Open-access O dispositivo “antes e depois” nas cirurgias estéticas íntimas: novas formas de materialização das normas de gênero1

The “before and after” dispositive in intimate aesthetic surgeries: new ways of materializing gender norms

El dispositivo “antes y después” en las cirugías estéticas íntimas: nuevas formas de materializar las normas de género

Resumo

Este artigo tem como ponto de partida uma reflexão sobre a produção de imagens e narrativas circunscritas em torno do dispositivo antes e depois. Argumenta que a divulgação de padrões estéticos, especialmente nas redes sociais, opera de modo a prescrever uma necessária transformação e aprimoramento de si. Analisa relatos de experiências de mulheres que realizaram a chamada cirurgia íntima (ninfoplastia ou redução dos pequenos lábios vaginais) com a intenção de melhoria estética. Os depoimentos provêm de um grupo de discussão em torno desses procedimentos na internet. Nos casos em que as intervenções cirúrgicas são avaliadas negativamente, o antes e depois não se realizam da forma prevista. Nesse cenário, as mulheres tendem a ressignificar a necessidade da cirurgia e a reconhecer a imposição, por parte da sociedade, de padrões corporais idealizados. Este processo é discutido por meio do debate acerca do pós-feminismo e constrangimentos de gênero.

Palavras-chave cirurgia estética genital feminina; antes e depois; gênero; sexualidade; pós-feminismo

Abstract

This article analyzes the production of images and narratives circumscribed around the dispositive before and after. It argues that the dissemination of aesthetic standards, especially on social networks, operates in order to prescribe a necessary transformation and improvement of the self. It analyzes reports of experiences of women who underwent the so-called intimate surgery (nymphoplasty or reduction of the labia minora) with the intention of aesthetic improvement. The testimonies come from a discussion group around these procedures on the internet. In cases where surgical interventions are negatively evaluated, the before and after are not performed as expected. In this scenario, women tend to resignify the need for surgery and recognize the imposition, by society, of idealized body standards. This process is discussed through the debate about post-feminism and gender constraints.

Key words female genital cosmetic surgery; before and after; genre; sexuality; post-feminism

Resumen

Este artículo tiene como punto de partida una reflexión sobre la producción de imágenes y narrativas circunscritas en torno al dispositivo antes y después. Argumenta que la difusión de normas estéticas, especialmente en las redes sociales, opera para prescribir una necesaria transformación y mejora del yo. Analiza relatos de experiencias de mujeres que se sometieron a la llamada cirugía íntima (ninfoplastía o reducción de labios menores) con la intención de mejorar estéticamente. Los testimonios provienen de un grupo de discusión sobre estos procedimientos en Internet. En los casos en que las intervenciones quirúrgicas son evaluadas negativamente, el antes y el después no se realizan como se esperaba. En ese escenario, las mujeres tienden a resignificar la necesidad de la cirugía y reconocen la imposición, por parte de la sociedad, de patrones corporales idealizados. Este proceso se discute a través del debate sobre el posfeminismo y las restricciones de género.

Palabras clave cirugía cosmética genital femenina; antes y después; género; sexualidad; posfeminismo

As imagens de antes e depois povoam nosso imaginário há algum tempo. Não apenas no sentido literal, de duas fotografias, por exemplo, ilustrando um processo de transformação, mas também no sentido metafórico, que nos remete quase que imediatamente à ideia de algo materializado de alguma forma específica previamente, que é recondicionado em algo diferente, após algum processo de mudança. Há assim, um tempo do antes e um tempo do depois, indicando que a transformação se passa em função de algum tipo de intervenção e com marcações definidas no tempo. O antes e depois tornam-se assim uma expressão cujo sentido parece ser absorvido de forma imediata, sem maiores questionamentos. E cuja remissão imagética passa por corpos e rostos transformados em virtude de inúmeros procedimentos, mas também remete a casas, ambientes de trabalho, vestuário e estilo de vida que foram submetidos a grandes mudanças. Não é por acaso que se multiplicam os programas de televisão focados em produzir e demonstrar tais transformações, sempre se esforçando em atestar as melhorias ou os ganhos merecidos por quem se sujeitou a tais tipos de intervenção (Heyes, 2007).

Mas é sem dúvida na internet e nas redes sociais que vemos se reproduzirem não somente as imagens, mas as histórias por trás do antes e depois. Especialmente aquelas dedicadas a atestar as mudanças corporais que, por sua vez, estariam atreladas a profundas mudanças subjetivas. Este artigo se propõe a discutir o antes e depois como um dispositivo que aciona e prescreve a ideia de transformação, de forma que a mera menção a este par de categorias remete ao imaginário das mudanças corporais envolvidas. Uso o termo dispositivo inspirada na obra de Foucault (1980), no sentido de um conjunto heterogêneo de elementos como discursos, instituições, decisões regulatórias, declarações científicas, proposições filosóficas, morais e filantrópicas (tanto o dito quanto o não dito) que conformam um determinado aparato ou sistema de relações de poder. No caso em cena aqui, o foco recai na associação entre esta declaração indicativa de transformação e os condicionantes de gênero envolvidos. Pode ser usado para pensar acerca de mudanças apresentadas como negativas, como aquelas associadas ao envelhecimento, por exemplo, o que em si já traduz sua profunda conexão com padrões corporais vinculados a normas de gênero e juventude, em particular.

Porém, seu uso mais recorrente e que interessa particularmente neste trabalho tem a ver com a tentativa de produção de uma moralidade singular, atrelada à noção de aprimoramento de si, via transformações corporais-subjetivas. O argumento central é que não se trata apenas da evocação e constatação da mudança ocorrida, mas de demonstrar ou indicar que um processo vigoroso ocorreu. Um processo decorrente de muitos investimentos, desde a percepção do desejo de transformação, a busca por informações a respeito das possibilidades de solução de algo percebido como um problema, até a realização efetiva das alterações. Trata-se, possivelmente, de um longo percurso no qual não apenas recursos financeiros, mas tempo e dedicação são empregados na busca pelo corpo almejado.

Este fenômeno de busca de transformação e aprimoramento certamente não é novo e pode ser reconhecido em muitos contextos distintos (Rose, 2007). Contudo, gostaria de chamar a atenção, em especial, para como se operacionaliza mais recentemente por meio das redes sociais e do uso das imagens que expressam a força do dispositivo antes e depois. Além disso, pretendo também argumentar a respeito de como o gênero se atualiza de forma intensa via este imperativo de transformação e aprimoramento de si, sem deixar de considerar também a importância que raça/etnia, sexualidade e juventude/envelhecimento têm neste fenômeno.

Para tanto, vou recorrer a um caso bastante exemplar e que vem aos poucos chamando a atenção de algumas pesquisadoras no campo das ciências sociais no Brasil (Borges, 2011; Schimitt, 2014; Silva, 2019; Rohden, 2021; Rohden, Cavalheiro, 2021; Cavalheiro, 2022). Trata-se de como as chamadas cirurgias íntimas realizadas em mulheres cisgênero são relatadas em grupos na internet e redes sociais. Esses procedimentos são também denominados de design vaginal, ou cirurgia estética genital, e englobam uma série de intervenções distintas, como a labioplastia, ninfoplastia ou redução dos pequenos lábios vaginais (intervenção feita com mais frequência), mas também a redução do clitóris, a diminuição do monte de Vênus, a himenoplastia, o enxerto de gordura nos grandes lábios, o “rejuvenescimento vaginal” e, até mesmo, procedimentos de “clareamento da região”. Trata-se de práticas anunciadas pelos/as médicos/as, por clínicas, pela mídia e pelos grupos em redes sociais como sendo cada vez mais procuradas, sem maiores discussões acerca do papel de médicos/as e da mídia na produção deste fenômeno (Jones, 2017; Rohden, 2021). De acordo com os dados mais recentes divulgados pela Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética em 2020 (ISAPS, 2019), referentes a procedimentos realizados no ano de 2019, o Brasil não é apenas o país campeão no número de procedimentos estéticos cirúrgicos no geral, chegando a um total de 1.493.673 (13,1% do total), como também detém o primeiro lugar no ranking da chamada labioplastia, ninfoplastia, ou cirurgia de redução dos pequenos lábios vaginais. Foram 30.356 procedimentos realizados em 2019, perfazendo 18,43% do total deste tipo de cirurgias feitas no mundo.

A partir de pesquisas realizadas com este tema desde 2019, um diversificado conjunto de materiais e análises tem permitido entender esta prática como associada a fatores complexos que, se por um lado atestam a busca ativa de mulheres pela resolução de questões que afetariam uma percepção satisfatória de si mesma, por outro indicam como as pressões sociais por um corpo feminino idealizado condicionam os limites das escolhas possíveis. Aquilo que pareceria apenas uma escolha estética individual delimitada a uma pequena parte do corpo, que passa a maior parte do tempo escondida, na verdade, refere-se a e expressa um conjunto de dispositivos de distinção social que vêm sendo construídos historicamente.

Esta discussão é apresentada em detalhes no trabalho de Nurka (2019) acerca das cirurgias cosméticas genitais femininas e do interesse da medicina ocidental na compreensão anatômica e fisiológica da genitália feminina. A autora argumenta que, historicamente, a configuração da categoria hipertrofia das ninfas ou pequenos lábios constitui-se por meio da conformação de duas alteridades distintas. No primeiro caso, trata-se da diferenciação do corpo feminino em relação ao masculino, e de como a genitália feminina precisou ser descrita por oposição à masculina. No segundo, trata-se, no contexto das ciências raciais coloniais, da distinção entre mulheres brancas e negras, de origem africana (inclusive em culturas em que se praticava o alongamento dos lábios vaginais), que representaria uma outra alteridade radical ao padrão de corpo feminino europeu. Por meio desses dois percursos de diferenciação vai se constituindo um padrão de normalidade que ainda influencia as práticas de intervenção cirúrgicas atuais. Conforme a autora, tais práticas evocam uma fantasia de normalidade, ou o que chama de uma projeção imaginária do sexo, que é intolerante à variação não binária feminino/masculino.

No que se refere ao cenário mais contemporâneo, Braun (2009) chama a atenção para o fato de que procedimentos como redução e simetrização dos pequenos lábios, preenchimento dos grandes lábios, redução do monte de Vênus, estreitamento do canal vaginal, diminuição do clitóris, reconstrução do hímen e ampliação do ponto G já vinham sendo realizados há mais de 30 anos. Porém, é somente a partir do final dos anos 1990 que passam a fazer parte do discurso público, por meio da divulgação na grande mídia. Ao estudar sites de cirurgiões/ãs, dos Estados Unidos e de outros países de língua inglesa, que ofereciam procedimentos relacionados ao “designer vaginal”, a autora argumenta que os médicos em questão produzem um discurso que patologiza a diversidade corporal, presume a heterossexualidade e a existência de uma anatomia “correta”.

Ao afirmarem que propiciam práticas de melhoramento corporal que ajudariam na autoestima das mulheres, justapõem um certo discurso de “empoderamento feminino” com a produção de ansiedades relativas à estética. Isso ocorre, segundo Braun (2009), porque os sites atuam de forma a ensinar as mulheres a reconhecer o que seria esteticamente adequado. Assim, as fotos de antes e depois contribuiriam de forma essencial na produção do que seriam genitálias consideradas “normais”, “pequenas”, “bonitas” e “desejáveis”. As imagens e os adjetivos usados para descrevê-las indicam a conformação de um padrão de “infantilização” e “limpeza” que também estaria sendo inscrito na pornografia tradicional. Dessa forma, concepções acerca do que seria certo e errado na morfologia do corpo feminino atuariam fortemente na conformação e reprodução das normas socioculturais relativas à sexualidade e à genitália das mulheres.

No caso do Brasil, também se nota que a profusão de um discurso público sobre este tipo de cirurgia é um fenômeno relativamente recente, tanto na mídia em geral como nas redes sociais, como atestam os trabalhos de Schimitt (2014) e Silva (2019), também ancorados em uma análise desde a perspectiva das relações de gênero. Silva (2019), inclusive, aponta para a existência de um novo ativismo online, centrado no empoderamento feminino e na divulgação das controvérsias em torno das cirurgias íntimas no país. Contudo, a despeito da existência deste tipo de ativismo e das disputas relativas aos significados e implicações dessas cirurgias no que se refere aos padrões de gênero, sexualidade, raça/etnia e geração, observa-se nas redes sociais também o fortalecimento de discursos e grupos pró-cirurgia. É por meio do material, produzido a partir do acompanhamento desses grupos, que algumas questões analíticas serão trazidas aqui.

A materialização das experiências na rede

Este artigo se apoia em um conjunto de mais de 700 experiências que são relatadas em um site dedicado a divulgar e trocar informações sobre cirurgias plásticas, acessado entre 2020 e 2022. Neste espaço, as pessoas são incentivadas a relatarem as suas experiências reais, trocarem informações e dúvidas, inclusive sobre indicações de médicos/as em suas cidades, fazer perguntas a médicos/as especialistas e avaliar, caso a cirurgia já tenha sido feita, como foi o seu procedimento. Embora a pesquisa contemple também um longo acompanhamento de grupos de WhatsApp sobre o tema, que apresentam um conteúdo muito semelhante ao retratado no site, por terem um caráter mais privado e pelo grau de exposição pessoal que implicam, não serão acionados diretamente neste trabalho. Já no caso do site sobre cirurgias, o material é público e o propósito parece ser exatamente o compartilhamento público das experiências. Apesar disso, em função da preservação da intimidade e da privacidade das pessoas envolvidas, não será feita nenhuma forma de identificação do site ou dos discursos acionados, embora na própria página já sejam usados pseudônimos pela maior parte das participantes. O intuito, neste trabalho, não é uma análise deste site em si, nem particularmente do conjunto dos relatos sobre ninfoplastia, mas de como as experiências do antes e depois e do arrependimento são acionadas neste espaço de compartilhamento entre mulheres que fizeram ou pretendem fazer a cirurgia. Informo que os trechos transcritos sofreram pequenas correções, de modo a facilitar a leitura e a compreensão, e que os acréscimos feitos são indicados por colchetes.

A título de comparação, é válido mencionar que se, em maio de 2022, a ninfoplastia congregava 728 relatos, a rinoplastia contabilizava 227, a abdominoplastia, 192, a mamoplastia de aumento, 134, e a cirurgia de redução de mamas apenas 53, dentre muitos outros casos. Este contraste talvez seja indicativo de como este tipo de cirurgia em particular leva as mulheres a procurarem uma troca de informações na internet. Os relatos parecem muito verdadeiros, semelhantes aos vistos nos grupos privados de WhatsApp e, especialmente, revelam momentos de tensão, dúvidas e dificuldades e a busca por algum tipo de suporte que se dê sob o anonimato e que seja mais imediato. Muitas mulheres, por exemplo, procuram este recurso no momento do pós-operatório e, muitas vezes, sem a disponibilidade ou a coragem para entrar em contato com seu/sua cirurgião/ã, exatamente porque temem que algo de errado tenha sido feito.

Vários relatos positivos enfatizam que a ninfoplastia era um sonho que começou na adolescência, que se sentiam constrangidas com a aparência da genitália e que a realização da cirurgia foi uma mudança de vida, como exemplifica o depoimento abaixo:

Ninfoplastia mudou a minha vida.

Me sentia diferente, não me amava completamente (...). Talvez pra algumas pessoas seja só um detalhe; pra mim era um sonho a ser realizado (...). Estou me sentindo muito feliz. Se você sonha em fazer essa cirurgia procure uma clínica, um médico de confiança e recomendo sempre um cirurgião plástico para deixar como sempre sonhou.

Já para outras, a experiência da cirurgia foi o “sonho que deu errado”. Exatamente porque essas situações tendem a ser pouco divulgadas é que serão tomadas como objeto privilegiado nesta análise. Pretendo contribuir para a sua visualização, mostrando como os cenários podem ser bastante complexos, diferentemente do que o antes e depois idealizado poderia indicar. Em alguns desses casos, trata-se de uma percepção muito imediata no pós-operatório, em que as dores e a aparência da região não são identificadas como dentro do previsto por elas.

Algumas mulheres indicam a disjunção entre a visão inicial acerca do procedimento, apresentado como fácil e tranquilo, face às suas próprias vivências permeadas pela dor:

Ontem fez um mês que fiz e também senti muita dor no pós [operatório], cheguei a achar que tinha alguma coisa errada comigo porque dizem ser bem tranquilo. Mas o médico disse que é muito dolorido mesmo, que tava normal...

Olá meninas, eu estava vendo os comentários de vocês por que estou muito aflita. Fiz minha cirurgia ontem e estou sentindo muita dor e eu estava olhando hoje, tá muito feia e um lado parece que foi mais cortado do que o outro, e num lado tem duas bolinhas tá muito estranha, estou muito preocupada.

Oi meninas, fiz minha cirurgia dia 01/11, hoje percebi que um lado está bem inchado, e parece que um ponto abriu... Vendo as postagens fiquei triste porque a maioria não gosta do resultado.

Mesmo algum tempo depois da intervenção e passados os momentos mais críticos do pós-operatório, relatam a insatisfação com os resultados:

Olha, desinchou praticamente tudo, mas confesso que não atingiu as minhas expectativas, dia 08 tenho retorno e vou comentar sobre um retoque.

Oi, não estou gostando, estou triste porque corri tanto atrás pra isso... Deus ajude de melhorar essa aparência.

Fiz a minha já tem 45 dias, ainda não estou 100% satisfeita, o médico disse que vai 6 meses pra ver bem o resultado, enfim vamos aguardar.

Há casos em que o desgosto com a operação faz com que se prossiga na busca por retoques e reparações. Uma das participantes do grupo informa que fez a cirurgia duas vezes e nas duas ocasiões “os pontos abriram”. Ela, então, foi em outra médica que lhe recomendou refazer o procedimento em seis meses. Acrescentou que se sentia “totalmente frustrada” com a experiência. Outra descreve sua história como uma “experiência muito desagradável”, depois de fazer o procedimento três vezes (em 2018, 2019 e 2020), pelo plano de saúde. Nas situações nas quais a avaliação é negativa, é comum as outras participantes perguntarem sobre e indicarem o retorno ao/à médico/a. Em tais eventos, algumas respostas seguem na direção da recusa, expressando que elas não sentem mais confiança no/a profissional. Isso acontece no pós-operatório, por exemplo:

Nunca mais voltei nela, mandei zap, e ela só disse assim: te espero no consultório pra gente conversar. Fiquei com pavor. Troquei de médico. Não sou nem doida de voltar nela.

Na verdade, eu nem procurei porque perdi a confiança.

Porém, também reaparece passado um longo período:

Já tem quase 1 ano e meio, falei sim [com a médica] uns 6 meses depois. Ela disse pra eu voltar lá, e tu acha que eu tenho coragem? Mesmo assim que fale que vai me operar novamente eu não deixo, ela não, misericórdia.

Por outro lado, mesmo referindo os problemas do pós-operatório e a falta de informações prévias sobre isso, é importante dizer que algumas ainda recomendariam o procedimento:

Olha, é muito dolorido, principalmente o pós; eles falam que em 3 dias pode voltar a trabalhar, mas é impossível. Até agora está doendo bastante, mas já está bem desinchada e não me arrependi nem um minuto.

Fiz minha ninfo ontem e percebi uma melhora significativa em relação aos pequenos lábios expostos, mas acho que ninguém fala sobre a dor do pós operatório, achei que ia ser muito mais tranquilo mas até pra sentar a dor é insuportável nos primeiros dias... Recomendo a cirurgia, mas o processo de pós operação é bem complicado...

Além disso, também se faz presente o discurso do aperfeiçoamento, mesmo em casos nos quais a intervenção não deu certo. Em um episódio deste tipo, uma participante comenta: “Se você não está satisfeita (não estou falando de perfeição) procure outro profissional e refaça o procedimento, não viva com a ideia do “e se” pudesse melhorar, “e se” eu tivesse procurado outra opinião...”. Dessa forma, permanece aberta a possibilidade de um novo investimento, de uma nova intervenção, fazendo prolongar o tempo das expectativas em relação às melhorias possíveis.

Em geral, a dinâmica de interação é intensa, com tentativas de ajudar quem está enfrentando as dificuldades do pós-operatório ou insatisfações mais intensas. E nem sempre as opiniões seguem na mesma direção. Em um caso, por exemplo, uma moça disse que: “Não sei o que faço agora. Minha cirurgia está marcada pra terça agora. E vendo os comentários juro que estou aflita com muito medo de dar errado e ficar pior.” A isso houve duas respostas distintas: “Fique calma! Não é assim, muitas meninas têm bons resultado...”; “Não faça! Eu fiz e me arrependi muito!”. A segunda nos remete ao conjunto de depoimentos centrados no arrependimento por ter feito a cirurgia.

A percepção do arrependimento merece uma atenção mais prolongada, inclusive porque aparecem inúmeros relatos que se aglutinam em torno desta categoria, usando esta palavra e outras afins para dar título às próprias postagem. Além disso, nota-se também as menções a ter tido seu “sonho destruído” e até mesmo a “se sentir mutilada”, revelando, dessa forma, a força das consequências negativas do procedimento cirúrgico na vida dessas mulheres, como indicado a seguir:

Pelo menos nesse momento, o meu sentimento é de mutilação, é bem agonizante. Vamos torcer pra ficar legal o resultado?! Uma vez que fazemos a escolha, devemos assumir as consequências, ok?! E rezar, torcer, cuidar pra ficar bonito.

A tradução da experiência pela imagem do sonho transformado em pesadelo, depois de tanto esforço e investimento, foi recorrente e pode ser vista no caso abaixo:

E o que pra mim seria a realização de um sonho virou um pesadelo!! Minha mãe comovida com meu sofrimento realizou um empréstimo para que eu fizesse a cirurgia... o pós operatório foi muito doloroso, mas se fosse só isso estaria bom!!

Cirurgia super mal feita... um lado ele cortou praticamente tudo... um lado ficou maior que o outro... sem contar que continuam grandes e caídos!! Estou a ponto de entrar em depressão... pois gastei o único dinheiro que tinha e não estou satisfeita com a cirurgia... está quase a mesma coisa que era antes... sendo que agora tenho um lado maior que o outro e um buraco também. Fico olhando no espelho praticamente o dia todo... choro o tempo todo... Não tenho vontade e nem coragem de me relacionar com ninguém!!

Em vários relatos, surge a ideia do arrependimento pela referência ao fato de que, afinal, o aspecto da genitália antes da cirurgia não era tão problemático ou até mesmo era bonito e que com o procedimento “ficou muito pior”:

Eu acho que joguei tudo fora [ao fazer a cirurgia e ficar pior].

Eu também não gostei do meu resultado, meu caso é como o seu, as cicatrizes ficaram horríveis e eu tenho dor depois da relação, meus poucos lábios que sobraram ficam com rachaduras profundas causadas pelo ponto (sutura malfeita). Eu paguei pra deixar o bonito feio.

Pelo visto não fui a única, meus pequenos lábios sempre me incomodaram, e hoje estão piores, arrependimento sem tamanho, jamais deixarei alguém fazer oral em mim daqui para frente. Meu lado esquerdo muito mal costurado além de ter ficado maior que o direito, e meu clitóris afff, nem sei mais o que dizer, acabou com a minha vagina... muito arrependida. Além de toda dor, sofrimento, agora MUTILADA!!!!

Este outro relato também sintetiza um desejo de “ficar mais bonita” e o arrependimento depois de ver os resultados do processo:

Também fiz uma cirurgia de labioplastia, sofri muito, aí não parava de sangrar. Então marquei uma consulta com o médico. Porém antes de sair pra ir na consulta fui ao banheiro e meu lábio esquerdo simplesmente rasgou no corte, ficou pendurado, horrível. Aí no consultório do médico ele me pediu pra ir no hospital no dia seguinte pra arrumar e sabe o que ele fez: cortou os dois lábios. Tem quase um ano que eu fiz. Queria me sentir mais bonita e acabei ficando mais feia.

Em outro caso, a participante conta que fez a cirurgia aos 16 anos, o que não é incomum e chama ainda mais a atenção para a necessidade de discutir este procedimento e suas consequências com mais profundidade. Afirma que se soubesse das consequências, não o teria feito:

Eu fiz a minha cirurgia quando tinha 16 anos (hoje tenho 25), na época meu pai trabalhava em uma empresa e nós tínhamos um bom convênio por isso eu me apressei em fazer a cirurgia com essa idade.

Os grandes lábios me incomodavam muito, seja esteticamente e seja porque eles grudavam na minha calcinha e acabavam me machucando [...] Pra resumir, a cirurgia ficou horrível! Minha vagina parece uma couve-flor, eu praticamente não tenho mais pequenos e grandes lábios, dá pra ver a costura feita, tem um lado que meio que está descosturado, meu clitóris tá escondido... Eu me arrependi amargamente, ficou pior do que era antes! Se eu soubesse que ficaria assim, não teria feito a cirurgia. Eu tenho muita vergonha de ficar pelada na frente dos outros e de me relacionar sexualmente... não sei o que fazer de verdade! Estou pensando em ir em um cirurgião plástico pra ver se ele consegue consertar o estrago.

[...] Que tristeza gente.

Na sequência, outra mulher compartilha a mesma percepção:

Eu entendo essa frustração, eu também me arrependo de ter feito a minha, deveria ter pesquisado e perguntado mais sobre as técnicas, mas já está feito, também vou procurar alguma forma de tentar melhorar.

Já os trechos a seguir indicam não só descontentamento, mas mencionam vergonha e ainda fazem referência ao fato de que os resultados são analisados visando os possíveis relacionamentos:

Isso, [o médico] tirou praticamente tudo [os pequenos lábios]. Sentia vergonha antes, mas hoje em dia me sinto pior, atrapalhou praticamente 90%, imagina pra quem é solteira.

Não verdade eu morro de vergonha em ter que começar um novo relacionamento. Esteticamente não me sinto confortável.

Sentia também vergonha. Agora acho que estou mais com vergonha que antes... Nossa...

O problema é que eu não acostumo não. Como foi retirado praticamente tudo, os grandes lábios murcharam e ficam tipo fechados, sabe quando uma flor murcha, igual. Ou parece que eu emagreci 50 kg. Fui casada e me separei, aí tive a brilhante ideia de fazer essa cirurgia, só pra ficar pior.

Contudo, chama a atenção uma forma mais específica pela qual o arrependimento aparece e que gostaria de destacar. Trata-se da relativização da necessidade da cirurgia. Algumas mulheres indicam que se na época do procedimento tivessem pensado melhor, discutido mais livremente com alguém, recebido orientações sobre a diversidade anatômica da genitália, não teriam realizado o procedimento. A isso, às vezes, se soma a avaliação de que o/a profissional ao/à qual tiveram acesso não o realizou de forma competente e satisfatória, como na narrativa a seguir:

Eu acho que é falta de comunicação entre médico e paciente. Meu caso me incomodava, pois na minha época eu não tinha o esclarecimento que temos hoje, eu não sabia nem por onde nasciam os bebês. Hoje a tecnologia está avançada.

Então a pessoa que se sente constrangida, que não se aceita, quer mudança para ficar feliz com ela mesma, procure informações, não faça de qualquer maneira com açougueiro, como foi meu caso. Ele não estudou, simplesmente cortou tudo. Como já disse nas publicações de outras meninas, eu me arrependi.

Hoje não tem como reconstruir...

Um outro aspecto relevante diz respeito à questão das imagens de antes e depois, nesses casos nos quais se percebe a cirurgia como insatisfatória. Enquanto nas experiências positivas é comum a publicação das fotos de antes e depois, nos eventos cujos resultados foram negativos, não só as imagens não aparecem como algumas participantes explicitam a recusa em postá-las no grupo. Como a circulação das fotos é frequente, inclusive é comum as outras integrantes perguntarem sobre as fotos quando estas não são publicadas de imediato. Nos casos de insatisfação com os resultados, surge a declaração de incômodo e falta de coragem para postar a foto (ou mesmo para olhar-se no espelho ou mostrar os resultados para alguém). O exemplo a seguir traduz bem essa percepção:

Você tem foto do seu resultado?

Eu tirei foto hoje, e vi que realmente minha cirurgia ficou horrível, eu não tenho coragem de mostrar a foto. Estou péssima porque eu vi de perto o estrago, estou muito mal. Eu não quero destruir o sonho de ninguém, mas tem casos que não são necessários, lábios pequenos correm o risco de sumir e ainda ficar a marca da cicatriz. Eu só aconselho essa cirurgia pra quem tem demasiado grande [...], caso contrário não façam isso. Hoje eu percebo que meus pequenos lábios não eram grandes. Estou em pedaços.

Por fim, o enquadramento negativo da experiência também é sintetizado em mais uma forma singular, que enfatiza o arrependimento por meio da vontade de “voltar no tempo”:

De verdade, eu queria voltar no tempo com a cabeça e informação que tenho hoje, eu gostaria de ter a minha vagina de antes. Era pepecão pelancudo mas era bonito, hoje é pequeno mas é torto, feio, cheio de cicatrizes e sinto muitas dores porque meu pequeno lábio sempre está rachado devido à sutura mal feita.

No contexto das trocas de mensagens sobre este caso, várias outras participantes interagiram fazendo referências ao fato de que “se arrependeram completamente”. Duas outras acrescentaram:

Eu acho que sei qual foi a técnica utilizada em você [...] foi a cicatriz que ficou marcada mesmo, os pequenos lábios vaginais são delicados e se apertar muito os pontos, a probabilidade de marcar na linha é grande, e com o tempo essas marcas vão se aprofundando e causando dor e incômodo. De verdade, se eu pudesse voltar no tempo eu não faria, hoje eu vejo que era muita paranoia da minha cabeça.

Eu também não faria se pudesse voltar atrás, não existe uma vagina padrão. Isso é coisa da nossa cabeça.

Estas últimas declarações, que traduzem um desejo de retorno ao antes, ao tempo prévio à intervenção, acionam também um recurso muito importante. Trata-se de uma releitura de toda a experiência e, inclusive, da necessidade de fazer a cirurgia. Com “mais informação”, afirmam, não teriam se deixado levar por tais imposições que reconhecem como sendo algo da sociedade incutido nas suas “cabeças”. Dessa forma, também indicam uma relativização da questão como algo biológico, referente a uma anatomia que precisaria ser corrigida. Ressignificam, assim, até mesmo a produção do desejo de “correção” como algo individual. E expressam um processo de relativização da importância do procedimento referindo-se, sobretudo, aos padrões e exigências impostos aos corpos das mulheres em nossa sociedade. Este processo será alvo das considerações finais deste artigo.

Sonho realizado ou pesadelo que não acaba

As experiências narradas nesses relatos revelam várias situações diferentes e várias resoluções (ou a falta delas) atreladas às cirurgias estéticas genitais. Temos um conjunto que descreve a ninfoplastia como “um sonho realizado”, expressão surgida muitas vezes. Nesses casos, as mulheres contam como o desejo de “corrigir” ou “melhorar” a aparência da sua genitália era antigo e que o procedimento exitoso “mudou as suas vidas”. As fotos de antes e depois aparecem insistentemente, ao lado dos depoimentos e parecem ter uma força capital para atestar o êxito da experiência. Dessa forma, configura-se quase que um retrato ideal da operação do dispositivo do antes e depois. Aquilo que era percebido, nas palavras delas, como feio, desconfortável, desagradável, horrível, grande, assimétrico, excessivo, que gerava ansiedade e vergonha se transforma, via a intervenção cirúrgica, em algo novo, descrito como belo, perfeito, harmonioso, pequeno, agradável. E, além disso, uma parte íntima do corpo que agora pode ser vista, por elas próprias, mas também mostrada para possíveis parceiros (já que não aparecem menção a parceiras, indicando o caráter heteronormativo de tal prática) e também para as companheiras de jornada, nos grupos sobre cirurgia íntima. Este parece ser o percurso ideal acionado pela imagem do antes e depois, configurando uma transformação que pode ser mostrada, operada na carne, na dimensão espacial, material; além de um percurso resolutivo, efetivado na dimensão temporal, que chega a um fim determinado. Transformação no espaço e no tempo que se realiza de forma adequada, atualizando e reforçando o dispositivo.

Em contraste, um outro conjunto de narrativas se aglutina em torno da ideia de que a experiência da cirurgia foi e continua sendo um grande pesadelo. O desejo de mudança e satisfação com o próprio corpo acabou por se traduzir em alterações anatômicas consideradas desastrosas e em sofrimentos que não acabam. A transformação na carne não chegou aos resultados esperados e, portanto, traz uma nova suspensão em relação à chegada em uma condição considerada ideal. Mais do que isso, em muitos casos, há uma percepção de piora em relação ao aspecto da genitália, que se traduz nos relatos e na ausência das imagens. As mulheres que passam pelo percurso da cirurgia se recusam a publicar as imagens daquilo que consideram um “desastre”. Dessa forma, não se tem o depois, tanto nas alterações no próprio corpo, mas também não se tem o depois nas imagens do que “deu errado”. E o tempo do depois não chega, já que persiste a temporalidade do sofrimento, da insatisfação, da ansiedade. Sendo assim, a prescrição acionada pelo dispositivo antes e depois não se realiza da forma esperada. Não há a transformação adequada na matéria, no alcance de uma nova anatomia ideal e não há, tampouco, a chegada a um esperado fim do processo.

Há, portanto, nos grupos das redes sociais e no site analisado, mas não só, uma ausência da materialização e da concretização via as imagens, nos casos em que os procedimentos foram considerados insatisfatórios. E se este contraponto às experiências positivas não aparece, o dispositivo antes e depois, que traduz e impõe a experiência dessas intervenções cirúrgicas como satisfatórias e exitosas, acaba sendo reforçado, já que não são mostradas as imagens consideradas inadequadas ou imperfeitas. Nesse ponto, é interessante lembrar que muitas mulheres se questionam a respeito do fato de que as cirurgias de todas as outras que viram nas imagens que circulam nas redes parecem ter tido resultados excelentes e que apenas a sua experiência foi negativa. Isso pode contribuir ainda mais para a percepção de frustração, culpa e vergonha que relatam nessas situações, individualizando ou pessoalizando a responsabilidade pelo problema.

Nesse cenário, aparece o tema do arrependimento, do desejo de não ter feito a intervenção, de voltar atrás no tempo. O depois, portanto, deveria desaparecer para um retorno ao antes. Isso se traduz tanto nos relatos de dores, incômodos, impedimentos no pós-operatório, em um tempo ainda provisório, no qual ainda se tem a expectativa de uma chegada ao depois satisfatório. Porém, se expressa com mais ênfase em narrativas elaboradas meses depois da cirurgia, nas quais persiste a impressão de insatisfação e arrependimento. Nessas situações, é importante ressaltar que novos argumentos são acionados. Referem-se a um novo enquadramento da experiência, no qual se passa a problematizar a necessidade e o desejo da cirurgia. Frases como “antes estava ótimo”, “eu fui muito exigente”, “não tinha necessidade de operar” ou mesmo afirmações diretas acerca das “pressões” ou “exigências” da sociedade em relação ao corpo feminino vêm à tona.

Para além da consideração das experiências em seu caráter individual, o que cabe neste exercício analítico é ponderar porque esta avaliação diferente da experiência, em relação ao momento no qual optaram por fazer a cirurgia, não emergiu antes. Se esta relativização é possível tempos depois, não teria sido considerada antes? É certo que sob o ângulo do dispositivo antes e depois, podemos identificar aqui uma espécie diferente de depois. Nesse caso, é somente após a experiência avaliada como negativa que a mudança de posicionamento é possível. Trata-se, talvez, de uma espécie de inversão do preconizado inicialmente e restritamente em relação à resolução dos problemas percebidos no antes como exclusivamente cirúrgicos. A única opção para as insatisfações com a aparência da genitália seria o redesenho com o bisturi. E não, por exemplo, um questionamento acerca das exigências de perfeição em relação a um padrão de corpo idealizado. Parece que no caso de algumas mulheres que se submetem a esses procedimentos, só a força da experiência negativa levou a essa nova apreciação de todo o processo.

O antes e depois no cenário pós-feminista

Essa discussão remete também à necessidade de refletir acerca dos processos de subjetivação em cena e, particularmente, ao que diz respeito às conexões entre transformações corporais e subjetivas. No caso das mulheres que relatam as suas experiências com as cirurgias íntimas, o desejo de mudança no corpo é relatado como um meio de chegar à realização de si, à satisfação pessoal, à melhoria da autoestima e se reconhecer na própria anatomia. A busca pela transformação se dá mediante um processo de escolha e de muitos investimentos. Há, portanto, uma agência que se efetiva no caminho adotado e que precisa ser reconhecida como legítima. Contudo, isso não quer dizer que não possamos discutir os constrangimentos sociais mais amplos que condicionam o rol de escolhas possíveis. E que são até mesmo reconhecidos por algumas dessas mulheres quando ponderam as razões da procura pelas cirurgias.

Esta questão tem sido objeto, para além de debates mais antigos no campo dos estudos de gênero e feminismos (Heyes, Jones, 2009), dos recentes estudos em torno do pós-feminismo, principalmente atentos às mudanças expressas na mídia cultural, internet e redes sociais (Gill, 2007; McRobbie, 2015; Dobson, 2015; Riley et al 2017; Dobson, Kanai, 2018). O conceito de pós-feminismo mostra a conformação de uma rede de valores comuns circulando em torno da ideia de que as mulheres, sobretudo a partir do início do século XXI, já teriam ultrapassado as demandas trazidas pelos movimentos ou ondas feministas anteriores. Diante da liberdade, autonomia, capacidade de trabalho supostamente já alcançadas, passam a se concentrar nas demandas individuais e nos projetos de realização de si, abandonando qualquer discussão mais coletiva e procurando se distanciar do que seria “político”. O foco no individual, no consumo, no aprimoramento e nos valores neoliberais caracterizariam esta nova percepção de si como “empoderada”, dotada de escolhas e agência próprias (McRobbie, 2015).

Em seu livro Postfeminist Digital Cultures: Femininity, Social Media, and Self-Representation, Dobson (2015) propõe que a objetificação contínua e proeminente dos corpos femininos na cultura visual ocidental passaria agora a ser enquadrada como uma escolha ou resultado da agência das próprias mulheres. Conforme a autora:

Estas são mudanças que complicam o próprio binário objeto/sujeito, pois as mulheres são apresentadas como, e convidadas a uma objetificação agencial ou melhor, subjetificação sexual que ainda envolve, em suma, muito trabalho e exibição de um corpo disciplinado pelo gênero. Além disso, uma gama relativamente estreita de corpos jovens, magros, brancos e capazes ainda são fetichizados na cultura popular pós-feminista. (Dobson, 2015: 31, tradução minha)

Em outro trabalho, Dobson e Kanai (2018) demonstram como na cultura midiática global, por meio dos fluxos da globalização acelerada em rede, a nova sensibilidade pós-feminista vem crescendo. Categorias como o slogan girl power (poder feminino), que indicaria uma certa valorização do feminino, mas já reduzido à capacidade de consumo e distante da política coletiva feminista, seriam centrais nesse processo. As redes sociais serviriam de forma fundamental a esta objetificação de si, com uma incorporação de padrões modelares de uma estética corporal altamente disciplinada pelo gênero.

Riley et al (2017) complementam este debate com uma contribuição particularmente importante para este artigo. Para as autoras, as sensibilidades pós-feministas, principalmente após os anos 2000, além de rejeitarem certos posicionamentos feministas como radicais, abarcam ideais como emancipação, liberdade de escolha e empoderamento, readaptando-os de forma a caberem em práticas de subjetivação que valorizam padrões de comportamento liberais, mas que não necessariamente seriam emancipatórios para as mulheres. Nesse processo, as fronteiras entre corpo e subjetividade são dissolvidas, no sentido de que se torna imperativo transformar o corpo para poder transformar a mente. O trabalho corporal, as mudanças estéticas, de estilo de vida e de vestimenta produziriam efeitos psicológicos e emocionais, por sua vez também transformadores. Aprimorar-se, neste contexto, torna-se primordial para poder alcançar uma “boa vida”.

Contudo, para dar conta deste fenômeno, vou me deter um pouco mais no influente trabalho de Gill (2007), que descreve de forma pioneira o cenário do que chama de sensibilidade pós-feminista. Por meio de estudo da cultura popular midiática (filmes, televisão, shows, propagandas e outros produtos da mídia) em países de língua inglesa, elenca um conjunto de temas inter-relacionados (e não coerentes, pois a contradição é um aspecto crucial no processo) que caracterizam este panorama. O primeiro tema seria exatamente a já citada mudança da objetificação sexual para a subjetivação sexual, na qual as próprias mulheres incorporam práticas sexualmente objetificadoras, mas com a percepção de que estas seriam resultado de uma sexualidade agenciada e consciente. O recurso às transformações corporais como as cirurgias íntimas no contexto aqui tratado poderia ser lido nesta direção.

Outro ponto é que a feminilidade passa a ser circunscrita como uma propriedade corporal, produzida através de práticas que exigem autovigilância e trabalho corporal relacionado à aparência, tornando o corpo o local do sucesso e da identidade da mulher. As referências às cirurgias íntimas como “a realização de um sonho”, na direção de finalmente se reconhecer como “mais feminina”, podem exemplificar isso. Outro elemento seria o que Gill (2007) chama de “paradigma de transformação”, que reestruturou o consumo e o trabalho na própria aparência, como fortalecedores e prazerosos, em virtude da celebração de suas possibilidades transformadoras em direção à autorrealização, à libertação e à exposição de uma versão melhorada de si.

Por fim, outro aspecto que se agrega aos anteriores, é a reafirmação da diferença de gênero e do essencialismo biológico que posicionou as preocupações e prazeres tradicionais femininos em torno da aparência e do consumo, como escolhas naturais das mulheres contemporâneas. De acordo com a autora, de forma combinada, estes temas originais de uma sensibilidade pós-feminista encorajaram as mulheres a se considerarem livres, seletivas e capacitadas, ao mesmo tempo em que restringem suas escolhas em relação ao trabalho corporal, privilegiando o consumo de práticas restritivas de aperfeiçoamento estético.

Gill (2007) chama a atenção, especialmente, para um elemento que interessa diretamente à discussão feita neste artigo. Trata-se do corpo identificado como fonte de poder da mulher, mas que, para tal, requer um monitoramento, vigilância, disciplina e remodelamento constantes, conforme padrões muito específicos. Haveria a internalização de um olhar masculino objetificador, o que constituiria um novo regime disciplinar, no qual o poder não é imposto desde cima ou de fora, mas constitui a própria subjetividade. Assim, o desejo de transformação é identificado como escolhido livremente por sujeitas ativas, confiantes e assertivas. As mulheres não seriam constrangidas por inequidades ou desequilíbrio de poder, mas agentes autônomas. Por meio deste mecanismo, se entende porque a aparência desejada é tão similar, já que os ideais de beleza, socialmente construídos e mediados em massa, são internalizados e transformados em escolhas pessoais que distinguiriam uma biografia singular.

No caso das mulheres integrantes do grupo estudado (e de outras tantas), o desejo pela remodelação cirúrgica de sua anatomia parece traduzir esta autovigilância centrada no corpo, como uma busca individualizada de adequação e realização pessoal. Ao mesmo tempo, o padrão almejado é altamente padronizado e, muitas vezes, até mesmo reconhecido como fabricado a partir dos corpos “ideais” e muito “aperfeiçoados”, expostos na pornografia ou nas redes sociais, principalmente nas imagens do antes e depois, em casos de reconhecido sucesso das cirurgias. Dessa forma, o dispositivo antes e depois parece se acoplar bem ao cenário pós-feminista. Na maioria dos casos narrados no grupo, as experiências ilustradas pelo antes e depois servem para reforçar a ideia de que a insatisfação com o próprio corpo é um problema individual e cuja solução estaria na capacidade de investir individualmente na sua melhoria ou aprimoramento. A busca pela cirurgia e por tantos outros recursos traduziria este foco pós-feminista na autovigilância e na centralidade da aparência para se chegar a possíveis transformações subjetivas e à tão sonhada “realização pessoal”.

É interessante que a dimensão coletiva, no exemplo aqui analisado, somente apareça nas situações em que o depois não se realizada da forma esperada. Quando o pós-operatório é problemático, envolto em dor e sofrimento e, principalmente, os resultados da cirurgia são vistos como insatisfatórios, uma certa relativização aparece. À medida em que o tão sonhado depois idealizado, imaginado como o tempo da realização dos desejos, não chega, elementos como a pressão coletiva, a cobrança sobre o corpo perfeito, a produção de modelos corporais fabricados e inexistentes na realidade passam a frequentar o discurso das mulheres operadas. Certamente, não é possível afirmar que isso sempre ocorra desta forma ou fazer qualquer generalização a respeito desse processo. Porém, chama muito a atenção o fato de que é no depois inacabado, indicativo de que algo deu errado no processo, que essas ponderações e questionamentos possam surgir, como se só o incômodo sentido na própria carne provocasse um olhar para mais longe e para além dos padrões de exigência corporal tão restritivos para as mulheres. Pensar sobre o antes e depois de forma mais aprofundada, articulada aos elementos projetados pelo pós-feminismo, talvez possa também ajudar a enxergar um pouco além. E a perceber as práticas de intervenção estéticas como processos complexos que parecem ilustrar aspirações individualizadas, mas que, certamente, retratam um cenário de fortes constrangimentos sociais, no qual as hierarquias de gênero, dentre tantas outras, têm tido um papel fundamental.

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    Este artigo é resultado do projeto de pesquisa “Novas formas de circulação de conhecimento e de acesso a tecnologias biomédicas: cenários contemporâneos para transformações corporais e subjetivas”, apoiado pelo CNPq.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    08 Jun 2022
  • Aceito
    20 Mar 2023
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