narrativas aqui apresentadas evidenciam que, apesar dos vários avanços, ainda há um longo caminho a ser percorrido no curso da resposta à epidemia.

Sobre as tecnologias de prevenção biomédicas, embora reconheçamos a importância dos seus avanços nas estratégias de resposta ao vírus, entendemos que o enfrentamento ao HIV não pode ser reduzido ao campo da biomedicina. Deve-se, sim, considerar e contemplar os diferentes aspectos do contexto do vírus, sejam eles culturais, sociais ou humanos. As estratégias de prevenção necessitam se adaptar às diversidades e às demandas dos sujeitos. É preciso problematizar, debater, falar sobre o vírus, falar sobre a aids, pensar sobre o leque de possibilidades de prevenção. Mas, mais do que isso, é preciso falar sobre sexualidade, vulnerabilidade e desejo.

É claro que aqui, ao apontar a necessidade de se tomarem estas temáticas e suas implicações como elementos de discussão social, não estamos nos referindo a novas formas de fazer circularem verdades sobre maneiras corretas de viver, se comportar ou fazer sexo, mas oferecer aos sujeitos espaços de escuta e acolhimento que favoreçam a autonomia, o empoderamento e o respeito, sejam estes espaços ambulatórios médicos ou salas de aula, instituições formais ou praças públicas. Sobretudo, mais do que falar, é necessário promover a autonomia e o empoderamento de suas vidas e escolhas.

A partir desta perspectiva, o cenário contemporâneo que se constrói e toma forma na nossa sociedade evidencia circunstâncias polarizadas. Se, por um lado, tecnologias de prevenção, como as profilaxias pré e pós-exposição, começam a ser disponibilizadas pelo SUS e se reconhece que pessoas com carga viral indetectável não transmitem o HIV, representando avanços na maneira de lidar com a infecção, por outro, o cenário se mostra sombrio quando o assunto é desejo, sexualidade, erotismo ou mesmo relações de gênero. Manobras políticas, concepções religiosas e inclinações conservadoras promovem obstáculos ou até censuram expressões sociais, fundamentando-se no critério do moralismo e da intolerância.

O recente fechamento prematuro da exposição “Queermuseu - Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”, que apresentava obras que discutiam a diversidade de gênero e de sexualidade, após uma série de protestos e manifestações articuladas, em sua maioria, por grupos religiosos e pelo Movimento Brasil Livre (MBL), é um dos vários exemplos do contexto delicado de intolerância que vivenciamos e da dificuldade de se promoverem discussões sobre as diversidades. Ações como esta e outras, muitas vezes veladas e sutis, fazem calar as possibilidades de expressão das sexualidades e dos sexos, reforçando a dificuldade de se verbalizar e discutir sobre assuntos “proibidos”, que acabam por ter um impacto negativo na resposta ao HIV, pois afastam as pessoas, ampliam desigualdades, promovem discriminação e intolerância e impedem a promoção da reflexão e do diálogo.

Assim, consideramos a necessidade de implementação e efetivação de políticas de saúde que evidenciem a vulnerabilidade feminina e que levem em consideração a diversidade, promovendo as várias maneiras de ser mulher e os diferentes usos que elas fazem de sua sexualidade. Para além de campanhas que estimulem o uso de preservativos, necessita-se de discussões que propiciem a autonomia feminina nas decisões relacionadas às práticas sexuais e ao seu empoderamento social.

Mais do que promover uma maior divulgação sobre a experiência de mulheres que vivem com HIV/aids, o engajamento político deste estudo se faz no sentido de incentivar reflexões sobre as regulações de gênero e os discursos que incidem sobre o controle dos corpos e das sexualidades, fazendo emergir modos de ser sujeito que reiteram estereótipos e exclusões. Aponta-se para a necessidade de discussões e políticas de saúde éticas que possibilitem o acolhimento das diferenças e das singularidades nas diversas maneiras de ser mulher.

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  • 1
    O uso do termo sorodiscordância é utilizado comumente na literatura nacional e internacional para definir o tipo de relação afetivo-sexual em que um dos parceiros é portador do vírus, e o outro, não
  • 2
    Relação afetiva-sexual em que ambos os parceiros são soropositivos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018
  • Data do Fascículo
    Dez 2018

Histórico

  • Recebido
    30 Maio 2018
  • Aceito
    13 Set 2018
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