Open-access TRAJETÓRIAS SOCIAIS EM ESTRATOS MÉDIOS: FAMÍLIA, ESCOLARIDADE E TRABALHO

SOCIAL TRAJECTORIES IN MIDDLE STRATA: FAMILY, SCHOOLING, AND WORK

Resumo

Este artigo analisa a socialização familiar, considerando a forma pela qual recursos circulam, são acessados e transmitidos pelas relações de parentesco; e as práticas de aprendizado desenvolvidas no seio da esfera familiar, que incidem sobre formas de ver e agir no mundo e terminam por orientar expectativas e comportamentos individuais. Parto de entrevistas realizadas em Salvador para examinar as relações entre parentes, os percursos em instituições educativas, as trajetórias no mercado de trabalho e as autoidentificações de classe. O estudo observou trajetórias marcadas por investimentos que visam alçar os indivíduos para além das características originárias das unidades domésticas. Contudo, os resultados destes investimentos são incertos, como “apostas”, visto a imprevisibilidade de certos fatores, tais como a capacidade de absorção do mercado de trabalho.

Palavras-chave: Trajetórias; família; escola; trabalho

Abstract

This article exams the family socialization, considering the mobilization, access and distribution of resources through kinship; and the learning practices developed within families, shaping the ways of seeing and acting in the world and guiding the individual expectation and behavior. I analyzed interviews conducted in Salvador to discuss kinship relationships, trajectories in educative institutions, experiences in labor market, and self-perceptions of class. This study focused on trajectories followed by investments that aim to project the individual beyond the limits of the domestic units. But the results of these investments are uncertain, like “bets”, because some factors, such as the absorption of workforce, are unpredictable.

Keywords: Trajectories; family; schooling; work

INTRODUÇÃO

As famílias são unidades básicas de convivência e interdependência, fundadas em vínculos morais e jurídicos (Bilac, 1978; Hamberger, 2005). A partir de categorias sexuais e geracionais, as relações familiares adscrevem direitos e obrigações aos seus participantes. Essa classificação serve de base para o engajamento dos indivíduos em trabalhos produtivos e reprodutivos, como documenta uma extensa literatura (Goldani, 2004; Hirata & Kergoat, 2007; Motta & Weller, 2010).

Do ponto de vista normativo, as famílias são responsáveis por garantir a sobrevivência e o bem-estar de seus membros, por meio de iniciativas diversas, como a coabitação, o cuidado de indivíduos dependentes e a unificação e distribuição dos salários. Por esse motivo, Wolf (1990) caracteriza as famílias como organizações polivalentes: em sociedades cada vez mais segmentadas, nas quais as instituições se especializam em arcar com necessidades pessoais específicas, as famílias congregam, em pequena escala e em contextos circunscritos, funções sexuais, econômicas e afetivas. A esfera familiar desempenha um papel indispensável na satisfação das necessidades pessoais, o que ocorre mesmo em sociedades capitalistas, nas quais a individualização da venda da força de trabalho se deu de maneira generalizada (Durham, 1980; Esping-Andersen, 1999).

Mas a capacidade das famílias de obter e circular recursos varia bastante, sobretudo em sociedades altamente desiguais, como a brasileira. Decerto, a interface entre a vida familiar e a estratificação das oportunidades socioeconômicas é dual, pois ao mesmo tempo que as práticas familiares são economicamente condicionadas, as famílias também reproduzem ou transpõem suas posições sociais a partir de projetos de subsistência e mobilidade. Seguindo essa linha de pensamento, pretendo analisar os repertórios de suporte material e afetivo que são mobilizados pelas famílias, responsáveis pelo amortecimento de riscos, distribuição de recursos e atendimento das expectativas individuais. Faço isso ao abordar quatro eixos temáticos: a) as experiências educacionais, levando em conta o papel das famílias para o sucesso ou fracasso da formação escolar; b) a participação no mercado de trabalho, partindo de valorações como a necessidade e a satisfação; c) o suporte conferido pelas famílias às trajetórias laborais; e d) a forma pela qual os papeis familiares embasam direitos e obrigações entre parentes.

Poucos estudos sobre estratificação e esfera familiar assumiram a classe média como objeto. O conceito é de certa forma fugidio, englobando “os não-ricos e os não-pobres, sem necessariamente quaisquer outras características sociais além do consumismo”, ainda que orientações culturais e políticas estejam implícitas (Therborn, 2013: 178, tradução nossa). Portanto, Estanque (2017) define a classe média como um agregado heterogêneo de categorias sociais, reunindo indivíduos em trabalhos não manuais, que desfrutam de bens culturais e com acesso considerável a bens e serviços.

Contudo, essa designação inclui diferentes condições de existência, e, por isso, é importante dirigir um olhar mais atento às desigualdades materiais e às relações familiares nos estratos médios. Para tratar do assunto, abordo um grupo no limiar de uma fronteira de classe, representado por famílias com níveis satisfatórios de recursos (pelo menos quando em comparação aos pobres) e que recentemente adquiriram a capacidade de investir de maneira mais decisiva nas trajetórias de seus membros. Chama atenção uma “janela” de mobilidade na transição entre as gerações, tendo em vista as práticas e representações que visam alçar o indivíduo para além das características originárias das unidades domésticas.

Além desta introdução e da conclusão, o artigo se divide em cinco tópicos. O primeiro e o segundo apresentam a bibliografia e os procedimentos metodológicos deste estudo. Já o terceiro, quarto e quinto discutem os resultados da pesquisa, cujas principais contribuições são sintetizadas na conclusão.

TRAJETÓRIAS SOCIAIS E SOCIALIZAÇÃO FAMILIAR

Este artigo dialoga com as contribuições da sociologia disposicionalista, sobretudo ao entender a socialização como uma experiência duradoura de aprendizado, responsável por incutir formas de ação e pensamento ajustadas à posição do indivíduo no espaço social. Estas posições decorrem, especialmente, do acesso ao capital cultural (conhecimento incorporado e formação com validade institucional) e capital econômico (posse de riquezas e pertences) (Bourdieu, 2011).1

As trajetórias ilustram mudanças ou permanências no acesso a recursos e reconhecimento, levando em conta o caráter diacrônico das posições sociais. Ao analisar as trajetórias, Bourdieu (2007) põe em primeiro plano a classificação do espaço social, o que permite o conhecimento dos “lugares” que podem ser percorridos pelos indivíduos. Tais indivíduos são submetidos a experiências diversas de socialização, ocasionando a introjeção e transformação dos habitus (os sistemas de disposições2 que fundamentam os padrões de comportamento, os gostos e as visões de mundo) (Bourdieu, 2011).

Espera-se que as práticas de aprendizado na família, escola, mercado de trabalho e espaços de consumo sejam complementares. Ainda que Bourdieu (2013) aponte a existência de conflitos e “desajustes” entre as disposições, seus escritos sublinham a reprodução dos habitus nas trajetórias. A socialização familiar condiz com uma experiência precoce que dota o mundo de sentidos, condicionando as outras práticas de aprendizado. Além disso, os habitus são “estruturas características de uma classe determinada de condições de existência”, associadas à experimentação familiar das necessidades econômicas e sociais “externas” (Bourdieu, 2013: 89). O ambiente doméstico é descrito como “relativamente autônomo”, na medida em que se molda a essas necessidades, por meio da transmissão das espécies de capital e da socialização continuada.

Em diálogo com os escritos acima, reconheço a socialização familiar, em sua dimensão material, como a forma particular com que recursos circulam, são acessados e transmitidos pelas relações de parentesco. Já ao tratar da sua manifestação simbólica, reporto-me às práticas de aprendizado desenvolvidas por meio de processos duráveis de interação social no seio da esfera familiar, que incidem sobre formas de ver e agir no mundo e terminam por orientar (de maneira não determinista) expectativas e comportamentos individuais. Através da socialização familiar, são elaborados diferentes “projetos” de indivíduos, direcionados às instituições educativas e ao mercado de trabalho.

O assunto ainda pode ser aprofundado. Bourdieu enfatiza os mecanismos pelos quais os habitus familiares (homogêneos, coerentes e transponíveis a outros ambientes) tendem a ser sedimentados pela socialização secundária. Mas em sociedades urbanas e industriais, os indivíduos participam de processos contraditórios de socialização, fenômeno que traduz a perda do monopólio familiar na transmissão de riquezas e no ensino de valores e padrões de comportamento (Lahire, 2005). Assim, “os esquemas de socialização são de fato muito mais heterogêneos e cada vez mais precoces”, o que confere um caráter plural aos patrimônios individuais de disposições (Lahire, 2004: 318).

A fim de enfrentar esse problema, Lahire (2005) propõe que a sociologia disposicionalista se dedique à escala individual, em uma tentativa de acompanhar “de perto” as trajetórias. Para além da alegação de um passado incorporado que nos acompanha, o estudo de trajetórias contribui para o entendimento das experiências que formam, reforçam e enfraquecem as disposições. No entanto, já que o acompanhamento diário de um indivíduo apresenta sérias dificuldades logísticas, Lahire (2004, 2005) destaca a importância das entrevistas para a reconstrução indireta das trajetórias. Bertaux e Thompson (2007) compartilham dessa perspectiva, e afirmam que os relatos biográficos comunicam visões de mundo, essenciais para a compreensão dos contextos locais de disputa por recursos. Essa abordagem enfatiza a intersecção entre oportunidades econômicas, orientações valorativas, obrigações morais e metas pessoais. O resultado é em um olhar mais detido sobre os acontecimentos cotidianos, que são ressignificados e comunicados pelos indivíduos na situação de entrevista.

Mas assumindo a escala individual, penso que vale tematizar a centralidade da família para os projetos de subsistência e mobilidade socioeconômica. Bourdieu desconstruiu o suposto esvaziamento da atuação familiar na modernidade, pois as famílias conformam horizontes distintos de circulação e apropriação de recursos. Além do mais, a socialização familiar do habitus é essencial para a formação de indivíduos “aptos” à disputa no capitalismo competitivo. Lareau (2007) associa esse fenômeno à transmissão intergeracional das vantagens de classe, assunto particularmente importante para o campo de estudos sobre sucesso escolar.

Ainda que as condições de vida sejam ocasionalmente transformadas, os projetos familiares são relevantes para o percurso educacional e para a inserção no mercado de trabalho. Todavia, o contraponto apresentado por Lahire é importante, já que a complementaridade entre as experiências de socialização não deve ser percebida como um dado a priori. Mais do que como uma sociabilidade originária que demarca um script para as trajetórias, a esfera familiar deve ser tratada como uma rede de suporte que condiciona investimentos materiais e afetivos aos seus membros, assim como defendido por Durham (1980) e Bilac (1978).

Para analisar as trajetórias, enfatizo três dimensões, entendidas como decisivas para o usufruto de recursos e reconhecimento: as relações de parentesco, a partir do papel assumido pelos indivíduos nos arranjos familiares; as trajetórias em instituições educativas, bem como o papel da família em prover suporte (ou não) a esse percurso; e a participação dos indivíduos no mercado de trabalho, observando sua interface com a vida familiar. As duas últimas dimensões constituem aproximações aos conceitos de capital cultural e capital econômico, respectivamente. Este artigo também inclui a definição de quais elementos caracterizam as autoidentificações de classe, um tema que elucida as representações dos entrevistados sobre si e sobre os outros, em face do acesso a recursos e oportunidades.

METODOLOGIA

Este estudo integrou o projeto “Radiografia do Brasil Contemporâneo”, sediado no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) entre 2015 e 2016. Para a coleta de dados, o Ipea contou com pesquisadores nas cinco regiões do país, que desenvolveram entrevistas em cidades de médio e grande porte. A fim de incentivar a produção de relatos biográficos, as entrevistas tocaram em ponto diversos, como as relações familiares, o trabalho, o lazer, o consumo, a religião e as opiniões políticas. Já a delimitação da amostra se deu por meio de perfis pessoais estabelecidos pelo Ipea, com base nas características ocupacionais e de residência dos interlocutores. Informações adicionais sobre o roteiro das entrevistas e o recrutamento dos participantes podem ser lidas em Natalino e Lopez (2020).

Fui responsável pela condução da pesquisa em Salvador, capital baiana, onde entrevistei 30 indivíduos com perfis variados. A busca ativa se deu por meio de visitas a domicílios e a locais de trabalho, fazendo uso de contatos prévios e visitas aleatórias. A análise contribuiu com uma tipologia de socialização familiar, formada por três tipos. Dois deles, relativos a grupos empobrecidos, foram discutidos com minúcia em Menezes (2018). Embora sejam ambos empobrecidos, o que diferencia esses dois tipos, denominados de “socialização familiar pela privação” e “socialização familiar protetiva”, é a satisfação (ou não) das necessidades básicas e a capacidade das famílias amortecerem riscos sociais. A partir de um modelo específico de circulação de recursos materiais e imateriais, o segundo tipo reúne experiências menos vulneráveis, o que permite a garantia de patamares mínimos de bem-estar durante as biografias.

Já este artigo trata de indivíduos e famílias3 com acesso garantido a recursos básicos e cujas trajetórias revelam projetos recentes de mobilidade socioeconômica, ainda que sem sucesso em alguns casos. A passagem de uma geração a outra oportuniza a melhoria das condições de vida, notadamente a partir do investimento escolar. Para salientar seus elementos mais significativos, nomeei este terceiro tipo de “socialização familiar pela projeção individual”. Seus dados advêm da análise de 9 trajetórias de indivíduos entrevistados entre os anos de 2015 e 2016, produzindo uma amostra qualitativa por contraste-aprofundamento (Pires, 2014). Esse tipo de amostra se baseia em unidades de análise pouco numerosas, o que possibilita uma compreensão mais detalhada das biografias. Segundo Pires (2014), a amostra por contraste-aprofundamento assume que as trajetórias individuais são relativamente autônomas, pois são justapostas e comparadas entre si como um “mosaico”. De certa forma, a proposta se aproxima da reconstrução indireta das trajetórias sociais em Lahire (2004, 2005).

A Tabela 1 apresenta o perfil dos entrevistados, que receberam nomes fictícios. Existe um equilíbrio na amostra entre homens e mulheres, com idades variadas e alta escolaridade, em comparação às características mais gerais da população soteropolitana4. A maior parte dos entrevistados se declarou de cor parda, seguida pelos que se declararam de cor branca, o que contrasta com os tipos apresentados em Menezes (2018), cujos interlocutores eram em sua maior parte de cor preta. Os dados da Tabela 1 e apresentados nos próximos tópicos revelam que as ocupações tendem a ser bem estabelecidas, ainda que marcadas por certas disjunções nas trajetórias. Finalmente, as condições de moradia são heterogêneas, mas todos os entrevistados habitavam em locais com infraestrutura urbana satisfatória. Em resumo, é possível afirmar que os entrevistados se encontram bem-posicionados na estratificação socioeconômica da capital baiana.

Tabela 1
Perfil dos indivíduos entrevistados

Alguns aspectos delimitam o alcance do estudo. Em primeiro lugar, as entrevistas foram desenvolvidas em uma grande capital que exerce ampla influência na economia regional e possui problemas estruturais em seu mercado de trabalho5. É prudente reportar os dados ao contexto do grande aglomerado urbano, visto que as dinâmicas familiares, principalmente no que diz respeito a sua relação com o território, assumem contornos distintos no meio rural e em cidades de menor porte. E em segundo lugar, debrucei-me sobre uma realidade particular, relativa a uma sociedade com graves disparidades socioeconômicas, como a brasileira, cujas manifestações de experiências familiares refletem a desigualdade extrema de acesso aos recursos.

DEFINIÇÃO DA “SOCIALIZAÇÃO FAMILIAR PELA PROJEÇÃO INDIVIDUAL”

Nos casos sob exame, a esfera familiar institui o indivíduo como alguém a ser continuamente investido. A “projeção” que nomeia o tipo de socialização familiar tratado nesta seção possui duas dimensões conectadas: uma valorativa, que se refere à centralidade do indivíduo na organização de um ideal de família; e uma prática, que condiz com a mobilização e o direcionamento de recursos. O investimento familiar, assim como o seu sucesso, quando o indivíduo corresponde às expectativas que lhe são atribuídas, emerge como um legado intergeracional. O resultado mais importante desse legado é o acúmulo de capital cultural, a partir do ingresso em instituições educativas, uma estratégia familiar para obter melhores posições no mercado de trabalho que foi bastante documentada nos estratos médios (Romanelli, 1995). Para tratar desses aspectos, abordarei inicialmente duas trajetórias.

Joana lembra ter passado parte da infância no bairro de Peri Peri, onde “estudava em uma escola de bairro, pequena, próxima de casa”. Seus pais, uma assistente de telecomunicações e um eletricista do Polo Petroquímico, “tinham um padrão de vida consideravelmente bom, tinham carro, apartamento financiado, eu estudava em escola particular […], não tinha luxo, não fazia viagem, mas tinha um padrão de vida razoável”. No ano de 1993, os pais optaram por abandonar seus empregos, dando início a uma pequena empresa, o que provocou a piora das condições financeiras. Seus pais deixaram de contratar empregadas domésticas, cabendo à mãe a alternância entre o cuidado com as crianças e o trabalho na empresa familiar. Mesmo assim, Joana contou com a matrícula em escolas privadas até o Ensino Médio, período no qual passou a estudar no Centro Federal de Educação Tecnológica (Cefet). A entrevistada também afirma que seus pais “incentivavam bastante” sua trajetória escolar, realizando investimentos financeiros e acompanhando seus estudos.

Ao ser aprovada no curso de jornalismo da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Joana passou a se dedicar a estágios profissionais, experiência sucedida por um trabalho como freelancer em uma revista. O acesso ao Ensino Superior é entendido como algo relativamente novo em sua família, já que “as irmãs da minha mãe, nenhuma fez faculdade. Então das sobrinhas, eu sou a terceira a ter um nível superior. Então acho que é uma ascensão”.

Mais recentemente, Joana foi contratada por um grande veículo de comunicação de Salvador, o que permitiu um maior equilíbrio das despesas domiciliares. Residindo com a mãe, hoje aposentada, no bairro de Vila Laura, Joana sintetiza assim sua biografia: “eu me vejo como alguém que se superou, que superou alguns limites sociais, econômicos, e que chegou além do que provavelmente a maior parte das pessoas chegaram […]. Então é continuar crescendo”. Esse crescimento se traduz também em acúmulo de capital cultural, que na época decorria da participação em um curso de pós-graduação em administração de empresas, em uma reconhecida universidade privada, o que lhe permitiria mudar para uma profissão bem remunerada.

Já Marcela, filha de uma empregada doméstica e um agricultor e ex-militar, nos descreve sua infância na zona rural de Irará, pequena cidade do interior baiano, local no qual residia com seus pais e catorze irmãos. Devido à inexistência de escola próxima, o pai de Marcela decidiu comprar uma casa na área urbana, na qual todos os filhos, cuidados por uma babá, passaram a residir durante os dias letivos. Mas após certo tempo, seus pais decidiram pelo aluguel da casa, revertendo o dinheiro em uma kombi, utilizada como uma espécie de transporte escolar familiar. Assim, mesmo levando em conta as dificuldades cotidianas, “abaixo de Deus e acima dos homens, [o pai] conseguiu colocar os catorze filhos, dar a educação toda necessária que precisamos, todos estudaram”. Inicialmente matriculada no sistema público de ensino, e ingressando logo após em escolas privadas, Marcela lembra ter experimentado um importante acompanhamento dos pais em sua trajetória escolar. Em seguida, nos descreve o ingresso no curso de pedagogia da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS):

Porque o meu sonho era ser professora. Aí eu achava bonito, ingressei na carreira. Ele [o filho] também vai ser professor. Na minha família é todo mundo professor. Minha irmã mais velha, minha outra irmã que veio depois. Quase todo mundo é professor. Até a outra que se formou agora, se formou em geografia, professora também. Todo mundo professor, até ele agora, que é meu filho, está fazendo biologia (Marcela, comerciante, preta, 57 anos, moradora da Mouraria).

Com o diploma em mãos, Marcela passou a trabalhar como professora estadual em Salvador, cidade na qual, após mais de uma década na carreira docente, resolveu iniciar uma loja de roupas, no centro. O motivo foi seu desejo de atuar como autônoma, pois “eu não queria mais trabalhar para ninguém”. Na época da entrevista, mesmo passando por problemas financeiros, ocasionados pelo declínio das vendas, disse sobre a loja: “[é] aqui que a gente bota a comida dentro de casa, que paga o colégio de meu filho, que paga o aluguel”.

O estudo do filho desponta como o principal objetivo familiar. Embora ele usufrua de bolsa parcial no curso de biologia da Universidade Católica do Salvador (UCSal), depende fundamentalmente do suporte econômico dos pais, por causa do pagamento da mensalidade (que equivale a cerca de um terço da renda familiar), do deslocamento (alternando transporte público e o uso de um carro) e da necessidade de dedicação completa aos estudos (reduzindo a quantidade de membros empregados na unidade doméstica). Ademais, as dificuldades financeiras demandaram a ajuda de parentes próximos: “[se] eu precisar de alguma coisa, minha família me dá alguma coisa. A família dele [marido], as irmãs dele ajudam, com mil, dois mil, e aí vai levando”.

Embora tenham apresentado diferenças importantes, compondo a diversidade interna do tipo de socialização familiar tratado nesta seção, as narrativas evocam a família como um ambiente que projeta o indivíduo para além das condições iniciais da unidade doméstica. Se os tipos apresentados em Menezes (2018) tocam na satisfação ou não de necessidades básicas, a partir da gestão de quantidades escassas de capital, a “socialização familiar pela projeção individual” traduz planos mais ambiciosos de mobilidade socioeconômica. No bojo desse processo, as falas apontam para a elaboração do indivíduo como alguém a ser investido e acompanhado pela rede familiar. O próximo tópico aprofunda esse tema.

FAMÍLIA, INVESTIMENTO EDUCATIVO E MERCADO DE TRABALHO

Os ciclos de escolaridade e qualificação são utilizados como marcadores temporais. A partir desses ciclos, os entrevistados interpretam os papeis familiares, baseados em uma tutela constante dos mais jovens e na cobrança de dedicação aos estudos:

Minha aposentadoria [é] daqui a dois anos, três anos no máximo. Então esse marco é de minha filha estar ingressando no primeiro ano de faculdade. Então é eu me aposentando e eu jogando minha filha dentro de uma faculdade. Ela entrando com o pé na faculdade, já com um ano de faculdade, sabendo o que ela quer, disputando o que ela quer, e estudando para ela caminhar com as pernas dela. Ela viver com as pernas dela, para ela procurar melhorar, para ela viajar, para ela fazer, sabe? Sei lá, o que é que você pensa em ter na vida com uma formatura que você tem […]. Eu estou dando uma oportunidade, se ela vai fazer eu não sei. Porque eu espero, o que eu realmente almejo para ela é isso. Ela caminhar e realmente caminhar a passos largos, ela ter um desempenho financeiro bom, para que ela possa ter uma vida boa, uma vida de conforto (Bruno, funcionário público, branco, 54 anos, morador do Rio Vermelho).

Sempre gostei de ir para o colégio, quando você vai ficando mais adolescente vai ficando com aquela preguiça de estudar e tal, os desleixos, mas sempre ouvia ali minha tia, que sempre tem que estudar, porque se você não estudar você não vai para lugar nenhum. Então sempre mostrava o meu melhor, porque querendo ou não, tinha que fazer aquilo. Não podia largar de mão. Tinha que concluir o ensino médio e procurar fazer faculdade e tudo mais […]. [Busco] sempre melhorar, meus projetos sempre vão ser em escada, eu procurei sempre fazer minha habilitação, já conclui, e agora vou fazer faculdade (João, lojista, branco, 23 anos, morador do Engenho Velho de Brotas).

Costureira e moradora do bairro de São Lázaro, Viviana descreve o papel da sua família frente ao desemprego. Chama atenção uma contínua “assistência aos meus filhos”, algo que permanece nos dias atuais, quando todos já estão adultos. Viviana se vê sobrecarregada, pois mesmo após a formação universitária, seus filhos não conseguiram se inserir no mercado de trabalho. Em vez de os pressionar para que procurassem empregos aleatórios, Viviana decidiu investir na qualificação profissional, o que permitiu que alguns filhos se inscrevessem em cursos de curta-duração e acumulassem mais de um diploma superior. Alguns autores, como Corseuil et al. (2020), entendem que a falta de experiência profissional, o baixo nível de qualificação e a ausência de contatos significativos prejudicam a contratação de jovens. Nesse cenário, o apoio familiar ao acúmulo de capital cultural constitui uma estratégia relevante, permitindo que os jovens planejem com mais tempo e recursos a entrada no mercado de trabalho.

Neste tipo (“socialização familiar pela projeção individual”), a realização pessoal condiz com o grande objetivo da organização familiar. Por meio de uma divisão geracional do trabalho, ganham espaço os desejos e as singularidades do período juvenil. A atuação dos parentes, pautada pelo atendimento das expectativas dos mais jovens, assume como ponto de referência os indivíduos em formação escolar. Nos estratos médios, o investimento educativo representa uma estratégia de mobilidade socioeconômica de longo-prazo (Nogueira, 1995), e, assim, o acompanhamento escolar e a desobrigação financeira merecem ênfase. Ao comparar sua infância com a da filha, Bruno, um funcionário público e morador do Rio Vermelho, diz que “a diferença é que minha filha não pensa em nada hoje […] de ganhar para se sustentar para pagar alguma coisa. Só escola”. E conclui: “aí todo dia eu digo a ela: ‘rapaz, o seu trabalho é escola. O meu trabalho é pagar sua escola. A minha responsabilidade é lhe garantir a sua escola’ […], na escola tem inglês, tem espanhol, tudo que aparece o pai banca”. Já Jéssica, que reside no Campo Grande e trabalha como comerciante, afirma que seus pais eram “rigorosos” com o seu desempenho escolar. Nativa de Ilhéus, Jéssica se mudou para a capital baiana com dezesseis anos para concluir o Ensino Médio “num dos melhores colégios” de Salvador. Nesse período, “minha mãe ficava quinze dias aqui, quinze dias lá”, contando com uma empregada doméstica para cuidar dos filhos.

Nos contextos em que a persecução de capital cultural constitui um repertório válido, os projetos familiares partem da neutralização das demandas distributivas. O indivíduo é descrito como alguém que precisa ser continuamente protegido e desobrigado das necessidades familiares mais imediatas. Por sua vez, o trabalho se associa à busca pela satisfação pessoal e por melhores condições de trabalho, processo definido por quatro elementos: a) a qualificação, baseada na progressão da trajetória educacional e em cursos correlatos; b) os investimentos familiares, em especial a partir de cursos privados na escola, nível técnico e universidades; c) a ativação de uma rede de contatos relativamente difusa, que inclui parentes e participantes de outras esferas de sociabilidade; e d) a busca pela realização pessoal, em decorrência do amortecimento da pressão por provisão financeira:

Cheguei a fazer um curso básico de informática, e cheguei a fazer também um concurso de mecânico montador, fiz o concurso, quem passasse no concurso teria direito a fazer um curso de mecânico montador com ajuda de custo. Aí fiz, passei no concurso, acabei fazendo esse curso, só que acabei não ingressando porque não era isso que eu queria […]. Não, foi indicação mesmo [emprego atual], por ser colega de um tio meu que tinha aberto a lan house, sempre eu mexia muito com computador, esse negócio de formatação e tal, gostava muito, aí ele me indicou […]. Você vai arranjando empregos melhores, com carteira assinada, você vai ganhando melhor (João, lojista, branco, 23 anos, morador de Engenho Velho de Brotas).

Primeiro é terminar meus estudos, me formar, fazer uma especialização, conseguir um emprego melhor na minha área. E aí correr em busca dos meus objetivos, uma casa, um carro, e ter uma vida mais estável. (Pedro, técnico de enfermagem, pardo, 24 anos, morador de São Lázaro).

O consumo familiar parte da resolução das necessidades básicas, o que coloca a segurança alimentar em uma posição de segundo plano nas narrativas. Ainda que a compra de comida abarque boa parte da renda das famílias, a segurança alimentar é percebida como um desafio já superado, algo conquistado pelas gerações anteriores. Outros aspectos, como as decisões por prioridades de gastos e o atraso de pagamentos, constituem importantes indicadores financeiros. Também vale lembrar o papel conferido às demandas educacionais nas despesas familiares:

Meus pais não fizeram faculdade desde cedo, que assim, tinha as faculdades à distância lá próximo [Nova Sore]. Mas assim, tinha um custo, não era na cidade, mas você precisava viajar para a cidade vizinha, uma vez na semana pelo menos […]. Aí a gente acabou estudando em colégio particular, a gente participava dos eventos na escola que geravam certo custo, por ser uma escola particular. Então eles sempre fizeram esse investimento para não privar a gente de nada (Ramon, desempregado, pardo, 25 anos, morador de Patamares).

Aí depois que meu pai saiu, os dois saíram na verdade [o pai e a mãe, do antigo emprego], montaram uma empresa, que no princípio deu [certo], tinha uns bons contratos, mas depois, muito por questão de gestão mesmo, foi piorando. E a situação financeira da gente, a gente saiu de Peri Peri para morar na cidade baixa, morar de aluguel. E aí era sempre trocando de apartamento, ficava devendo, atrasando escola também (Joana, jornalista, parda, 28 anos, moradora de Vila Laura).

No entanto, os investimentos familiares são implementados em contextos marcados por incertezas e constantes mudanças de percurso. Direcionados a oportunidades de mobilidade social, esses investimentos se assemelham a “apostas”, sem a garantia dos resultados esperados.

Durante sua adolescência na cidade baiana de Nova Sore, Ramon relata ter se deparado com condições financeiras razoáveis, ainda que lembre de uma “fase apertada da família”, durante o Ensino Médio, o que o fez ingressar no sistema público de ensino. Para fazer um cursinho pré-vestibular, o entrevistado se mudou para Salvador, logo após completar o terceiro ano do ensino médio, residindo com uma tia no bairro do Imbuí. Durante esse período, o dispêndio com a escolarização permaneceu como uma prioridade familiar, exigindo o manejo dos gastos e captando a maior parte dos recursos domésticos. Como diz, “eles [os pais] não investiram neles, investiram em mim e em minha irmã”.

No ano seguinte, Ramon foi contemplado pelo Programa Universidade para Todos (Prouni) e ingressou na graduação de engenharia mecânica em uma universidade privada, embora tenha se transferido para o curso de engenharia civil. Já no final da graduação, por meio do contato de uma amiga, iniciou um trabalho como cadista em uma empresa de Camaçari. O emprego permitiu a divisão de encargos com seus pais, bem como o aluguel de um domicílio, no qual o entrevistado passou a morar com a irmã, recém-chegada a Salvador e estudante de enfermagem.

Na época da entrevista, o entrevistado cursava uma pós-graduação e buscava um segundo diploma universitário. Contudo, relatou uma recente deterioração financeira, ocasionada pelo fim do contrato de trabalho, restando o acesso ao seguro-desemprego. Com o alto custo de vida na capital, suas despesas tornaram o cotidiano em Salvador pouco rentável, gerando dois planejamentos possíveis, “um planejamento do positivo e um do negativo”:

Do positivo, continuar tudo como está, no máximo mudar do apartamento que eu descobri que é poente […]; no máximo eu vou mudar para um nascente, no mesmo condomínio ou em outro bairro. Ou voltar para o Imbuí, porque tem infraestrutura melhor assim, supermercado, farmácia próximo. […] E caso não aconteça isso, eu pretendo voltar para o interior. Não dá para ficar num apartamento que é realmente caro para quem está desempregado, atualmente eu ainda consigo manter isso, a minha parte da divisão dos gastos entre meus pais porque eu estou com seguro-desemprego. Mas em abril ele acaba, em abril é mil e cem reais a menos. E aí eu só vou ficar com a bolsa. Com a bolsa de 600 reais eu não vou conseguir manter aluguel e manter os gastos que a gente acaba tendo, com transporte para vir para a UFBA, com alimentação (Ramon, desempregado, pardo, 25 anos, morador de Patamares).

As falas evidenciam que o suporte familiar, apesar de fundante para a narrativa, possui uma extensão circunscrita. Em geral, o retorno esperado dos investimentos é a tentativa de superação das condições familiares iniciais, processo mais visível no começo da vida adulta, no qual são construídos os alicerces da independência individual. Mas a restrição dos recursos familiares limita a “projeção”, neste último caso devido à necessidade de inserção imediata no mercado do trabalho. Buscando lidar com esse revés, Ramon está “distribuindo currículo em obra, porta a porta, mandando por e-mail, para sindicato, tudo que você pensar eu estou tentando”.

A trajetória de Fábio também apresenta elementos interessantes, e aponta que a “socialização familiar pela projeção individual” abarca tentativas de mobilidade social que não são bem-sucedidas. Residindo no bairro de Brotas com sua esposa e dois filhos, Fábio atualmente “está taxista”, como gosta de enfatizar. Nascido em Salvador, o entrevistado se mudou para uma cidade do interior baiano ainda durante seu segundo ano de vida, por causa da transferência de seu pai para um cargo de gerência em um supermercado. Para o entrevistado, “eu tive a sorte de ter uma infância maravilhosa, porque foi a época em que meu pai tinha o melhor poder aquisitivo”, o que lhe proporcionou “uma vida normal […], morava bem, num bairro bom e tudo mais”. Apesar de lembrar de “altos e baixos” na vida financeira, “coisas normais de quem é assalariado”, Fábio descreve esse período como de grande estabilidade material. Cabia à sua mãe o cuidado da casa e o acompanhamento diário, o que lhe rendia uma imagem de maior rigidez, principalmente no que diz respeito aos assuntos escolares. E manifestando a boa situação financeira, sua família contava com o trabalho de empregadas domésticas, desobrigando o entrevistado das tarefas cotidianas.

Fábio lembra ter estudado em três escolas públicas, já “que naquela época ainda prestavam”, e dois irmãos logo se mudaram para Salvador, contando com o auxílio familiar para “concluir o segundo grau, fazer o vestibular, essas coisas todas”. Ao completar dez anos, o entrevistado, juntamente à sua família, necessitou retornar à capital, devido a uma nova transferência de trabalho do pai. A partir daí, Fábio ingressou no mundo da música, aprendendo percussão como autodidata e passando a tocar em bares e restaurantes soteropolitanos. Mesmo que isso tenha propiciado bons rendimentos, o sustento da casa era despendido somente por seus pais (sua mãe iniciara recentemente um empreendimento como esteticista), possibilitando ao entrevistado “curtir a adolescência”.

Se até o início da vida adulta Fábio se via dispensado de contribuir financeiramente com o domicílio, a partir dos vinte e dois anos começou a “custear minha vida […], meu pai já não me bancava, a gente dividia as despesas de casa”, porque “a situação de meu pai já não estava tão boa assim”. Depois de trabalhar com a música durante um bom tempo, sendo esta sua única fonte de renda, o entrevistado decidiu voltar aos estudos logo após o casamento:

Ela [a esposa] me convenceu a voltar a estudar, disse “bicho, volte a estudar, conclua o seu segundo grau, até porque agora você vai ser pai, de repente a música tem altos e baixos, você precisa [de] outra renda e de repente se você não tiver segundo grau vai ficar difícil”. Aí eu, “vou voltar”. E aí voltei a estudar, conclui meu segundo grau e um amigo meu fez, “bicho, porque você não faz um curso técnico” […]. E ele aí falou “faça lá na EMBA, tal, não sei o que”, aí eu disse “tá, vou fazer, vou fazer o esforço, tal”. Era caro, mas eu disse “vou meter a cara”. Aí fui, fiz, conclui o curso [de segurança do trabalho], 6 meses depois estava trabalhando na Petrobras (Fábio, taxista, pardo, 46 anos, morador de Brotas).

Com o término do vínculo empregatício, Fábio foi contratado por uma construtora, passando a atuar em obras em um aeroporto internacional da região Sudeste. Como conta, a empresa subsidiava passagens de ida e volta a cada quarenta e cinco dias, enquanto o entrevistado arcava com outras a cada vinte e cinco, evitando um período maior distante da família. Já a esposa, orientada para o cuidado dos filhos em Salvador, precisou se afastar do mercado de trabalho, divisão familiar que ainda se mantinha na época de realização da entrevista: embora o entrevistado evoque constantemente o direcionamento da família para a educação dos filhos, a partir da educação privada, de diálogos no ambiente doméstico e do acompanhamento dos estudos, a figura materna desponta como o principal vetor de efetivação.

Após nove meses, com o desaquecimento das obras, Fábio foi demitido, retornando a Salvador em um momento que coincidiu com “o estouro dessa Lava Jato, dessa história toda, e parou a construção civil”. Procurando novas oportunidades como técnico de segurança do trabalho, o entrevistado foi “buscando, ligando e mandando currículo, e me inscrevendo em tudo quanto era site […]. Mas não consegui voltar, e meu dinheiro foi acabando, dinheiro que eu tinha para poder me manter”. Nesse contexto emergencial, Fábio recebeu a proposta de alugar o táxi de um amigo, trabalhando de terça a domingo e repassando semanalmente um valor acordado. Como afirma, “pelo menos eu não fico desempregado totalmente, e tem que ter uma renda, tenho filhos, não posso pensar em mim, tenho que pensar agora no coletivo. Aí eu peguei o táxi para trabalhar, estou aí na batalha”. Mas o novo emprego trouxe consigo um conjunto de conflitos pessoais, visto que a profissão de taxista é apresentada como distante de sua autoidentificação de classe. Fábio, que relata fugir da “característica cultural” dos seus colegas de trabalho, revelou não se “sentir” taxista, pois estes são “de qualquer lugar”, provenientes de “família humilde” e não possuem qualificação profissional. O tópico seguinte discutirá esse tema com mais cuidado.

Nessa e em outras narrativas, é possível verificar uma linha de continuidade entre a família e a escola, a partir de uma elaboração “etapista” das trajetórias. Por meio dela, a infância, a adolescência e a vida adulta assumem sentidos bem específicos. Joana, Pedro e Fábio descrevem a infância como um período lúdico, desprovido de maiores obrigações, enquanto a adolescência estaria vinculada à busca pela autonomia e autenticidade. Por sua vez, João associa a infância, vivida com o pai e tios em um domicílio no bairro do Engenho Velho de Brotas, a um período de brincadeiras, distante das preocupações financeiras da unidade doméstica. Já na adolescência, “eu comecei a ser mais responsável, a maturidade vai aumentando, vai emprego envolvendo, relacionamento e tudo. Aí vai entrando dinheiro, você tem que começar a ter responsabilidade, comprar suas coisas”. As duas épocas foram marcadas pela participação de parentes na supervisão escolar, bem como na mediação da inserção no mercado de trabalho, tendo em vista o pertencimento a uma rede extensa que partia do domicílio.

Em seguida, João lembra do acompanhamento cotidiano dado a cabo por suas tias, já que seu pai, absorvido pelas obrigações do trabalho, “viajava muito, então não tinha esse tempo para estar acompanhando”. Trabalhando na época da entrevista em uma loja de suplementos alimentares no bairro da Pituba, João contribuía com as despesas do domicílio, algo visto como necessário, devido ao desemprego experimentado por alguns de seus parentes. Por fim, descrevendo sua biografia com base na dedicação à escola e ao trabalho, e seguindo um fluxo entre escola, cursos técnicos, trabalho e faculdade, João ressalta: “o papel da minha família pra subir degraus é o incentivo, a palavra é incentivo, sempre está ali me apoiando, sempre está dando dicas, sempre está dando conselhos, então família na verdade é para isso”. Os achados dialogam com as contribuições de Lareau (2000) e Coria et al. (2005), segundo as quais o cotidiano das crianças e jovens dos estratos médios tende a ser organizado pelos pais e responsáveis, o que se aplica tanto às atividades diárias quanto ao planejamento de longo-prazo, o que interpretei como uma estruturação “etapista” das trajetórias.

No que diz respeito à vida adulta, se neste período o indivíduo também é passível de tutela pela família, a composição de um novo arranjo termina por redefinir seus compromissos. Ou seja, mais do que reportados automaticamente à faixa etária, os sentidos sobre a vida adulta são ajustados aos diferentes papéis assumidos pelo indivíduo na esfera familiar. Estes elementos foram percebidos nas falas de Marcela, Viviana e Bruno, que destacaram a importância, após o relacionamento conjugal, do engajamento em atividades de provisão e cuidado.

Para compreender esse assunto, a divisão sexual do trabalho merece atenção especial. Marcela conta que “minha mãe cuidava da gente dentro de casa, que os homens iam para a roça, mas as mulheres ficavam em casa. Quem cuidava da gente era minha mãe, e tinha uma pessoa também que trabalhava para minha mãe”. Reproduzindo esse padrão, Marcela lamenta viver uma sobrecarga na dimensão do trabalho doméstico, uma vez que em casa “lavo, passo, cozinho, trabalho, faço tudo. Faço geladinho, tudo sou eu, eles [marido e filho] não fazem nada”. Ao ser perguntada sobre a organização do ponto de comércio, uma loja de roupas localizada no centro de Salvador, argumenta que divide de maneira igualitária as tarefas com o seu cônjuge. Mas ao ser solicitada a fazer uma espécie de livre associação de palavras, afirmou que “aqui eu sou caixa, eu sou vendedora, eu sou cozinheira, eu sou faxineira, eu sou lavadeira de banheiro, eu sou clientela, eu sou de tudo um pouco”. Enquanto isso, seu marido “é vendedor, ele é caixa, ele é gerente, ele é proprietário, ele é funcionário, de tudo um pouco, a mesma coisa”. De maneira irrefletida, ao marido são atribuídas tarefas de planejamento, posse e gestão, enquanto para si são dedicadas atividades de limpeza e manutenção do espaço, transpondo o modelo domiciliar para o ambiente de trabalho. Os dados convergem para o padrão tradicional de divisão sexual do trabalho, discutido por Hirata e Kergoat (2007).

Outras falas são igualmente importantes. Cabe anotar a contratação de empregadas domésticas, complementando as obrigações femininas de manutenção do domicílio e cuidado de crianças. Segundo Pedro, “sempre minha mãe fez tudo. Sempre ela fez tudo. Tinha um auxiliar em casa, uma pessoa que auxiliava ela nos afazeres domésticos, mas sempre era ela ou então a pessoa”. Já a provisão financeira recai, especialmente, sobre os parentes homens, ainda que essa obrigação tenha sido compartilhada em algumas trajetórias.

AUTOIDENTIFICAÇÃO DE CLASSE

É comum a autoidentificação com a classe média, relacionada ao acúmulo de capital cultural. O usufruto de bens e serviços privados, nas matérias de moradia, educação e saúde, também irrompe como um assunto importante. No Brasil, o senso de pertencimento à classe média decorre da experimentação de “um padrão de vida estável”, com acesso ao Ensino Superior, espaços de lazer e um nível satisfatório de renda (Salata, 2015: 131). Os trechos a seguir reforçam essa perspectiva, mas demarcam uma posição específica na estratificação socioeconômica, visto a heterogeneidade do conceito de classe média.

Ramon se reconhece como um integrante da classe média, devido ao “acesso a algumas coisas, o básico […] que uma pessoa precisa ter, só que mais um pouco, por eu já ter estudado, por eu buscar”. Nesse caso, é justamente o investimento escolar que fundamenta a identidade de classe, tendo esse investimento por objetivo garantir ganhos econômicos futuros aos jovens de classe média (Nogueira, 1995). A definição de classe média também se conecta à necessidade de manejar os gastos domiciliares, com foco nas despesas entendidas como prioritárias. Nas palavras de Ramon, “meu pai dizia que estava apertado, porque a gente sempre estudou em colégio particular, tirando meu ensino médio. Ou porque tinha que mandar dinheiro para a gente, tinha que pagar aluguel aqui em Salvador”. Essa definição de classe média, baseada na “busca” e na necessidade de planejamento financeiro, contrasta com a caracterização de Ramon da “classe alta”, definida pelo “acesso imediato, sem muito esforço”. Viviana apresenta visão semelhante, ilustrando o que chama de “uma classe média mais maneirada”. A entrevistada diz que “eu sinto assim, nível de escolaridade, tenho minha casa própria, tenho meus filhos que são formados”, mas sua trajetória destoa da “classe média alta”, pois “o que eu tenho eu consegui […]; só porque a pessoa nasceu tendo é que tem um valor em cima, né?”.

Já ao entrevistar Joana, a pedido da própria entrevistada, elenquei alguns perfis que poderiam surgir das narrativas, e um desses exemplos foi o de uma classe média “intelectualizada”. Quando solicitada a explicar o porquê de suas relações de amizade nunca estarem localizadas nos bairros de moradia, Joana fez uso desse perfil. Também chama atenção o papel conferido à educação e ao consumo cultural para a demarcação das fronteiras de classe, bem como sua identificação com a “classe média baixa”, uma vez que não nasceu com posses, mas teve acesso “a meios” que viabilizaram a aquisição de bens:

Talvez eu não partilhe dos interesses das pessoas que estavam ali, talvez por ser mais intelectualizada, não sei, por ter acesso a outras coisas do que as pessoas que estavam ali, tipo, o pagode está tocando no vizinho, aquela música alta. Então, por não ver ali semelhantes […], acho que [sou] classe média, média baixa. Porque eu tenho acesso a muita coisa, tive acesso à educação, a meios. Claro, se eu não tivesse corrido atrás, também não… é um mérito pessoal também, não é só ter acesso, é o que é que você faz com esse acesso. E acho que classe média baixa, assim, não me considero classe média alta, porque… acho que porque não sobra dinheiro no fim das contas (Joana, jornalista, parda, 28 anos, moradora de Vila Laura).

É coerente afirmar que a autoidentificação com a classe média é relativa, estabelecendo um distanciamento frente aos pobres, a partir do investimento escolar, consumo cultural e acesso a bens e serviços básicos; e frente aos mais ricos, visto que o acesso ao capital econômico aparece como algo em disputa, dependendo do desempenho educacional e profissional, sem heranças e usufruto de bens supérfluos.

CONCLUSÃO

A “socialização familiar pela projeção individual” se refere a posições de classe fronteiriças, nas quais a passagem entre as gerações faz emergir uma janela de mobilidade social. Se os recursos essenciais estão garantidos, o tipo evidencia a capacidade das famílias realizarem investimentos mais decisivos nas trajetórias de seus membros. A análise detalhada das trajetórias me permitiu reconstruir as motivações, expectativas e condutas que subsidiam os projetos familiares de acesso a recursos, em linha com as propostas de Lahire (2005) e Bertaux e Thompson (2007).

Os conceitos de capital econômico e capital cultural (Bourdieu, 2011) se mostraram importantes. Em comparação aos mais pobres, os níveis de capital econômico são satisfatórios, permitindo o acesso a bens e serviços básicos. Também chama atenção a utilização estratégica de capital econômico para viabilizar o acúmulo de capital cultural. Isso se dá por meio do investimento em educação privada e qualificação profissional, e em face da desobrigação financeira, a dedicação integral aos estudos constitui a atividade mais importante dos membros mais jovens da unidade doméstica. Espera-se que o acúmulo de capital cultural forneça ao indivíduo boas chances em um mercado de trabalho com poucas oportunidades e extremamente competitivo.

As trajetórias desfrutam de uma tutela familiar constante, revelando uma sucessão lógica das biografias. Por meio dela, são bem definidas as responsabilidades em cada ciclo vital, seguindo uma linha de complementaridade entre a família, as instituições educativas e o mercado de trabalho. Essa complementaridade destoa do que foi apontado em Menezes (2018), a respeito dos estratos empobrecidos, nos quais é comum o conflito entre essas três esferas (por exemplo, a partir da necessidade de entrada precoce no mercado de trabalho para complementar a renda familiar, com o abandono dos estudos). Da mesma forma, na “socialização familiar pela projeção individual”, a neutralização da pressão por geração de renda contribui para associar o trabalho à busca pela satisfação pessoal.

Os investimentos de longo-prazo nas trajetórias representam projetos familiares de mobilidade socioeconômica, assim como discutido por Nogueira (1995) e Romanelli (1995). Mas é comum que as pesquisas sobre classe média foquem em grupos com níveis mais elevados de renda e bem-estar, nos quais o suporte intergeracional se dirige, sobretudo, a uma reprodução das posições de classe. Já este artigo abordou famílias que, mesmo remotamente, vislumbravam uma oportunidade de ascensão social, o que define a “projeção” dos indivíduos para além das condições de vida das unidades domésticas.

Entretanto, os resultados dos investimentos familiares são incertos, o que me levou a interpretá-los como “apostas”. Isso porque certos fatores, como a capacidade de absorção do mercado de trabalho, são imprevisíveis. Em situações adversas, torna-se necessária a reorientação das trajetórias individuais, momento em que as famílias manejam os recursos disponíveis e adaptam as expectativas do grupo a respeito do “sucesso” pessoal. Esse fenômeno, que pode ser traduzido pela saída da metrópole ou pelo ingresso em uma profissão não desejada, demarca pontos de inflexão nas biografias, por meio de novos projetos de mobilidade e de um certo desajuste entre a autoidentificação de classe e o cenário atual. Porém, por meio da coabitação e do apoio financeiro, a família evita prejuízos mais severos à qualidade de vida.

A interface entre socialização familiar e autoidentificação de classe também revelou informações importantes. Bott (1976) afirma que os indivíduos não elaboram ideias sobre as posições de classe a partir de categorias socioeconômicas homogêneas e bem definidas, mas sim por meio das experiências de poder e prestígio no ambiente social efetivo da família. Nesta pesquisa, a autoidentificação com a classe média se pautou pelo consumo de bens, acesso aos serviços privados e investimento escolar (um meio para se alcançar boas oportunidades econômicas), elementos que sintetizam as condições de vida experimentadas no seio das famílias. Enquanto isso, o tema da incerteza estruturou a autoidentificação de classe, rotulando uma classe média “baixa” ou “maneirada” e criando um contraponto com a classe alta, cujo usufruto de recursos desponta como algo garantido e não como uma “aposta”.

Dois aspectos merecem ser mais bem examinados em pesquisas futuras. O primeiro é a inclusão no estudo de uma classe média tradicional, cujos repertórios familiares devem ser contrapostos aos pobres e aos estratos inferiores de classe média. O segundo é um olhar mais detido sobre a heterogeneidade das disposições aprendidas em esferas distintas de socialização, como na família, na escola e no mercado de trabalho, o que dialoga com a proposta de Lahire (2005). Tal agenda de pesquisa pode vir a complementar as contribuições deste artigo, que se dirigiu à socialização familiar e seus resultados na persecução de recursos.

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NOTAS

  • 1
    Com menor peso, o capital social traduz as relações sociais capazes de garantir acesso a oportunidades, influência e reconhecimento (Bourdieu, 2011).
  • 2
    As disposições podem ser entendidas como os modos de fazer, pensar e sentir que decorrem de consciências práticas e pré-reflexivas.
  • 3
    Ao tratar das famílias, assumi como válido o significado êmico, já que este se direciona aos nós da rede que efetivamente são reconhecidos e ativados no cotidiano.
  • 4
    Os microdados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (PNAD-C) apontam que, no primeiro trimestre de 2016 em Salvador, período que marca o fim da realização das entrevistas, apenas 19,5% dos indivíduos maiores de idade possuíam o Ensino Superior completo. Já 66,7% dos maiores de idade possuíam Ensino Médio completo.
  • 5
    Para uma análise mais acurada sobre o assunto, ver Borges e Carvalho (2017).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Set 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    24 Mar 2020
  • Revisado
    09 Mar 2020
  • Aceito
    07 Set 2021
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